OS SETE EPÍGONOS DE TEBAS
de José Carlos Barros
“[…] as mulheres dos montes / viravam os estrados / para o lado de dentro / dos teatros / […]”
“Em vez dos panos nos bastidores: a narrativa – / […] / a libertar-se da âncora genealógica / pela destruição do livro / dos exemplos. […]”
“[…] mudava / os parágrafos / e depois procurava no forno do povo / ou no tanque do largo / ou na lenha de bétula arrumada nos telheiros / o eco da frase inaugural /[…]”
Escolho, mais ou menos ao acaso, alguns versos de um livro de José Carlos Barros, ainda inédito. Quanto mais o leio, mais se aproxima de mim a sua estrutura, os pilares e lintéis de um edifício a que o autor empírico resolveu chamar Os Sete Epígonos de Tebas. Não estou perante uma colectânea de poemas; tenho nas mãos um livro de poesia. E, como qualquer objecto digno dessa classificação (isto é, que não seja apenas uma reportagem ou muita verborreia, empilhadas em linhas que não chegam ao final da folha impressa), escolhe – seguindo a frase de Herberto Helder colocada na obra como epígrafe – a arte “de ver cometas / despenharem-se / nas grandes massas de água”. Ou seja: arrisca assistir ao movimento descendente, violento, de corpos ígneos, cuja matéria entra em contacto explosivo com terra, purificando-a pelo fogo e, depois, pela expansão rápida de um líquido cuja passagem lava o espaço, os seres nele viventes e a sua memória. Terminado o maremoto, o contacto do fogo com a água – que José Carlos Barros parece desejar ver e registar – produz ainda uma matéria volátil: essa “nuvem” ou “névoa” que (segundo um poema do mexicano Luis Arturo Guichard) transforma os campos mais comuns em bosques plenos de mistério, embora quase sempre se veja apagada pelo fumo. E são os adoradores do fumo que vencem a primeira de duas batalhas pela sobrevivência de Tebas. Tebas – uma cidade contaminada por contínuas lutas pelo poder absoluto, condenada à desagregação por ter destruído dessa forma a herança civilizadora de Cadmo, o seu fundador –, que só pelo fogo poderá talvez ser conservada. É essa tentativa de preservação que, na minha leitura, se vê reflectida no livro de José Carlos Barros.
Nos seus poemas contidos, meditativos, este livro tem contudo raros vestígios da narrativa mitológica dos “sete epígonos de Tebas” – da história dos sete chefes militares que vingaram a derrota dos seus ascendentes conquistando, em vez deles, a urbe fundada pelo introdutor mítico do alfabeto fenício no território grego. É, antes, uma reflexão alargada sobre a memória, sobre a passagem do tempo, sobre o seu registo num texto escrito feito poesia e sobre as circunstâncias adversas que este tem de vencer para atingir a sua melhor realização estética e ética. Quem lê “Tebas” nesta obra deve pensar na “escrita” ou na “poesia” (aí renascida pela mão dos gregos ou de fenícios chegados à Grécia), sendo a luta dos “epígonos” (ou seja, dos descendentes) um processo de revitalização – dura e violenta – do texto artístico. É preciso destruir toda a escrita mergulhada no caos dos interesses e do poder temporal para que algo nasça de novo a partir dos alicerces – ainda que os vencedores finais (após a destruição da cidade) sejam sempre acompanhados pelo “opróbio da emulação”, porque “Os heróis” derrotados na primeira refrega “[pereceram] nos campos / de batalha / com a lança dos desastres”.
A vitória contra a erosão dos poderes literários consegue-se através da interioridade (virando “os estrados / para o lado de dentro / dos teatros”) e do espírito (procurando com ironia e desprendimento a “energia eólica” nascida nas “vagarosas pás / dos aerogeradores”), porque – segundo afirma o livro – “há um momento / em que a heresia e a coragem se confundem / e a baixa densidade dos núcleos / remove / por intuição / a desmesura / das memórias / descritivas / dos interesses”. Não esquecendo que é a memória da derrota dos antepassados (esse desenho nos “subterrâneos labirintos” da “cartografia pretérita dos desastres”) que conduz à vitória na guerra pela vertical dignidade da escrita e do texto, contra os seus hábeis manipuladores e niveladores que se servem deles para conseguirem honrarias jornalísticas, académicas e sociais. Porque só essa vitória permite que nunca se quebre, mesmo na humilhação, “esse / fio de novelo / que levava ao ouro e à água subtraída das nascentes: / ao rumor da pedra volátil / do volfrâmio”.
A mensagem de José Carlos Barros neste livro (cujo mérito, muito saliente, João Candeias, Joaquim Cardoso Dias e o autor destas linhas – como membros do júri do Prémio Nacional de Poesia “Sebastião da Gama” – resolveram premiar) é clara e muito importante nestes tempos de alheamento e de confusão: “[…] / ninguém diz uma palavra. / E ninguém se move em redor do lume / com medo / da repercussão / dos desastres”, mas quando alguém procura água que purifique esse silêncio cúmplice e criminoso, “O vedor / [sente] que a vara / [aponta] ao céu: / a nuvem / em vez / das nascentes”. É então que o cometa de Herberto Helder produz o seu incêndio e a sua redenção: “[…] a nuvem das palavras [desce] sobre as tendas / e as dunas da península: / duas mãos” – o passado e o presente?, pergunto – “[tocam-se] / por um instante breve / e [ergue-se] no ar irrespirável / o rumor incandescente / dos incêndios / das florestas”.
Azeitão, 16 de Maio de 2009
Lido por RV na sessão de entrega do Prémio “Sebastião da Gama”
de José Carlos Barros
“[…] as mulheres dos montes / viravam os estrados / para o lado de dentro / dos teatros / […]”
“Em vez dos panos nos bastidores: a narrativa – / […] / a libertar-se da âncora genealógica / pela destruição do livro / dos exemplos. […]”
“[…] mudava / os parágrafos / e depois procurava no forno do povo / ou no tanque do largo / ou na lenha de bétula arrumada nos telheiros / o eco da frase inaugural /[…]”
Escolho, mais ou menos ao acaso, alguns versos de um livro de José Carlos Barros, ainda inédito. Quanto mais o leio, mais se aproxima de mim a sua estrutura, os pilares e lintéis de um edifício a que o autor empírico resolveu chamar Os Sete Epígonos de Tebas. Não estou perante uma colectânea de poemas; tenho nas mãos um livro de poesia. E, como qualquer objecto digno dessa classificação (isto é, que não seja apenas uma reportagem ou muita verborreia, empilhadas em linhas que não chegam ao final da folha impressa), escolhe – seguindo a frase de Herberto Helder colocada na obra como epígrafe – a arte “de ver cometas / despenharem-se / nas grandes massas de água”. Ou seja: arrisca assistir ao movimento descendente, violento, de corpos ígneos, cuja matéria entra em contacto explosivo com terra, purificando-a pelo fogo e, depois, pela expansão rápida de um líquido cuja passagem lava o espaço, os seres nele viventes e a sua memória. Terminado o maremoto, o contacto do fogo com a água – que José Carlos Barros parece desejar ver e registar – produz ainda uma matéria volátil: essa “nuvem” ou “névoa” que (segundo um poema do mexicano Luis Arturo Guichard) transforma os campos mais comuns em bosques plenos de mistério, embora quase sempre se veja apagada pelo fumo. E são os adoradores do fumo que vencem a primeira de duas batalhas pela sobrevivência de Tebas. Tebas – uma cidade contaminada por contínuas lutas pelo poder absoluto, condenada à desagregação por ter destruído dessa forma a herança civilizadora de Cadmo, o seu fundador –, que só pelo fogo poderá talvez ser conservada. É essa tentativa de preservação que, na minha leitura, se vê reflectida no livro de José Carlos Barros.
Nos seus poemas contidos, meditativos, este livro tem contudo raros vestígios da narrativa mitológica dos “sete epígonos de Tebas” – da história dos sete chefes militares que vingaram a derrota dos seus ascendentes conquistando, em vez deles, a urbe fundada pelo introdutor mítico do alfabeto fenício no território grego. É, antes, uma reflexão alargada sobre a memória, sobre a passagem do tempo, sobre o seu registo num texto escrito feito poesia e sobre as circunstâncias adversas que este tem de vencer para atingir a sua melhor realização estética e ética. Quem lê “Tebas” nesta obra deve pensar na “escrita” ou na “poesia” (aí renascida pela mão dos gregos ou de fenícios chegados à Grécia), sendo a luta dos “epígonos” (ou seja, dos descendentes) um processo de revitalização – dura e violenta – do texto artístico. É preciso destruir toda a escrita mergulhada no caos dos interesses e do poder temporal para que algo nasça de novo a partir dos alicerces – ainda que os vencedores finais (após a destruição da cidade) sejam sempre acompanhados pelo “opróbio da emulação”, porque “Os heróis” derrotados na primeira refrega “[pereceram] nos campos / de batalha / com a lança dos desastres”.
A vitória contra a erosão dos poderes literários consegue-se através da interioridade (virando “os estrados / para o lado de dentro / dos teatros”) e do espírito (procurando com ironia e desprendimento a “energia eólica” nascida nas “vagarosas pás / dos aerogeradores”), porque – segundo afirma o livro – “há um momento / em que a heresia e a coragem se confundem / e a baixa densidade dos núcleos / remove / por intuição / a desmesura / das memórias / descritivas / dos interesses”. Não esquecendo que é a memória da derrota dos antepassados (esse desenho nos “subterrâneos labirintos” da “cartografia pretérita dos desastres”) que conduz à vitória na guerra pela vertical dignidade da escrita e do texto, contra os seus hábeis manipuladores e niveladores que se servem deles para conseguirem honrarias jornalísticas, académicas e sociais. Porque só essa vitória permite que nunca se quebre, mesmo na humilhação, “esse / fio de novelo / que levava ao ouro e à água subtraída das nascentes: / ao rumor da pedra volátil / do volfrâmio”.
A mensagem de José Carlos Barros neste livro (cujo mérito, muito saliente, João Candeias, Joaquim Cardoso Dias e o autor destas linhas – como membros do júri do Prémio Nacional de Poesia “Sebastião da Gama” – resolveram premiar) é clara e muito importante nestes tempos de alheamento e de confusão: “[…] / ninguém diz uma palavra. / E ninguém se move em redor do lume / com medo / da repercussão / dos desastres”, mas quando alguém procura água que purifique esse silêncio cúmplice e criminoso, “O vedor / [sente] que a vara / [aponta] ao céu: / a nuvem / em vez / das nascentes”. É então que o cometa de Herberto Helder produz o seu incêndio e a sua redenção: “[…] a nuvem das palavras [desce] sobre as tendas / e as dunas da península: / duas mãos” – o passado e o presente?, pergunto – “[tocam-se] / por um instante breve / e [ergue-se] no ar irrespirável / o rumor incandescente / dos incêndios / das florestas”.
Azeitão, 16 de Maio de 2009
Lido por RV na sessão de entrega do Prémio “Sebastião da Gama”
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