A MAIS RAIANA DAS VILAS PORTUGUESAS
(texto publicado em espanhol no nº. 13 da revista Imagen de Extremadura)

Muito pouco conhecem os portugueses da vila de Barrancos, uma das mais remotas do território nacional, sede de concelho apenas com uma única freguesia. A maior parte de nós recorda esse pequeno pedaço de Portugal apenas pelos touros de morte e pelos excelentes enchidos de porco preto, associados a vagos ecos de um português diferente que por lá se fala.
Durante anos e anos o conhecimento foi mesmo mais restrito, limitando-se à acesa polémica entre os chamados “defensores dos direitos dos animais” e a população local, tendo como centro a realização anual de corridas de touros em que o animal morria, contrariando o estabelecido na lei portuguesa. Era já uma tradição lusa assistir na televisão ao folclore das forças policiais tentando impedir sem sucesso o acontecimento festivo, aos garridos e (por vezes) descabelados protestos dos protectores dos bichos e ao manguito contumaz dos barranquenhos que – depois de muita resistência – lá conseguiram que a Assembleia da República do seu país consagrasse no Diário do Governo a sua excepção cultural. Fizeram bem os políticos? Fizeram mal? Matar os touros no meio da arena em vez de abatê-los no matadouro será pior ou melhor? Cada um responda na sua consciência.
Cessada a refrega, resta aos portugueses mais distraídos, como lembrança de Barrancos, o sabor dos seus chouriços – delicioso como o de poucos. Reconheçamos que é injusto. A pequena vila com escassos milhares de habitantes merece que a lembrem de uma forma mais poliédrica. Nomeadamente como a mais raiana de todas as vilas portuguesas. Ao seu lado talvez, apenas, a cidade de Miranda do Douro, com o seu mirandês descendente do leonês, agora também língua oficial com direito a ensino público.
Em Barrancos, aos touros de morte e a uma ligação umbilical com os seus vizinhos espanhóis, associa-se um falar em que se misturam marcas do português falado no Baixo Alentejo com as do castelhano falado para além da fronteira. Estudado com sabedoria (embora com limitações) pelo investigador José Leite de Vasconcellos no seu livro Filologia Barranquenha, editado postumamente em 1955, não pode considerar-se – segundo afirma Luís Filipe Lindley Cintra – um dialecto autónomo, mas é ainda assim uma das mais concretas manifestações da cultura raiana (tecido muito matizado, no qual os séculos e os homens que os povoaram foram entrançando fios diversos, com cores diferentes, mas complementares e (hoje) indissociáveis).
Será a peculiar – e polémica – tauromaquia barranquenha outra coisa para além de uma das faces dessa manta colorida, feita de muitos tecidos recortados e recompostos? Se a praça onde decorre o espectáculo, edificada no efémero com barrotes de madeira no largo principal da vila, faz lembrar aquelas onde decorrem por esse Alentejo fora as “ferras” ou “touradas à vara larga”, a largada das reses e a sua lide a pé lembram algumas das mais conhecidas tradições de Espanha. Quer apreciemos ou não o ritual sangrento, traz-nos à memória raízes muitíssimo antigas, milenares, de uma época em que não existiam nem “Alentejo” nem “Extremadura”, mas havia uma cultura agrária com touros e deuses ctónicos que era preciso vencer para afirmar a força da humanidade, uma cultura cujos vestígios correm hoje o sério risco de desaparecer enquanto manifestações autênticas.
Por muitos motivos (uns positivos, outros nem tanto) podemos afirmar que essa cunha portuguesa em território extremenho, vigiada pelo abandonado castelo de Noudar e protegida por uma santa com resplendor à castelhana, não é nem de Portugal nem de Espanha. Apenas uma das eminências desse território peninsular agreste mas misterioso chamado “Raia”.

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