Nicolau Saião

Juízo do ano
(diálogos entre a Tia Brízida e o Seringador)


Introdução

O trecho que agora se dá a lume, o primeiro diálogo que se conhece das duas imortais figuras tornadas célebres no Almanaque o Seringador, foi descoberto quase por acaso numa velha biblioteca pelo Dr. Pitta Raposo, que dispensa apresentações: com efeito, pela mão de Ruy Ventura e de outros dois fabianos, o famoso estoriador – um émulo do Prof. Teodoro Rabejana, o melhor especialista português em Estoriografia Sustenida - publicou no suplemento FANAL textos fundamentais a mais dum título e que todos mais ou menos conhecerão.
Abreviando: Pitta Raposo, já depois de abandonar o cargo de catedrático de Alentejanismo Espiritual, que regeu com insuperável mestria na Universidade da Avenida de Ceuta, votou-se à investigação quase arqueológica, nomeadamente nas vetustas salas de gente ilustre que faz o favor de lhe franquear os inóspitos solares.
Eis a primeira das suas descobertas, que aqui largamos para deleite do leitor.


TIA BRÍZIDA – Ora bons olhos o vejam, meu caro Seringador. Então o que traz para me contar?

SERINGADOR – Coisas bonitas, Tia Brízida, coisas amáveis. Então já sabe que o nosso país continua a ser a menina dos olhos dos estrangeiros que nos visitam? No dizer de alguém é um exemplo para todos os europeus, incluindo o Mugabe, que têm uma visão sagaz do mundo moderno!

TIA BRÍZIDA – Já ouvira dizer, sim senhor, já cá me chegara. Muito se tem falado no facto, único no mundo, em que as crianças, sejam elas de 11 ou de 23 anos, caso se mantenham em funções nessa idade, podem frequentar a Escola sem temerem o traumatismo de chumbarem. E isso devido ao sentido humanista e compreensivo de uma senhora que por aí está ministra...

SERINGADOR – Desculpe se a corrijo, Tia Brízida. Deverá dizer antes: graças ao senhor que aí está como, assim a modos que, Caudilho salvo seja. Um homem proficiente que, depois de ter sido “animal feroz da política”, como disse um pensador de primeira, soube a seguir transmutar-se numa espécie de “anjo guardião” dos moleques populares. Que a seguir lhe irão dar o votinho, mas isso são outras voltas. E, Brízida, diga-me: já ouviu falar que os jovens verão aumentada de 30 para 50 anos a possibilidade de liquidarem a continha do empréstimo para comprar casa?

TIA BRÍZIDA – Não me diga! Ai, que é uma medida de grande alcance, sim senhor. Já viu o descanso que é um rapazola de 25 anos e uma moçoila de 28, ao entrarem nos setentas e muitos, verem a sua continha calada finalmente raspada? A que, bondosamente, diria, os acompanhou toda a vida de casados? É de se sentir uma certa nostalgia!

SERINGADOR – Faço idéia... E que me diz a nossa Brízida à atitude, de grande visão patriótica, do senhor Presidente da coisa pública ao queixar-se docemente, no discurso abrilongo, de que os jovens têm uma memória de passarinho, não sabem quem é este cavalheiro da Nação, aquele acontecimento, aqueloutra data fundacional?...

TIA BRÍZIDA – Olhe, só me ocorre dizer que esse salvador me parece ter também pouca memória. Já se terá esquecido das parlendas com que nos encheu outrora as orelhas, em que falava a granel no país de sucesso e noutros centros de Belém? Olhe, leia um artigote do Cardeal Pulido Valente na folha-de-couve de qualidade onde ele escreve e não terá dúvidas nenhumas...

SERINGADOR – Os exercícios de memória podem ser cruéis...Lá nisso tem a Tia Brízida razão...Mas vamos a outra: que me diz desta telenovela mais actual que a nossa TV nos anda a fornecer para nosso gáudio?

TIA BRÍZIDA – A “Gabriela cravo e canela”?

SERINGADOR – Ó Brízida, deixe-se de piadinhas... Refiro-me, como é óbvio, à “Manuela y sus muchachos”, que segundo me disse um sobrinho meu está a fazer grande êxito nos écrans de lares, tascas e até nuns lugares estranhos onde se reunem, parece, os políticos do Reyno para fazer as suas serenatas.

TIA BRÍZIDA – Ah, essa! Digo-lhe que tem grandes intérpretes – aquele Santana enche-me as medidas!! - e o argumento também não está nada mau... Há golpes de teatro súbitos, aliás já esperados por todos, que mantêm o auditório a salivar. Ele é uns que entram e uns que saiem, outros que juram pela pele a este, ao outro. Um forrobodó, que diz bem a que pontos de qualidade chegou o telenovelismo nacional...

SERINGADOR – E o Alberto? Como se tem portado o Alberto?

TIA BRÍZIDA – Ao seu nível habitual, não se preocupe. Mas, embora haja outros muito talentosos, o melhor tem sido um Coelho, um galã cheio de sofisticação e que veio do estrangeiro para fazer a fita. Atira uns olhares tão devastadores, enquanto diz o seu papel, que de certezinha já “tombou” por aí uma dúzias de moças romanticas sempre de espreita aos moços tafuis. E a Manuela também tem actuado bem, embora já esteja um pouco como a Meryl Streep: ligeiramente passada. Mas é um papel de respeito, uma espécie de mãe salvadora do elenco!

SERINGADOR – Pois muito me conta. E que outras novidades há por aí que valha a pena saber?

TIA BRÍGIDA – Talvez literaturas. Letras, artes, economia, finanças, futebóis a fartar...

SERINGADOR – (com um estremecimento indisfarçável) Safa, Brízida, safa! Como dizia o Outro, co'abreca. Não me venha com esses temas, que fico todo a tremer! Até pr'ó ano, minha amiga!

(E os dois compadres, com um riso entre o nervoso e o escarninho, separam-se com o proverbial abraço).
MORTE E RESSURREIÇÃO

Se uma nação se apresenta moribunda, só uma morte, seguida de algum tempo de tumulação, permitirá a ressurreição do seu corpo modificado, melhorado. Assim sucedeu com a Itália, entre a queda do Império Romano e o Renascimento; com a França, depois da Revolução; com a Espanha, entre a República e o fim do Franquismo; com a Alemanha, entre 1918 e 1989.
Portugal vive um tempo moribundo. Que morte nos trará o ressurgimento enquanto nação (que poderá acolher ou não a forma de um estado)?

Pedofilia legal
num regime fundado sobre a lei islâmica


Para que não nos deixemos enganar pelo canto da sereia.
José do Carmo Francisco
(in Aspirina B, 21.4.2008)

Com que então
«Digna-se estar presente» o Nobel

A Secretaria Geral do Ministério da Cultura enviou-me um convite no qual José António Pinto Ribeiro, o ministro da cultura, me convida para a inauguração da exposição «José Saramago – A consistência dos sonhos» organizada por Fernando Gomez Aguilera. Até aqui tudo normal. Mas a segunda parte do convite contém uma frase estranha «Digna-se estar presente o escritor José Saramago.» E digo estranha porque assim até parece que ele está num céu demasiado azul e demasiado alto de tal modo que se digna descer até nós. Vindo deste ministro que aparece a defender o acordo ortográfico como se dependesse dele a salvação do Mundo e que ainda há dias vi numa cerimónia protocolar na Biblioteca Nacional a impedir de modo hostil que um fotógrafo trabalhasse (fotografando o ministro) na entrega do espólio de José Cardoso Pires ao Estado Português, cheira um bocado a esturro. Ainda se o Nobel se dignasse estar presente para explicar porque fez desaparecer depois de 1992 os nomes das pessoas do Lavre que lhe contaram as histórias do livro Levantado do Chão e sem as quais o livro nunca teria sido escrito por uma pessoa que nunca viveu no campo mas sim na Penha de França… Além do nome da Isabel da Nóbrega, são estes os nomes suprimidos na dedicatória: João Domingos Serra, João Basuga, Mariana Amália Basuga, Elvira Basuga, Herculano António Redondo, António Joaquim Cabecinha, Maria João Mogarro, João Machado, Manuel Joaquim Pereira Abelha, Joaquim Augusto Badalinho, Silvestre António Catarro, José Francisco Curraleira, Maria Saraiva, António Vinagre, Bernardino Barbas Pires e Ernesto Pinto Ângelo. Mas não. Ele não se digna fazer isso. Tal como eu não vou lá pôr os pés. Safa!

"Abril"

pintura de Nicolau Saião

UMA DESNECESSIDADE ORTOGRÁFICA

A reforma ortográfica que, em breve, será posta em prática nos países que falam a língua portuguesa nas suas múltiplas variantes é, quanto a mim, uma desnecessidade e um desperdício de energias.
Ao contrário do que defendem os advogados deste acordo político, o que divide as diversas variantes da nossa língua materna não é, nem nunca foi, a ortografia. Nunca a grafia diferenciada impediu o entendimento dos escritos brasileiros em Portugal ou dos textos portugueses no Brasil ou noutras partes. Temo-nos entendido até agora - e assim continuaríamos, mesmo que não nos impusessem este processo de simplificação (?) da escrita. Quem tenha mínima consciência das várias formas do português falado e escrito sabe que a separação entre elas acontece sobretudo ao nível da pronúncia, do vocabulário e da sintaxe. O que não constitui qualquer problema. É um sintoma de riqueza - que só mentes preguiçosas, amigas da facilidade militante que vai empobrecendo a nossa sociedade, podem rejeitar.
A reforma da ortografia não responde por isto a qualquer necessidade intrínseca. Não partiu de um movimento científico ou cultural de qualquer dos países constituintes da Comunidade de Povos de Língua Portuguesa, mas da mente de alguns políticos e de alguns académicos especialmente preocupados em uniformizar o que nunca poderá ser uniforme e em submeter tudo às "leis do mercado".
Uma pergunta se impõe então no meu espírito. Se não existem neste "acordo" necessidades culturais ou científicas (e muito menos educativas, pois esta reforma pouco alterará no ensino do Português), que propósitos presidiram então à sua elaboração/aprovação? Um amigo meu lembrou-me há dias a frase de um romance policial: "Sigam o cheiro da massinha..." Assim será? Quem ganharia com isso? Entre dúvidas, uma certeza se me impõe: quem esteve/está por detrás disto será tudo, menos ingénuo.

(Opinião disponível também no Triplov, onde poderão ser lidas as bases do acordo ortográfico.)

São Paulo, de Pascoaes
(alguns apontamentos)



São Paulo, de Teixeira de Pascoaes. Uma biografia onírica que, enquanto tal, vale muito mais como ensaio opinioso, cujas ideias merecem muita discussão. Nos entremeios, é legível um "protestantismo" anti-petríneo e anti-romano do autor. Atraentes as intuições filosóficas. Sublime a linguagem em que tudo é vertido.


*


Irrito-me sempre quando vejo factos documentados serem torcidos para servirem ideias preconcebidas. Mas reconcilio-me com Pascoaes quando reconheço a ousadia das suas concepções (mesmo quando não concordo com elas). No São Paulo, pseudobiografia ateoteísta, ou seja, um cripto-ensaio, há luzes que não podem esconder-se. (Despropositada me parece, contudo, a aceitação beata das suas intuições, sem as submeter a um escrutínio crítico, canonizando-as a elas e ao seu autor.)


*


As últimas acções serão sempre as mais lembradas. Neste livro também. Os dois últimos capítulos (o penúltimo, sobretudo) são memoráveis. Se a erupção de intuições saborosas atrai este leitor em todos os livros de Pascoaes, a sua capacidade como narrador ágil não pode deixar-lo indiferente.


*


Pascoaes é muito maior quando se universaliza.


*


Vai uma grande distância entre as biografias de Zweig e as de Pascoaes. Ambas ensaios e ambas registadas num escrita dinâmica e fervente, tudo o mais as separa. Se, para o português, os factos documentados são argolas onde uma corda ténue prende um barco sujeito às vagas do sonho, para o austríaco constituem pilares bem assentes a partir dos quais se eleva um edifício psicológico sólido e verosímil.

(Também aqui.)
Mário Chamie

Fogo no Céu da Boca

Os que possuem a palavra e o relho
se consultam sem assédio
sem assalto no invadido terreno
do seu reino.
Cortam a fibra do meu tédio.

O assalto é coisa certa de direito
de quem tem o relho e o mando
de meu peito.

O assédio é coisa rápida de comando
de quem tem a estaca e a cerca
de meu campo.

Não são lúbricos os que possuem
o código de meu tédio
que, mais que meu, é público.

São súditos de seu juízo
se me julgam
em seu inquérito.

Eu os compreendo com o desprezo
que os enerva
quando piso no terreno do meu reino
e renego a paz que me renega.

Mas não espero o reverso da medalha.
Em vez da paz é a guerra
o que me dão esses morcegos
fortificados em sua muralha.

Eu os desprezo com o descrédito
que os assalta no assédio
com que atacam a retaguarda
de meu tédio sem ressalva.

Ganham a batalha, pois tudo têm
para o triunfo de seu reino:
a palavra e o relho, o código
e o súdito sem remédio
entre a estaca e a cerca
de seu terreno.

Mas não me rendo, nesse entrevero.
Do fundo de minha derrota
vejo o pânico dos que não lambem
o barro de vossa bota
na poça de nosso sangue.

(in A Quinta Parede, Rio de Janeiro, 1986)

ao diário espanhol Hoy.
Conduzida por Antonio Sáez Delgado.
Tradução disponível aqui.
José do Carmo Francisco

Cal
de José Luís Peixoto

A cal que dá título ao livro pode ser a cal da vida («a casa é caiada ano sim, ano não») ou a cal da morte, a do caixão dos mortos. Vida e morte, amor e ódio, vazio e esperança – são estes os limites das narrativas, dos poemas e da peça de teatro que integram este volume. As crianças correm pelas ruas da vila: «O céu das hortas é maior que o mundo: / a vila apresenta ruas calcetadas para / homens de sapatinho fino, mulheres / sozinhas e cachopos: eh, cachopo de má raça. / Vamos aos figos e passamos a vida: / a vila às vezes é desenhada por esta aragem que é o lápis de um carpinteiro.» Os velhos recusam a velhice («sentia-se tão velha como se tivesse nascido no primeiro dia do mundo») e às vencem conseguem vencer o tempo: «Nem o homem nem Ana tinham um único cabelo branco.» Também recusam a realidade servida pela televisão: «só mostram este homem a falar, bem podiam mostrar uma praia ou um casamento.» Também recusam a solidão e o vazio: «Porque chora vossemecê Ti Carlota? Já não presto para nada. Não diga isso, Ti Carlota, a gente gosta muito de si.» A peça de teatro tem cinco protagonistas, todos com mais de 70 anos. A partir da solidão da aldeia («às vezes até me parece que isto tudo é uma espécie de sonho») chegam à esperança: «Tanto que eu esperei por isto, meu amor bendito. Agora podemos descansar, temos a vida toda à nossa frente.» O autor não precisou de chegar aos 80 anos para entender a sabedoria da vida que interessa, a do amor: «Em natais, festas de aniversário com pão-de-ló ou em casamentos, as mulheres de 80 anos reúnem uma assembleia de afilhadas solteiras e explicam-lhes que a vida é transparente e que o passado, fechado em armários que rangem durante a noite, brilha às vezes, como as pratas dos chocolates que entregam nas mãos das crianças.»

(Editora: Bertrand, Capa: Vera Braga)
José do Carmo Francisco

Um neto para Vó Mam

Um amor que continua
Nossa vida é uma estrada
Moramos na mesma rua
Numa cidade inventada

Um amor multiplicado
Em trinta anos inteiros
Chega forte a todo o lado
Levado por mensageiros

Cada neto uma bandeira
Ministros de uma nação
Todos juntos numa eira
Cabem no seu coração

Na colheita das canseiras
As lágrimas são cereais
As tulhas são verdadeiras
E cheias, não levam mais

Na casa da sua costura
Esquina do nosso destino
Há um olhar que procura
O retrato dum menino

O amor que não termina
Imensa a rede de afecto
No coração feito oficina
Há lugar para um bisneto

Algures na Grã Bretanha
Entre um rio e um jardim
Há um retrato que apanha
A luz dum amor sem fim

Se aqui estivesse pedia
Avó, a bênção da Paz!
E a Vó Mam respondia
Deus te abençoe, Tomás!

Poderão ler no Triplov o texto da minha intervenção sobre Sebastião da Gama, apresentado ontem na sessão ocorrida na Câmara Municipal de Setúbal, no âmbito do "Dia Municipal da Arrábida", colocado nas comemorações do 84º aniversário natalício do autor de Serra-Mãe. Boa leitura!

Tenho andado um pouco ausente desta casa. Assuntos pessoais e profissionais me têm obrigado a isso. Assim continuarei entretanto até final desta semana.
No próximo dia 10 de Abril - Dia da Arrábida no município de Setúbal - irei proferir uma palestra sobre Sebastião da Gama, a qual será apresentada no salão nobre da Câmara local, pela 16 horas, integrada na homenagem a Joana Luísa da Gama, viúva do poeta. Devido ao trabalho de preparação da intervenção não poderei, assim, actualizar este blogue nos próximos idas. Espero no entanto por todos vós em Setúbal. Até breve!