Nicolau Saião


AMÉRICA DE LUZES E SOMBRAS

Para nós, amantes da Literatura Policial, a América tem sido o país das mil-e-uma-noites: nela brotaram flores de mistério e de maravilhoso, de mágoa e de tragédia através dos dias e dos anos, plantadas por escritores e visionários como Edgar Alan Poe, H.P.Lovecraft, Dashiel Hammett, August Derleth, Raymond Chandler, Charles Williams, William Faulkner, Melville Davison Post e tantos outros.
A América atravessámo-la nós com os vagabundos de Frank Gruber, com os “road runners” de W.R.Burnett. Contemplámos desde as vertentes do Ohio e os arranha-céus de Nova Iorque e Chicago, até às montanhas do Colorado e aos desertos do Arizona e do Novo Máxico com Bill Ballinger, Hammond Hines, Burt Spicer e Jim Thompson. Excursionámos pelas vilórias e pelas pequenas cidades do Midlle West com Ellery Queen e Ray Bradbury, perdêmo-nos nas alfurjas dos portos e nos “fumoirs” de Chinatown e da Bowery com Craig Rice, Thomas Burke e um certo chinês filósofo de bigode a quem chamavam Charlie Chan e que estava ali de passagem vindo da sua honorável Honolulu.
Numa certa noite de neve, sob a lua da Carolina do Norte, ouvimos tiros na estrada deserta por onde minutos antes haviam passado Bruce Robinson e Jonatham Latimer, que nos esclareceram o enredo.
Amámos e padecemos em quartos e em caves, de mãos atadas atrás das costas pelos “gangsters” de serviço. E fomos salvos “in extremis”, com o fato rasgado e o nariz deitado abaixo, por um tal Mickey Spillane e pelo seu amigo dilecto Mike Hammer. A iluminação brotou-nos da mente num momento de sagacidade perpetrada por um fulano que atendia pelo nome de Philip Marlowe. E foi homem a homem que derrotámos o mafioso crápula que nos envinagrava o quotidiano, em escaramuça devastadora numa viela do Bronx, devido aos sábios ensinamentos dum tal Continental Op a quem uns quilitos a mais não faziam mossa.
Em certa manhãzinha, com o nosso elegante fato cinzento de discreta risca azulada, entrámos num palacete onde um ancião atormentado pela nostalgia nos pediu auxílio para encontrar o genro e fomos catrapiscados por uma “femme fatal” que nos lançou na senda da aventura. De outra vez, acompanhando um sofisticado cavalheiro conhecedor de arte assíria e etrusca que nos disse chamar-se Philo Vance, tivemos a dita de nos introduzirmos nos ricos salões de Nova Inglaterra e de Manhattan e, em troca, de juntura com um tal Humphrey Bogart, levámo-lo aos confins do Colorado até à High Sierra e aprendêmos a beber uns valentes “bourbons” sem ficarmos pingados de parede-a-parede.
Com um jurista desembaraçado, um tal Perry com boa pinta que nos disse apelidar-se Mason, jornadeámos pelas artérias de Los Angeles e pelos desertos da Califórnia em busca de assassinos nefandos e de crápulas muito decentes.
Ouvimos muitas vezes o bramir dos ventos, sentimos na pele o negrume das noites e a chicotada da chuva inclemente, enquanto – dissimulados a uma esquina, com a gola da gabardina levantada – esperávamos a chegada dum companheiro empregado na mesma agência que se chamava Caution, Lemmy Caution e que era pai dum tal James Bond.
Tudo isto sentímos nessa América onde havia e há problemas e conflitos não resolvidos, mas onde também sempre houve esperança e certeza devido a uma coisinha simples com o nome de sociedade aberta e que se traduz noutras coisinhas simples mas espantosamente importantes que dão pelo nome de liberdade de palavra, de reunião e de expressão escrita do pensamento.
E agora que se tornou moda ou característica pôr-se sistematicamente em equação essa América (toda a América?!) como símbolo do mal e da desgraça, principalmente para se sentir melhor a nostalgia militante dum Leste implodido e de novos bárbaros a quem se santifica como mártires, lembremo-nos de todos os mosaicos intemporais que ela criou – através de membros humildes ou repletos de cultura viva dum povo que, hoje por hoje e amanhã por amanhã, se calhar só serão lembrados e epigrafados em altas vozes se, de novo, tiverem de dar a vida para continuarmos a desfrutar de um pouco de futuro possível.
Como por várias vezes sucedeu no passado não assim tão longínquo.


(de As vozes ausentes – crónicas e apontamentos, livro inédito)

3 comentários:

Ruy Ventura disse...

Belo e vertical texto. O melhor elogio que lhe posso fazer é este: gostaria de tê-lo escrito!

Luis Eme disse...

Bonito texto, numa boa antevisão do que são as "Vozes Ausentes"...

Anónimo disse...

Amigos: cheguei agora de Évora, com passagem por Arronches e El Marco (na primeira fui lá a um esculápio e aproveitando a um engenheiro, na segunda fui à casa dos ancestros que o Zé e o Ruy conhecem, no Marco fui...às iguarias espanholas,desde salpicão de Cáceres até cerejas e melancia de La Serena...). E agore vim ver as coisas da Estrada.
E digo: mas vocês rapazes querem-me matar com mimos???!
Olhem que o meu sensível coração não se aguenta com os condutos!
Agora a sério, a sério: obrigado, amigos, pelas vossa palavras - que carreiam fraternidade.
...E se passarem por cá, ainda cá há salpicão bastante!