SURREALISMO E FILOSOFIA PORTUGUESA

A troca de ideias (chamar-lhe polémica seria exagerado...) entre Pedro Sinde e António Cândido Franco sobre a relações entre o Surrealismo e a Filosofia Portuguesa continua no blogue Maranos. Sejam quais forem as nossas opiniões, são reflexões interessantes.
BOA NOTÍCIA!


Publicado aqui, este texto de José do Carmo Francisco constitui uma boa notícia para todos quantos apreciam a Poesia:


Poesia de todo o Mundo na Rua da Rosa

Soube por acaso que abriu uma livraria só de poesia na Rua da Rosa nº 145 em Lisboa. Além de livraria, o espaço também inclui um bar. Lá fui hoje beber uma taça de vinho branco à saúde de livraria e do bar, incluindo nos votos o Miguel Martins, poeta e contista, recém-chegado de Cabo Verde, autor dum livro com o curioso título de «Cirrose».
Para vos dar uma ideia da variedade dos livros desta jovem livraria, aí vão alguns nomes: José Blanc de Portugal, António José Forte, Carlos Queirós, Emanuel Félix, Jorge de Sena, António Ramos Rosa, Alexandre O’Neill, David Mourão Ferreira, Francisco Bugalho, Bocage, Al Berto e Carlos de Oliveira. Dos estrangeiros, Drummond de Andrade, Adélia Prado, Agostinho Neto e Ho Chi Minh com os seus célebres poemas de prisão. E muitas antologias: poesia argentina, poesia soviética, poesia brasileira, um nunca mais acabar. O horário é das 15 às 23 horas de segunda a sábado.
Um aspecto curioso é que eles procuram ter não só as novidades mas também clássicos, como (por exemplo) a colecção «Poetas de Hoje» da Portugália e o «Círculo de Poesia» da Moraes. Pessoalmente foi emocionante descobrir um livro meu de 1982 ainda à procura de leitor ao lado de um livro da minha filha, que desapareceu horas depois.
Não queria deixar de vos dar conta desta descoberta. Sei que nunca foi tão fácil publicar livros, mas também nunca foi tão difícil colocá-los no leitor. Comprar muitos livros não quer dizer ler muito. Mas é bonito ver esta teimosia. Agora que os dias do frio estão a chegar, nada como um livro de poemas para se conjugar com uma bebida destilada ou fermentada capaz de aquecer o coração. A poesia também é uma educação sentimental.

José do Carmo Francisco


Procissão dos Passos

de Abel Varzim

O Padre Abel Varzim (1902-1964) foi uma das figuras mais importantes do catolicismo português do século XX. Com um doutoramento em Lovaina na área das Ciências Politico-Sociais, foi o grande impulsionador da LOC (Liga Operária Católica), dirigiu o jornal O Trabalhador e foi professor do Instituto de Serviço Social.
Faz agora 50 anos que o Padre Abel Varzim saiu da paróquia da Encarnação para onde tinha sido nomeado em 1951. Este livro corresponde às suas memórias atribuladas desse tempo pois foi já com 48 anos que o Padre Abel Varzim se viu confrontado com uma situação nova na sua vida sacerdotal. Vejamos algumas palavras: «Não foi difícil nem sequer demorado descobrir que, na área da paróquia, se acoitavam dezenas e dezenas de lupanares. O Governo Civil, a meu pedido, forneceu-me a lista completa deles, com a respectiva localização. Num mapa da freguesia marquei então cada uma dessas casas, para ter, diante dos meus olhos, a triste e detestável realidade. Não supunha, porém, a enorme chaga tão extensa nem tão profunda. Depressa verifiquei que a prostituição se entranhava no Bairro Alto como se fosse a medula dos seus ossos. Autêntico e temível cancro a invadir tudo e tudo corromper, que poderia construir de útil, sem atacar a raiz do mal? Depressa observei que muita gente da paróquia, incluindo frequentadores da igreja, vivia da prostituição, alugando quartos às prostitutas, tratando-lhes das roupas, cuidando-lhes dos filhos, acoitando mancebias, facilitando adultérios, encobrindo ligações precoces. Desde que lhes pagassem, tudo lhes parecia permitido.»


(Editora: Multinova, Apresentação: Paulo Fontes, Comentário: Inês Fontinha, Apoio: Montepio Geral, Patrocínio: Câmaras Municipais de Barcelos e Póvoa do Varzim)
Recomeço


Os mitos do amor


Os animais fabulosos

História da Branca de Neve



Uma volta por Espanha
(quadros e texto de Nicolau Saião)

Ir a Espanha, viajar por Espanha, percorrer os caminhos de Espanha - duma Espanha que nos
agrada, que é amorável e aventurosa – não é o mesmo que ir à Brandoa.

O que aliás até pode ser agradável se por lá tivermos um amor, um derriço, uma almoçarada
valente, um mistério por desvendar. Na Brandoa. Mas de facto não é o mesmo...

Começa-se pelo inevitável salero da terra-ela mesma, dessa terra que parece mais larga assim
que se cruza a fronteira. Preconceito de lusitano que já está um pouco cansado de politicões e
videirinhos deste país onde vigora a lei vígara do “muito tens muito vales”?
Talvez... Mas mais parece ser por amor a lugares onde se sente vibrar um hausto de limpeza e
de liberdade. Doces terras de Espanha...doces lugares da Extremadura!

Trocado por miúdos: veni, vidi, vici, como dizia o romano. Ou seja: armado do meu portfólio, consegui seduzir uns apreciadores e tive Natal antecipado, vendendo os bonecos, “cartões para painel de azulejo” por um preço muito consolador. Os que vos deixei algures num bloquinho viajeiro, para iluminar os olhos de quem me estimar.

No dia de S.Martinho, foi o meu presente – acompanhado de uns tragos do tinto dos Fortios e de
um punhadinho de castanhas assadas. E querem melhor iguaria, seja em Espanha ou em Portugal?

OPERÁRIOS DA DEMOCRACIA


A reflexão final de Michel Winock no seu Le Siècle des Intellectuels reveste-se de consequência. Não repousando numa falsa neutralidade, a obra do historiador francês propõe aos intelectuais um caminho de acção humilde, no exercício do seu contrapoder crítico, cuja ética de probidade e discrição deverá constituir um cimento indispensável na construção da verdadeira democracia.
Chama-lhes "operários da democracia". A expressão agrada, na medida em que, levada a sério, resolve o exibicionismo de alguns e a instrumentalização espúria de outros, fornecendo critérios distintivos para se separarem os autênticos intelectuais de uma massa perigosa de imitadores interesseiros e oportunistas.
SOCIEDADES CRIMINAIS

Sándor Márai, um dos vultos cimeiros da narrativa europeia, escreveu nas suas Memórias da Hungria:
"Começámos a interrogar-nos sobre a responsabilidade do indivíduo num Estado criminal, culpado de actos ilegais no plano moral. Não será responsável na medida em que aprova ele mesmo esses actos e neles participa activamente? O seu dever primordial consiste certamente em se proteger e em proteger os seus - mas poderá ir ao ponto de executar as ordens que a sua consciência condena? Necessita sobreviver, como um camaleão, mas sem dar o seu concurso aos assassinatos cometidos pelo poder, sem beneficiar dos seus crimes desumanos nem aceitar os privilégios que lhe valeria uma eventual cumplicidade."
Sobre as "sociedades criminais" (que por vezes tomam a aparência de "democracias representativas") escreveu Nicolau Saião um artigo que merece ser lido. Ficamos muito mais esclarecidos.
Matilde Rosa Araújo


SABER LER NA VIDA

Saber ler na vida - folhear honestamente a vida
Apaixonadamente a vida
Nas arcas da noite, nas arenas do dia:
Risos, lágrimas, serenos rostos aparentes
Como se abríssemos cada dia a verde lima do espanto.
Não passar folhas em branco sem as entender,
Olhar rostos como quem tacteia rugas
Descobrindo planetas de mágoa ou rios de alegria.
A primeira página e o segredo puro dos acabados de gritar o primeiro grito,
iluminada essência do futuro.
E tudo isto
Entre vermes, frutos, flores, rinocerontes, pássaros,
Cães fiéis
Águas e pedras
E o fraterno fogo que acendemos a cada hora,
No espaço branco que é estendermos a nossa mão
Para outra mão apertarmos simplesmente
Mão pela qual corre o sangue como um rio de fogo.
Só temos uns tantos anos para lermos este livro
Debaixo do Sol,
Ou sob o aço da noite
Para este fogo tecer.
Chamarás ciência cultura vida dor espada ou espanto a tudo isto
Ou ilegível monotonia.
Nada. Mas lê.

(in Voz Nua, 2001)

ENCONTRO

Não existe ser humano que não recorde um encontro feliz, porque inesperado. Numa das minhas deambulações bibliófilas pelos alfarrabistas da capital, tive há uns tempos um desses momentos. Esperaria encontrar de tudo ou toda a gente naquele espaço discreto, como que enxertado numa das mais belas ruas de Lisboa. Menos ele.
Enquanto, entre as mãos, limpava o pó acumulado sobre a capa do volume cinzento, com moldura azul e vermelha, era já grande a minha satisfação. Tinha a manhã ganha, pois há muito procurava aquela célula quase esquecida de um amigo que guardo no peito. Comecei então a folhear as 72 páginas desse discreto livro de poemas intitulado Cio, publicado por Carlos Garcia de Castro em 1955.
A surpresa do encontro (encontrar o livro de um autor, há muito procurado, é encontrá-lo a ele, embora sem o calor do abraço muscular...) não ficaria por aqui. Ao levantar a capa, li com emoção uma dedicatória:
Ao / Manuel d’ Assunção, com o / abraço da melhor amizade e admi- / ração, oferece o / Carlos Garcia de Castro / Lx. Março. 1956
Era-me conhecida a amizade que ligou o poeta portalegrense ao grande pintor surrealista e abstraccionista D’ Assumpção. Saíram da pena do autor d’ Os Lagóias e os Estrangeiros algumas das melhores páginas que até hoje se escreveram sobre o artista, considerações e reflexões que foram aos alicerces da sua obra e da sua personalidade artística. Bastará lermos os textos publicados em catálogos, em revistas ou no Fanal d’ O Distrito de Portalegre (nº 1, 19/05/2000). A “amizade” e a “admiração” por D’ Assumpção, manifestadas na dedicatória, eram sinceras, portanto. Quem conhece Carlos Garcia de Castro (homem de qualidade, frontal e vertical em todas as horas), outra coisa não esperaria.
A chegada à minha repartida biblioteca deste exemplar do Cio foi, portanto, fonte de emoção. Juntei num único objecto a presença de um poeta que admiro como escritor e como ser humano à de um pintor cuja obra faz parte das minhas referências artísticas. Há dias e encontros felizes...
Carlos Garcia de Castro considera hoje que este seu primeiro livro é sobretudo “um documento poético que não tem nada de particular, (...) resultante de uma envolvência de gostos, para aquela época em que [foi] educado, ilustrando o tempo dos dois primeiros anos da faculdade” (assim o declarou em entrevista ao suplemento Fanal, de 22/2/2002). Sendo, na verdade, um produto poético digno (em que, no entanto, vemos apenas florescer a intensidade verbal que caracteriza a obra do poeta), revela no seu todo uma poesia que ainda se lê com interesse, situada, já naquele tempo, a anos-luz dos pilritos dados a lume por certos versejadores. Revelador é, por exemplo, o poema “Deslumbramento” (reflexão surrealizante sobre “O Último Bailado”, de D´Assumpção, obra então exposta no Café Plátano portalegrense, hoje no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian):
Uma colcha fria, / de mil pedrarias indiferentes, / o livro impávido da noite, / onde crepita o nada das aragens / e o roçagar das ramagens / a estremecerem cetim. // [...] // Nós temos a Certeza e a Visão - / duma absoluta-relativa dó: / um astro-rei no céu, / e as barbas dum gigante numa árvore-anã! // E casas, montes, rios e valados, / e sonhos, alegrias, sofrimentos - / a dor! as brumas e o sol, / místicos abraços criminosos... // [...] // Ternos, duvidosos, dualistas, / os deuses que nós somos: / fica revibrante a vida que retemos, / e damos ao que é bruto / o mito que abrangemos sem o ter. [...]
Nisto tudo, há uma memória artística e humana que acalenta. Um acto de amizade (um livro oferecido por um amigo, onde um poema reflecte sobre a obra do amigo a quem é dedicado) torna-se presença material. Como escreve Garcia de Castro, “Do que mais custa sermos só memória / são os afectos dela então esquecidos / que só a morte leva para os deixar, / sem nunca mais quem morre os ter consigo”. Que a memória permaneça, digna, desta ou doutra forma.