Antologia “Fanal”

JOSÉ EMÍLIO-NELSON


Arte Menor (Panfleto)

Contra os touros de morte todos estamos uma vez por dia
quando nos visita o anjinho do hissope a espargir.
Contra o boxe, mas porquê? Animal para animal. Duros golpes.
E contra o parir? Haverá alguém, entre nós, que não glorifique as dores
infectas: dor acastanhada, cinzenta, doirada, rubra
(quer dizer, fezes, urina, etc.)?

Chá e velhas senhoras, das que têm a voz
descalça em carvão, as da Emissora Clássica.
A falar, a falar do padre que fechou os lindos baldios da Penha
farto, lia-se no jornal regional, de apanhar preservativos.
- Havia inveja nisso? (Quem disse?)

As pernas são mais velhas que a cabeleira
que esconde os olhos cavados.
O toucado só é belo porque comprado da cor do panfleto
que recomenda o produto fantástico, fantástico.
Lábios pintados de fina porcelana. As pestanas bizarras,
isso sim, a glória da cosmética.
- Os anos não perdoam, diz no cabeleireiro.
- Minha-senhora-com-rosas-rendadas-e-vidradas,
sem meias ainda rompe solas.

(nº 4, 28/07/2000)
SÓ VISTO

Segundo informa o Da Literatura, a Oficina do Livro quer impedir a distribuição de um livro da Objecto Cardíaco que desmascara os embustes de Margarida Rebelo Pinto. Para isto, conseguiu uma providência cautelar.
Será que o livrinho põe em causa as crenças religiosas de tão galharda moça? Será que, depois da providência cautelar, teremos um assalto às livrarias por parte dos fanáticos de tão ilustre escrevinhadora, tendo em vista a destruição dos livros de George?
Aguardemos os acontecimentos.

Vozes do Brasil

RAFAEL ROCHA DAUD

Poemas


II

O que faz um homem
que atravessou os séculos
pela porta dos fundos
e entra no último
por uma de escritório?

Que lhe diz respeito
a humanidade,
essa fileira de cidadãos,
um uísque, um carro
e ele mesmo?

Que tal uma batida,
um acidente
um erro crasso,
uma presença inefável, uma ausência,
uma seriedade — vital — ao menos?

Uma curva e uma garrafa —
é preciso uma morte para existir?



III

Mesmo que eu não saiba o que se esconde
e eu busque uma solução gramatical
e um fazer poético
e uma facilidade orgânica

e eu me revolte contra a completude
e eu me desfaça de meus braços
e um exército, um exército,
ainda após muitas noites

e eu suporte essa redenção
— porque algumas palavras
mereciam bastar
e apenas o grande bastardo
as tinha por obrigação —

Quando a redenção, um juízo,
nenhum tormento

— uma briga e um tiro —
é preciso muito muito barulho
antes de se ouvir
silêncio

(Na imagem: díptico de Nicolau Saião. Estes e outros poemas podem ser lidos no Arquivo de Renato Suttana.)

UM MAU EXEMPLO

A Câmara Municipal de Sesimbra decidiu promover um concurso de mentiras (!) dirigido aos alunos do 3º Ciclo e do Secundário. Sobre esta inconsciente e perigosa promoção de um contra-valor, gostaria que lessem o meu texto no Sesimbra e Ventos. Obrigado!
POETAS NOVOS DE PORTUGAL

TIAGO GOMES


Superficialidade

A capa superficial
fina e invisível que paira em cima de nós
e que nada tem a ver com a super felicidade
ou com a aparente facilidade moderna
mas com essa forma que hoje temos
de não tocar o pó da mesa com os dedos
para não a riscar.

(in Caixa Negra de Avião Desviado por Ataque Terrorista, 1993)



Está atenta aos teus afluentes

Está atenta aos teus afluentes
não deixes que a corrente transborde
a poluição os destrua
as barreiras os dominem.

Está atenta aos teus afluentes
são os teus braços,
deixa o grande rio
fluir a sua corrente aos afluentes.

Está atenta aos teus afluentes
não os deixes secar, nem os desprezes,
está atenta a este teu afluente
que toda a corrente flui para ti.

(idem)



Poema

A mãe descascava favas
como num quadro impressionista
o bom filho Tomás ajudava na sala
com vagar e paciência, conversando com ela
o filho rebelde, Buga, eriçava os cabelos
e fazia ruídos provocadores entre os dentes.
Os mais velhos estavam fora
nas ruas pintando cerâmica.

Hoje fui a casa deles
e vi um saxofone triste deitado no quarto
e uma casa deserta.
A mãe, pequena mas tão grande, morrera.
Depois da morte da mãe, não existe mais ninguém.

(in Callipole, nº 13, 2005)


Tiago Gomes nasceu a 31 de Agosto de 1971. Publicou quatro livros de poesia, entre os quais se destacam Caixa Negra de Avião Desviado por Ataque Terrorista, Cianeto e Viola-me Eléctrica. É editor da revista Bíblia, tendo colaborado noutros jornais e revistas, como Inimigo Rumor e 365. Tem poemas musicados pelos Naifa e Linha da Frente.

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

Álvaro Carvalheiro
ou os limites da terra e da água

Há nas fotografias de Álvaro Carvalheiro (Torres Novas, 1938) em exposição no Centro Comercial Fonte Nova de Lisboa a insistente presença do Homem em diálogo com a Natureza. Desde 1999 que acompanho com interesse e emoção o seu percurso de poeta da imagem. Autor de poemas. Que outra coisa não são as suas fotografias destinadas a ligar de novo aquilo que o tempo separou. E todo o poema é esse projecto de religação. Nas fotografias de Álvaro Carvalheiro o Homem defronta o Mundo e as suas mais inquietas perguntas em três Cabos (o Cabo Carvoeiro, o Cabo de São Vicente e Cabo da Roca) e numa praia – a mítica Praia da Consolação. A praia para onde ia todos os anos o poeta Ruy Belo. As silhuetas que enterram os pés na areia ou que fazem a pontuação humana junto aos limites da água e da terra são vírgulas, reticências e pontos de interrogação em forma de gente. A vida e a morte, a alegria e a tristeza, a luz e a sombra, a memória e o esquecimento – são estas as quatro linhas de força que empurram para a ribalta os protagonistas das fotografias de Álvaro Carvalheiro. É um mundo envolto em harmonia, em paz, em bem-estar. A objectiva do fotógrafo captou não apenas um registo mecânico mas a carga subjectiva dum ser humano nas perguntas mais essenciais: quem somos, donde vimos, para onde vamos? Não por acaso entre terra e água, em silhueta porque somos pó da terra mas é a água que nos dá a vida. Raúl Brandão dizia que a ternura é húmida. Álvaro Carvalheiro vem dar razão ao nosso escritor de há cem anos. Porque as suas belíssimas fotografias respiram a humidade da ternura com que a sua objectiva aborda e regista o homem entre a terra e a água.

(Na imagem: uma fotografia de Álvaro Carvalheiro)
Vozes de Espanha

SALVADOR GARCÍA RAMÍREZ


Deslumbramento

As cores têm
a temperatura da chuva,
o agudo contraste
do sol inesperado.
Olham para poente.
Ninguém sabe se o Tejo
sai, ou se se introduz.
As lembranças erguem-se
do rosa ao precipício
por exílios opacos.

Quando poderemos renunciar
ao testemunho?

Entreaberta, Alfama seduz-nos
como um desígnio,
fermentado nos poros das asas,
com profundos vazios, com latidos
desmoronados como impérios.

Quando poderemos regressar
aonde fomos
se nada nos reúne,
se o verde se fez luz
como o assombro?



Borba

Guardarás a sua silhueta para sempre:

um sinal ao abrigo
da estela de um galo,
uma calma nas margens do século,
o caldo para apurar numa enchente
de adegas movediças,

a abundância, o termómetro,
uma plataforma interior,

somente branca,
acocorada no perfil da planície.



O infinito

Com nostalgias e outubros
traçaria uma escada
para o lado do azul e das barcas.

Miradouros, para além do teu olhar,
onde cheguem memórias com as ondas
nos dias em que ninguém te acompanha,
para o tempo quebradiço em que fazes nascer a saudade.

(Poemas inéditos, traduzidos por RV, do livro O Tempo dos Eléctricos, inteiramente dedicado a Portugal. As palavras em itálico foram escritas em português no original.)
três poemas no
DIA MUNDIAL DA POESIA


FERNANDO PESSOA

Enquanto a tua Musa, sem compostura,
Se abre aos leitores, ansiosa, numa sessão
A minha, do auditório, testa a finura
Com tímida mas fidelíssima expressão.

O mais feliz já vejo, mas qual o melhor
Só quando vier o Futuro será mostrado;
O saber geral relatará a prova
Questionando o melhor do que está reservado.

Então ele irá, por si só, decidir
E, livre da pressão do jogo actual,
Separando o bom do melhor, atribuir
A recompensa exacta da fama final.

Até que se conheça essa decisão
Não tenho pressa, inda que durma então.

(in Poesia Inglesa II, tradução de Luísa Freire)



ARCHIBALD MACLEISH

Ars Poética

Um poema deve ser palpável, silencioso,
como um fruto redondo.

Mudo
como os velhos medalhões ao toque dos dedos.

Silente
como o gasto peitoril de uma janela em que cresceu o musgo.

Um poema deve ser calado
Como a voz dos pássaros.

Como a luz que sobe,
um poema deve ser imóvel
no tempo,
deixando, memória por memória, o pensamento,
como a lua detrás das folhas de inverno;

deixando-o como, ramo a ramo, a lua solta
as árvores emaranhadas na noite.

Um poema deve ser imóvel
no tempo
como a lua que sobe.

Um poema deve ser igual a:
não a verdade.

Para toda a história da dor,
uma porta franqueada e uma folha de ácer.

Para o amor,
as gramíneas inclinadas e duas luzes sobre o mar.

Um poema deve ser,
e não significar.

(in Rosa do Mundo, Assírio & Alvim)


e. e. cummings

mergulha nos sonhos
ou um lema pode ser teu aluimento
(as árvores são as suas raízes
e o vento é o vento)

confia no teu coração
se os mares se incendeiam
(e vive pelo amor
embora as estrelas para trás andem)

honra o passado
mas acolhe o futuro
(e esgota no bailado
deste casamento a tua morte)

não te importes com o mundo
com quem faz a paz e a guerra
(pois deus gosta de raparigas
e do amanhã e da terra)

(in livrodepoemas, Assírio & Alvim)

MORREU FERNANDO GIL

Morreu ontem em Paris o filósofo Fernando Gil. É com uma pena imensa que o escrevo. Em temos de confusão no Ocidente, em que muitos estão dispostos a vender a liberdade de expressão às postas, em que tanta gente admite o inadmissível por respeito a uma falácia chamada "multiculturalismo", fazia-nos falta o seu pensamento e os seus ensaios.
A melhor homenagem que podemos prestar-lhe será entrarmos na livraria mais próxima, comprarmos a sua obra Acentos (editada pela Imprensa Nacional) e deixarmo-nos convencer por ela.
REALISMO NA POESIA

João Luís Barreto Guimarães escreveu no Poesia & Lda. "Acerca do Subjectivismo". Jorge Melícias respondeu no Da Literatura com "Anacronismos". A polémica promete. A minha posição aproxima-se da de Melícias (e não tenho medo que me chamem fundamentalista por assumir esta posição). Voltarei ao tema.

PS - O assunto permanece aceso. Agora na caixa de comentários a um poema de Melícias publicado por Barreto Guimararães. A não perder!
CINEMA DESCARTÁVEL

Não sou especialista em cinema. Tenho sobre a chamada “7ª Arte” um olhar impressionista que se afasta da dissecação crítica. Gosto ou não gosto de um filme em função de critérios, digamos, poéticos. Posso apreciar ou repudiar a sua forma, mas só consigo analisar o seu conteúdo.
Outro olhar sobre este assunto tem o poeta brasileiro Guido Bilharinho, autor de vários livros sobre cinema. Por isto decidi partilhar convosco alguns parágrafos da sua obra
O Cinema de Bergman, Fellini e Hitchcock, que revelam um olhar lúcido sobre a ficção, nomeadamente a cinematográfica, com o qual me identifico. Devem ser lidos com atenção.


“O leitor e o espectador comummente consideram bons os filmes e livros de ficção quando a estória, o enredo, agrada-lhes. Esse o critério que os norteia. Na realidade, falta de. / Em si, a estória que se conta e os factos, a acção e os acontecimentos que a recheiam não têm a importância, nem ao menos secundária, que se lhes atribuem. Normalmente só atrapalham. [...] / Toda a enxurrada de filmes que normalmente tem sucesso público e nos meios de comunicação [...] não passa de simples produção industrial, sem nenhum valor artístico, cultural e humano. / A indústria e o comércio cinematográfico possuem estrutura que, apenas para simplesmente sobreviver, [...] necessitam de produção e comercialização permanentes e em série, já que essa grande máquina, mesmo quando parada ou sub-utilizada, consome enorme soma de recursos. / Daí a necessidade vital de realizar e exibir filmes comercializáveis, de amplo agrado e apelo popular, com o tríplice objectivo de remuneração do capital investido, de sua própria manutenção e de lucratividade, esta, aliás, a finalidade básica e razão primeira da sua existência. / Há outra porém. É que o oferecer à sociedade tais obras descartáveis, ainda a mantém ideologicamente conformada e alienada, já que afastada do conhecimento e discussão das questões e problemas realmente importantes. / Assim, agindo nas articulações desse círculo vicioso, o sustenta, desenvolve e aprofunda, quando não o cria em setores novos. Alimentando o gosto superficial e inconseqüente do público e realimentando-se desse mesmo gosto, a avassalante indústria de entretenimento aumenta cada vez mais a sua influência, já que seus produtos passam a ser indispensáveis, entre outros motivos, para preenchimento do tempo de lazer. / Para atendimento, pois, desses objectivos, tanto no sector cinematográfico quanto no editorial, no musical, etc., impõe-se a produção massiva de artefactos de entretenimento despidos de criatividade, profundidade, complexidade e, principalmente, de qualquer compromisso com os valores artísticos e culturais e com a verdade e realidade humanas. / Ao invés disso, o que se tem, como já dito, são meros produtos comerciais com acção, acontecimentos, violência e trama urdidos e desenvolvidos sobre falsos problemas ou, quando não e pior, sobre questões efectivas, porém, tratadas com a falsidade, a superficialidade e leviandade que os referidos objectivos determinam. / Todavia, é necessário que se saiba e se proclame sempre (responsabilidade dos professores de todos os graus e em geral por eles exercida em sua actividade de elo entre o conhecimento e a juventude), que na arte ficcional (romances, contos, peças de teatro e filmes), o que menos importa é a estória como sucessão de actos e ocorrências ou como simples trama. Tais factores, por sinal, por si sós, não configuram arte. Apenas compõem o género ficcional, distinguindo-o, por exemplo, da poesia e do ensaio na literatura e do documentário ou da reportagem no cinema. / O que é essencial é o que se faz disso e com isso. É o tratamento artístico e a orientação, a profundidade e a amplitude conteudística que se lhe imprimem.”

Estátuas (3)

VILA NOGUEIRA DE AZEITÃO / ROSSIO

Em Vila Nogueira de Azeitão, concelho de Setúbal, sopé da Serra da Arrábida, um grupo de cidadãos constituiu uma associação “dos Amigos de Sebastião da Gama”. Deseja reunir fundos e vontades para edificar na localidade um monumento condigno à memória do poeta de Serra Mãe. Mas, dirá quem conhece bem a vila, já existe ali uma rua com o nome do escritor, uma biblioteca-museu que o homenageia... No Portinho da Arrábida já lá está um memorial, perto do Forte de Santa Maria, onde Sebastião viveu vários anos... Não é suficiente, afirmam, convictos. (E eu concordo...)
Querem ainda, com diversas iniciativas, dar a conhecer quanto escreveu. Mais do que monumentos em pedra ou bronze, será esta a melhor homenagem que podem prestar a Sebastião da Gama. É sempre esta a melhor homenagem que alguém pode prestar a um escritor, que precisa pouco de monumentos, mas muito de leitores que o compreendam.
Antologia “Fanal”

VALTER HUGO MÃE



poema para um corpo
deitado em cama larga
a chamar por mim

1
persegue-me à toa. nunca
pares para pensar.

2
esquece as ruas. os teus
caminhos estão em
mim.

3
abre os olhos como o postigo
de um pequeno e delicado esconderijo, e
deixa o vento entrar.

4
recolhe o riso e fragrância terna
das flores na primavera. afasta
os lábios em pétalas vermelhas de
paixão. deixa-me roubar-te esse húmido pólen.

5
deixa que a sede se
sacie à tona dos teus olhos, onde
pretendo cegar.

6
desenlaço o corpo do teu e
demoro longo tempo a
perceber os meus contornos, assim
como a estátua demora a
esquecer a forma desfigurada
da pedra que lhe deu origem.

7
se te alheares, visito-te por
dentro de mim e juro
não acordar enquanto
não vieres pedir desculpa.

8
fico só, sabendo
que todos os objectos têm a
forma do teu corpo, e
todos os sons se reconduzem
à tua voz. não deambulo
pela casa – excessiva de ti – fujo-lhe
na ausência de movimento e
no desejo de ficar absolutamente
só. lembro-me de como não gostas
de me ver chorar.

(nº 2, 16/6/2000)
A LUZ DAS IMAGENS

Através do Talvez uma Península, da Teresa Lopes, descobri uma página em que brilha a luz das imagens, através da fotografia: Chema Madoz. Visitem-no e não perderão o vosso tempo.

Estátuas (2)

SETÚBAL / PRAÇA DE BOCAGE


Do alto do seu pedestal, Manuel Maria Barbosa du Bocage “olha” para a cidade que o viu nascer. Quiseram pô-lo assim, com os olhos voltados para a igreja de São Julião (esse templo com ar de catedral atarracada, a que o manuelino dos portais confere dignidade) e para o rio Sado, hoje escondido por prédios e avenidas. Quem o fez, não deveria ser grande apreciador da sua poesia... Se a apreciasse, teria gravado na base do monumento um poema seu – e nunca a versalhada de pé quebrado que lá está inscrita.
Comovem-me sempre estas homenagens, sobretudo quando as vejo póstumas. É raro vermos um poeta estatuado em vida, homenageado enquanto vive. (São seres demasiado perigosos, sem papas na língua.) É mais fácil reverenciar a pedra ou o bronze, que não falam nem se mexem, do que um homem vivo, que pode mandar para sítios impróprios -ou esbofetear... - os homenageadores, talvez interesseiros.
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

A serpente cega
nos dedos de Fernanda

E de súbito descubro o rosto de Fernanda na pequena multidão que cruza o Largo das Duas Igrejas no Chiado. De um lado a Paroquial da Encarnação; do outro lado a igreja privativa dos italianos de Lisboa. Reparo numa serpente cega num dos dedos de Fernanda e lembro-me, de imediato, da Margarida, a heroína do livro Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio. Margarida no convés de um navio em viagem entre a Horta e Lisboa a conversar com um dos Serpas que fez parte, em tempos, da melhor linha de backs do Fayal Sport Clube nas tardes sem fim do Relvão da Doca. O mítico lugar onde os pioneiros do futebol na Ilha lançaram as raízes do Sporting Clube da Horta, do Fayal Sport Clube e do Angústias. Este lugar onde nos encontramos e eu admiro a beleza da serpente cega num dos dedos de Fernanda era ponto de passagem de João Garcia quando o jovem aspirante regressava do quartel na Junqueira e, depois de ouvir os últimos boatos nos vários cafés do Rossio, subia por aqui até à Rua da Rosa, ao quarto alugado por cima da capelista sempre à espera de uma carta de Margarida. Agora reparo que o dia em que escrevo é o Dia Internacional da Mulher. Não sei porquê mas a verdade é que dos dedos de Fernanda sai um suave cheiro a massa sovada. Afinal já não estamos no Largo das Duas Igrejas mas sim dentro de um romance. Fernanda está com pressa, olha para o relógio e explica que tem que ir abrir as portas da sua livraria. Eu tenho as minhas obrigações e os meus compromissos. Mas o cheirinho da massa sovada permanece como se tivéssemos os dois, eu e Fernanda, saído do lugar determinado do encontro no Largo das Duas igrejas e entrado logo a seguir nas páginas dum romance inesquecível.

Antologia “Fanal”

ALBANO MARTINS


Ilhas Cies, no Mar de Vigo

Se fosses gaivota,
seria aqui que farias
o teu ninho. Foi
aqui, certamente,
na vulva destas águas, fecundadas
por Zeus, que nasceu
Afrodite. E foi
aqui, por certo, no meio
destas sarças que Leda
também por Zeus
foi fecundada. E era
aqui que tu
nascerias de novo. Ou foi
aqui que nasceste
pela primeira vez. Por que motivo
ninguém sabe. Mas sabe-lo
tu e sabe-o, melhor do
que tu, seguramente,
Afrodite.

(nº 3, 14/7/2000)

Estátuas (1)

LISBOA / LARGO DO CHIADO

É inevitável sentirmos nojo perante a barracaria que, à frente da Brasileira do Chiado, se arma todos os dias, abafando a estátua de Fernando Pessoa. O que poderia ser um local de contemplação da beleza de uma cidade, tornou-se numa feira porca para turista estúpido usufruir. Alheio a tudo, Pessoa está noutro lado. No entanto, cada sujeito que ali se senta - naquela esplanada ou naquela mesa-falsa, ao lado da figura sem-alma de Fernando Álvaro Alberto Ricardo Bernardo Soares Reis Caeiro de Campos Pessoa - cospe no poeta, escarra na sua obra, que deveria merecer reverência e leitura e nunca este auto-de-fé, lento, em efígie.
Do alto do seu pedestal, do outro lado, outro poeta, António Ribeiro Chiado, aponta e parece-se rir-se. Perante esta javardice consentida pela Câmara Municipal de Lisboa (desculpem-me o termo demasiado chão...), talvez o riso seja a melhor atitude. Nos tempos que correm duvido, no entanto, que a rir se corrijam os costumes.

milagre


a água faz crescer a luz e a distância.
a tempestade devolve, sem chumbo,
esse sangue que o movimento acrescenta
ao coração – da montanha.

ao alcance da mão, a cidade circula
(mesmo nos dias mais frios)
quando a chuva invade esta casa,
revestindo esses seios de sombra e de calor.

não existe cidade. apenas desejo –
outra cidade, sem fogo, sem sangue,
com sangue e fogo nesses olhos sem sono.

a terra arde. a poeira acompanha essa linha.
o calor devolve, sem chumbo, essa seiva
que nunca quisemos perder.

o comboio circula dentro de nós. luz e distância
apagam o incêndio que devorou o coração.

a água dissolve a sede e a cidade.
outra cidade cresce – sem casas, sem frio –
guardando na memória o sal e o tempo
que hoje bebemos, sem filosofia.

(para Emir Kusturika)


PS - Há muito que não punha por aqui um poema meu. Aqui fica com votos de bom fim-de-semana. Até segunda!
HIPOCRISIA

Não assisti pela televisão à tomada de posse do novo Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. Nem pela televisão nem por outros meios, dado que não estive entre os mil convidados que apareceram no Palácio de São Bento.
Chegou-me, no entanto, aos ouvidos que o dr. Mário Soares, finda a cerimónia, deu de frosques e não foi ao beija-mão. Fez mal... Deveria saber que a política e a diplomacia são reinos de hipocrisia. É preciso beijar a mão aos chefes mesmo que os abominemos.




Antologia “Fanal”

EDUARDO OLÍMPIO


António Nobre

Serenidade, serena idade
Ai, quem ma dera no coração
A grande noite da clar(a)idade.
Uma sincera saudação.

Não ser silêncio, não ser coada
voz do saber, polpa de livro.
Ter um armário de risos brandos
Um sonho apenas, dúctil e vivo.

Serena idade, serenidade,
Talhada em ónix, ou amassada
de madrugada, de liberdade,
na liberdade da madrugada.

(nº 1, 19/05/2000)

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

Dissertação
sobre um nome
e um cravo na lapela

Gostaria de compartilhar convosco duas das mais surpreendentes prendas de aniversário que recebi este ano. O meu filho Filipe, jovem licenciado em História em vias de concluir um mestrado nessa área, resolveu procurar no Museu Britânico em Londres algo sobre o nome José Francisco. A resposta foi pronta: com esse nome morreu em 26 de Junho de 1917 um bombeiro de 29 anos no navio Serapis em resultado de um ataque vindo de um submarino inimigo. Ofereceu-me a foto do ecran e um texto a propósito que não resisto a transcrever:

Porque no tempo do mundo somos apenas chuva a cair sobre o Oceano. Se não podemos ser mais, apenas podemos ser outro. Outro destino, outro sentido que nos guia até ao momento último. Todas as vitórias desaparecem perante o escuro e o silêncio mas só pode sofrer quem as teve. Os outros viverão esse dia, apenas, como o dia em que deixaram de contar as horas dos dias. Aqueles que lutaram podem sonhar com a Memória dos seus dias e dos seus feitos no Coração dos seus.

A outra foto é a de um cravo vermelho no meu casaco e o texto reza assim:

Encontro sempre mais do que cravos. Porque essa totalidade incondicional tornou-se um exemplo. Presos num tempo sem sentido, encontramos luz não nas coisas mas nas pessoas. Buscando o bem, dando luz aos outros. Procurar o melhor que nos falta, suprir as faltas dos outros mas sempre mantendo o equilíbrio que uma postura correcta permite. Na força da flor que esconde a verdadeira cara da verdade, cai a luz de uma tarde de Abril. Tudo ilumina, tudo mostra, a verdadeira cor do cravo.

Fim de citação. Espero que tenham gostado desta crónica diferente.


Antologia “Fanal”

JOSÉ BENTO



Caminhava onde as ondas se enterravam.
E suas pegadas incitavam-no
ao serem logo devoradas:
olhava o longe até se ausentar
e nada o acompanhava, ninguém.

O nordeste contra a cara, hostil,
não fixava seu grito
o bastante para atingir a máscara
que um dia restituísse aquela hora,
partida ou regresso.

Prosseguia, abandonado
o que não chegara nunca a ser;
o chão – ora movediço ora cortante –
não lhe suscitava uma outra praia,
sequer um vale com lume, azul, uns figos:

para aí morar sempre amanhã,
sobrevivente dos incêndios sangrentos,
dos presságios cifrados
num livro ainda sem nome.
Senão talvez o seu, letras nenhumas.

*

Esgotamos o copo e saciamo-nos
por ser tão tenebroso
e o seu fundo,
traiçoeiro de espessura e turvação,
prometer a anulação que procuramos.

Lamentamos a ilusão e o esforço
para tragar esse amargor vazio
ao descobrirmos
que benévolo foi seu conteúdo.

Se não nos empeçonha
esse elixir astuto,
corrói-nos sabê-lo assim benigno:
já não ousamos confiar num outro,
nele demandar fuga ou abrigo,
por recearmos armado sempre tal embuste.

(nº 2, 16/06/2000 - na imagem, uma pintura de Nicolau Saião)
José do Carmo Francisco

Crónica para um menino
que também perdi


Escrevo-te, André, esta crónica triste descendo a Avenida Fontes Pereira de Melo no mesmo lugar onde há vinte e quatro anos chorei as lágrimas mais quentes e mais grossas pela morte do teu irmão Paulo. É esta estranha e repetida geografia citadina que me leva hoje a recusar as lágrimas e pensar em ti não no passado mas no presente.
Tenho em casa, algures perdida numa gaveta mas não perdida na minha memória, uma fotografia que tirámos na eira da casa da tua avó. É uma fotografia a preto e branco como, afinal, são todas as fotografias porque na verdade o nosso mundo não é a cores mas sim a preto e branco. Como aquela fotografia em que estamos todos felizes depois de um almoço de festa cozinhado naquele fogão que é um monumento culinário e naquela cozinha que é um santuário da gastronomia. Mais do que felizes, estamos juntos, todos juntos à volta da festa de aniversário da tua avó que eu abusivamente resolvi, entretanto, tomar como minha. Era Abril, o mês de todas as esperanças, depois de tantos anos de notícias censuradas, de músicas proibidas, de filmes cortados, de ruas sossegadas e de prisões cheias. Circulo hoje de mãos nos bolsos, cheio de frio e atónito perante a notícia da tua morte em Paris e a Avenida Fontes Pereira de Melo, onde soube da morte do teu irmão Paulo em 1982, esta avenida, transformou-se, de repente, num quadro cor de cinza onde o teu nome está escrito e não se apaga.
Quero que saibas, André, que continuamos todos naquela fotografia a preto e branco tirada à volta da avó na eira numa tarde de sol em Abril. Vamos continuar todos nessa fotografia porque ao lado da avó somos felizes e não há preço a apagar nem pelos beijos nem pelas lágrimas.

Diário em Sesimbra

Desde 22 de Fevereiro que mantenho no Sesimbra e Ventos um diário que, não sendo apenas sobre a "Piscosa", terá no seu concelho um lugar de partida. Seria imodéstia afirmar que vale a pena visitar esse blogue pelos meus apontamentos simples. Há no entanto muitos motivos de interesse que justificam uma visita. Não perderão o vosso tempo.
VENTOS E TEMPESTADES

A morte no Porto de um adulto às mãos de um grupo de adolescentes e pré-adolescentes espantou muita gente. Muita gente, mas não toda a gente. Houve muitos cidadãos para quem o triste acontecimento foi apenas a confirmação de algo que há muito esperavam. Outros semelhantes já haviam ocorrido em países de onde importámos uma postura irresponsável perante a infância. Era uma questão de tempo suceder algo de semelhante em Portugal.
Como a esmagadora maioria dos docentes deste país, durante os anos que durou a minha formação, fui alvo de uma lavagem cerebral. Os autores da barrela, com pouca experiência prática e muitas leituras serôdias, tentaram convencer-me da inocência das crianças, de que o sistema educativo deve submeter-se às “necessidades” do aluno, de que a aprendizagem deve ser lúdica, de que os valores e o conhecimento são relativos, etc..
Só quanto entrei no sistema como professor me apercebi de que a ladainha não correspondia apenas a teorias ultrapassadas (há muito abandonadas em países mais clarividentes, onde haviam nascido) pregadas por gente lírica. Comecei a ter consciência de que tudo aquilo era apenas um ramo da filosofia defendida pelos burocratas que governavam e governam o Ministério da Educação – na sua maioria rapaziada nova quando ocorreu o 25 de Abril, isto é, cidadãos que não arranjaram outra forma de reagir ao cinzentismo da Instrução Pública salazarista se não importando filosofias educativas que já haviam sido colocadas nas prateleiras empoeiradas da História da Educação. Entrei no Sistema Educativo português, confesso, com a vista enublada por toda esta lavagem. Mas, como é bom de ver, cirros e nimbos foram-se dissipando a pouco e pouco, à medida que a realidade do quotidiano escolar se foi sobrepondo às teorias paradisíacas em que fôra mergulhado. E lá comecei a adaptar-me, ou seja, a produzir uma síntese dum olhar realista sobre o processo de ensino-aprendizagem com a doutrina defendida por senhores e senhoras que nunca lidaram de perto (ou raramente lidaram) com uma turma.
Nessa altura tomei ainda contacto com outra dimensão da educação: a relação das famílias com a educação das suas crianças. Apanhei de tudo: pais interessadíssimos e saudáveis no seu relacionamento com a escola, com os professores e com os seus filhos; gente humilde que me emocionou, tanto o carinho que dedicavam aos meninos, apesar de dificuldades sociais, culturais ou económicas; cidadãos rigorosos com consciência de que educar implica disciplina, rigor, responsabilidade e exigência; encarregados de educação sobranceiros que, apesar de semi-analfabetos, “arrotavam postas de pescada”, normalmente saídas daquelas colunas em que “especialistas” pregam à multidão ignara; familiares que nos levavam a canonizar os filhos (com pais daqueles, os filhos pareciam anjos); figuras repugnantes que – fosse Portugal um país justo – há muito teriam os seus filhos entregues a famílias de acolhimento ou de adopção.
Ao longo de dez anos de serviço, infelizmente, vi crescer a promoção da irresponsabilidade e da impunidade entre os alunos. Caiu-me o calvário em cima, como é costume dizer-se, quando tive que instruir processos disciplinares. Só nessa altura tomei consciência de quanto o sistema protege os prevaricadores (quem lida com crianças sabe de quanta crueldade são capazes) e desprotege as vítimas de insultos, de chantagens, de agressões físicas. Estou à vontade quando escrevo, pois vários anos trabalhei voluntariamente com turmas de Currículos Alternativos, com rapazes e raparigas à beira da marginalidade.
Por toda esta experiência (curta, se comparada com a de cidadãos muito mais calejados) não fiquei surpreendido com o assassinato, no Porto, daquele cidadão brasileiro. A complacência e a irresponsabilidade que tem sido promovida há décadas tinha que dar resultado. Semearam-se ventos, colheu-se agora uma tempestade. Quantas virão ainda?

Um iate, um cais, um copo de gin
(crónica de José do Carmo Francisco)

Voltei as costas ao bulício da parte velha da cidade, aos sacos que cheiram a compras e à pressa das pessoas nas escadas rolantes dos armazéns. Uma pequena viagem de Metropolitano é o suficiente para chegar ao Mar da Palha. Com a ponte Vasco da Gama à direita o Peter lá está à esquerda à minha espera. Um iate, um cais e um copo de gin – eis o lema que, desde sempre, fixei. Não tenho iate, cheguei aqui muito prosaicamente de Metropolitano mas tenho à minha frente um cais e um copo de gin. Junte-se um livro e uma tosta mista feita com aquele pão tão especial e temos programa para uma tarde bem passada no Peter do Parque das Nações. O dia começa a cair muito cedo. O cinzento vence o azul. Acendem-se as primeiras luzes do lado de lá. Sei muito bem que tenho à esquerda Alcochete e logo a seguir Samouco, Montijo, Barreiro e Seixal mas o meu espírito diz-me que ali em frente tenho na verdade a Ilha do Pico. As luzes do lado de lá podem ser da Madalena. Estou sozinho na mesa de quatro mas tenho à minha volta uma solidão povoada. Estão aqui comigo mesmo sem ninguém os ver a Eduardina, o Urbano Bettencourt, a Zezinha Lacerda, o Carlos Lobão, o Sidónio Bettencourt, o Emanuel Jorge Botelho, o Álamo Oliveira, o J.H. Santos Barros, o Emanuel Félix. E todos. E todas as vozes. E todos os livros. E todos os filmes a começar por Gente feliz com lágrimas de João de Melo e Zeca Medeiros. Sem um iate mas com um cais e um copo de gin eu posso convocar a paisagem e o povoamento dos Açores aqui no Parque das Nações. E ser feliz. Mesmo se for apenas nestes momentos de alegria breve numa tarde cor de cinza.
ANA BLANDIANA
(Roménia)


NEC PLUS ULTRA

Mandaram-me procurar-te
E eu só queria a procura.
Nem sequer tinha pensado
No que faria contigo
Se te encontrasse.
Punha-te dentro da terra como uma semente?
Dava-te de comer como a um animal doméstico?
Pensando em como usar a pele e a carne,
A lã e o leite?
Ou antes, deixava-me devorar
Como se fosses uma fera?
Ou como numa floresta
Perdia-me em ti, cheia de medo?
Ou como num abismo
Deixava-me cair sem lhe adivinhar a profundeza?
Ou como num mar
Sepultava-me nos peixes?
Mandaram-me procurar-te,
Não encontrar-te.