ESTA ESTRADA CHEGOU AO SEU DESTINO.
PODEREMOS NO ENTANTO CONTINUAR A CAMINHAR JUNTOS EM:

ou

AGRADEÇO A TODOS QUANTOS ME LEVARAM A VIAJAR
NESTE LUGAR AO LONGO DE SEIS ANOS.
ENRIQUE VILLA-MATAS E O MAIS
(A partir de uma diálogo in www.facebook.com)



«Hasta no hace mucho las grandes derrotas literarias tenían prestigio, pero últimamente, en pleno apogeo del culto al éxito, el fracaso ha pasado a ser simplemente un puro y duro fracaso; es más, para cualquier escritor actual es una amenaza permanente, incluso ya desde su primer libro.» -  Enrique Villa-Matas

Se um escritor ou um poeta se leva a sério e acredita no que escreve e publica, se um autor cria contraliteratura e não literatura - nunca poderá considerar uma derrota como um fracasso.


Luís Costa
Caro Ruy, na poesia não há derrotas. Há talvez poetas que se consideram derrotados. Por exemplo quando um poeta quer sido lido à força toda e o não é, ou quer ser reconhecido, ou quer fazer dinheiro com a poesia. Coisa absurda e caricata. ...É claro que um prémio faz bem ao ego e também à carteira. Mas havemos de reconhecer que nem sempre os poetas muito lidos e premiados são os melhores. Quem ama a poesia , faz poesia, não em nome do poeta, nem dos fãs, mas sim em nome dela, da poesia, e sendo assim jamais se poderá considerar um fracassado. Para além do mais a poesia nunca será uma coisa popular, ou seja, coisa para fãs e claques ruidosas. E é bom que seja assim.

Ruy Ventura
Luís, a partir do momento em que alguém quer ser lido a toda a força passa a ser PUETA, o mesmo acontecendo (ou ainda pior) quando acha que pode ordenhar a vaca das patacas escrevendo versos ou quando submete tudo quanto faz às leis da noto...riedade pública (ou fama)... A Poesia é uma coisa, a Literatura outra completamente diferente. Infelizmente, em Portugal, anda tudo confundido. Versos empilhados não são um poema, "livros são papéis pintados com tinta"... A Poesia é feita de poemas não de poetas. Daí a ausência de equivalência entre a derrota e o fracasso. A verdadeira Poesia - uma das formas possíveis da Contraliteratura - pertencerá sempre ao domínio da Derrota. Fracassada só será quando entrar no conformismo, no uso de uma linguagem que não questiona, na previsibilidade, na comodidade cultural.
No que respeita aos prémios, só valem como incentivo ou, noutros casos, como pão para a boca. Quem escreve também come, também se veste e precisa dum tecto. Tudo o resto vale o que vale, dependendo do espírito com que é encarado. Pessoa ficou em segundo lugar num prémio literário a que concorreu - hoje sabe-se de quem era o primeiríssimo lugar. Mas não vale a pena sermos ingénuos: as regras de levam à notoriedade pública nada têm a ver com a qualidade da obra. Por isso admiro tanto alguns escritores que a atingiram sem serem jornalistas, professores universitários, parentes ou amigos de escritores influentes, críticos literários, etc..

Luís Costa
Caro. É isso.

Márcio-André
Boa...

Ruy Ventura
De qualquer modo, Márcio, é preciso acreditarmos no que fazemos. Caso contrário, não vale a pena continuar.

Márcio-André
Sim, sim... eu tinha entendido a frase errado. Mas das duas maneiras está certo... Estava pensando nos que se levam à serio DEMAIS... levar-se a sério é importante, contanto que isso não anule o sentido de autoironia e a constante dúvida quanto a possibilidade de sermos realmente sérios... Entendeu? Continuar a gente continua por necessidade, por paixão...

Ruy Ventura
Auto-ironia... Tanta falta faz!
Levar-se a sério é não andar nisto para se enganar e enganar os outros - ou, como dizem alguns, "porque gosto muito de escrever"... Antes de alguém publicar um livro deveria passar por vários tormentos até decidir definitivamente. Infelizmente somos poucos aqueles que fazemos como o Fernando Guerreiro, que publicou livros pagando-os do seu bolso e sem sequer lá inscrever o seu nome.
MAIS ALENTEJO
http://ruyventura.blogspot.com/2010/11/mais-alentejo-o-galardao-do-premio-mais.html
A ESCOLHA DE MÁRCIO-ANDRÉ

O poeta brasileiro Márcio-André resolveu partilhar com os leitores do seu blogue um poema meu. Espero que também vos agrade!


JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA
 DE A A Z

Estranhamente (?), o silêncio caiu sobre uma antologia de homenagem ao poeta José Agostinho Baptista. Editou-se no Funchal em 2009, como nº. 27 da revista Margem. A iniciativa deveu-se à organização de António Fournier e contou com a colaboração de, entre outros, Oliverio Macías Álvarez, Francisco Belard, João David Pinto Correia, Joaquim Cardoso Dias, António Lampreia, José Alberto Oliveira, Patrícia Reis, Francisco José Viegas, José Manuel Vasconcelos e João Rui de Sousa. Na prática, é muito mais do que um livro de louvor. Quem queira conhecer a obra de Baptista e quem a assina tem aqui um instrumento indispensável. Os 500 exemplares da edição madeirense mereceriam uma publicação mais ampla em território continental.
Estranhamente, contudo, o silêncio caiu sobre este livro. Estranhamente? Talvez estas palavras de José Agostinho Baptista numa entrevista notável pela sua verticalidade justifiquem a omissão da tropa literária:

"[...] Se se está conforme ao sistema, se se tem um lobby, é-se reconhecido, e é-se reconhecido porque se é uma figura mediática via política por exemplo, sobretudo política. Para chegar aí temos de ter uma carreira, temos que trabalhar para essa carreira. Agora diga-me, como é que se traduz esse reconhecimento? Qual o preço a pagar? Não, vender a alma, nunca.
[...]
Não tenho tempo nem feitio para tal, sinceramente. Qualquer boneco apresentador de televisão pode ser hoje em dia um escritor. Ainda que medíocre, mas quem se importa? A verdade é que esses rostos da televisão vendem muito, ali todos catitas, emoldurados no ecrã. Meu Deus, eu não quero. Eu não quero esse reconhecimento. Sabe para mim o que importa?  Que haja algumas pessoas neste mundo que me respeitem. E que haja algumas a quem dou qualquer coisa, alguma beleza, algum sonho. Através da poesia, obviamente. Isto para mim é que é reconhecimento. [...] Como é que se pode ser contra o sistema e estar à espera que o sistema nos reconheça e divulgue? [...] O sistema não perdoa. Nunca perdoou em todo o mundo. [...]
[...] O sistema perdoa até aos assassinos desde que eles lhe façam uma vénia. O sistema não perdoa é a quem lhe volta as costas, a quem o afronta, a quem o questiona, a quem o despreza."






Poemas de Matilde Rosa Araújo num manuscrito seu.
(Espólio de RV)
Beja revela pedras preciosas do



Tesouro de Nossa Senhora dos Prazeres





Obra-prima do Barroco nacional, a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, em Beja, acolhe “Esplendores do Barroco”, uma iniciativa de divulgação científica, incluída no projecto Geologia no Verão, que se centra na análise das gemas – pedras preciosas ou semipreciosas – aplicadas na arte sacra. Esta actividade terá lugar a 18 de Setembro, pelas 16 horas, e tem acesso livre. É organizada pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, em parceria com o Museu Nacional de História Natural (Universidade de Lisboa) e a Câmara Municipal de Beja.

Sob a orientação do gemólogo Rui Galopim de Carvalho, “executive liaison ambassador” da ICA (International Colored Gemstone Association), quem se deslocar nesta tarde à igreja dos Prazeres poderá conhecer, de perto, os segredos dos diamantes, rubis, crisoberilos, ametistas e outras pedrarias das colecções do Museu Episcopal de Beja, em que se incluem diversas jóias pertencentes à imagem da padroeira do templo, muito venerada em Beja.

A sessão prevê também que os visitantes tragam de casa peças sobre cujas pedras queiram saber mais para que, num laboratório móvel instalado na igreja, Galopim de Carvalho proceda à sua análise, procedendo à identificação das suas gemas quanto aos países de origem, antiguidade, estado de conservação e valor patrimonial. Presta-se assim gratuitamente, no âmbito do Programa Ciência Viva, um serviço que costuma ser pago a bom preço.

Os monumentos religiosos e os espólios neles contidos, quase sempre o resultado do trabalho e da generosidade de muitas gerações, não possuem apenas um interesse cultural, histórico ou artístico. Na verdade, constituem também um repositório de elementos de grande alcance científico, podendo inclusivamente ajudar a esclarecer mistérios que intrigam os especialistas das ciências exactas e naturais, como a Geologia, e dão contributos significativos do ponto de vista da investigação tecnológica. Chamar a atenção para um manancial que vemos ou pisamos todos os dias, mas que não conhecemos suficientemente, é o mote do projecto em curso.

Daí o entusiasmo suscitado por acções, como as propostas pela Agência Ciência Viva, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que se destinam a estabelecer laços entre o património, as comunidades e a prática científica. No que diz respeito ao Baixo Alentejo, as várias igrejas da diocese de Beja que têm sido alvo de encontros com cientistas e tecnólogos registaram sempre “casa cheia”. Isto revela a importância de se rasgarem novas perspectivas na leitura de um património cujo potencial se estende muito para além dos horizontes da arte sacra.



No coração da cidade

A igreja de Nossa Senhora dos Prazeres ocupa um lugar especial no coração dos bejenses. É proverbial a devoção das gentes da cidade a Maria, consubstanciada por vários santuários sob a sua invocação que definem uma verdadeira “geografia sagrada”. Dois deles, Nossa Senhora ao Pé da Cruz e Nossa Senhora dos Prazeres, estabelecem entre si uma relação muito especial: se o primeiro celebra a Morte de Cristo, aspectos muito enraizados na religiosidade alentejana, o segundo assinala a Ressurreição.

Não surpreende, pois, que a antiga Irmandade dos Prazeres se tenha esforçado por erguer, na transição do século XVIII para o XIX, um templo de excepcional magnificência no interior, apesar da discrição do seu aspecto exterior – outra característica da sensibilidade do Alentejo, reservar para “dentro de casa” o que é importante. Colaboraram nesta tarefa, que demorou quase cinquenta anos, os melhores artistas e artífices disponíveis em Portugal, desde os pintores Gabriel del Barco e António de Oliveira Bernardes até aos entalhadores Manuel João da Fonseca e Francisco da Silva.

O conjunto de alfaias da igreja faz justiça a este empenho comunitário. Com efeito, a igreja possui um espólio digno de referência, sobretudo no âmbito das artes decorativas. Das jóias que outrora guarneceram a imagem de Nossa Senhora chegaram aos nossos dias, apesar de sucessivas delapidações – sobretudo quando as tropas napoleónica invadiram a cidade –, peças de notável interesse histórico-artístico. E também científico, como as investigações gemológicas de Rui Galopim de Carvalho vieram demonstrar, alargando conhecimentos acerca de aspectos muito relevantes, como a importação de gemas extra-europeias ou as técnicas de talhe, acabamento e engaste.

Este mundo insuspeito alarga-se a outras peças do Museu Episcopal, contíguo ao templo. Aqui o protagonismo coube a quatro relicários em cristal-de-rocha, executados na corte dos sultões fatimidas do Cairo (séculos IX-X) como recipientes de unguentos, ditos “kohl”, destinados à cosmética, feminina e masculina. O mundo cristão deixou-se fascinar pela beleza transcendente deste receptáculos e, omitindo a sua função profana, apropriou-se deles, transformando-os em relicários. Terão sido trazidos para Beja por cavaleiros desta cidade que estiveram presentes nas duas últimas cruzadas na Terra Santa. São obras raras e de uma grande pureza mineralógica, reforçando o papel do Baixo Alentejo no contexto da arte islâmica.



Uma vocação científica

Rui Galopim de Carvalho formou-se em Geologia na Universidade de Lisboa e especializou-se em Londres nas áreas da Gemologia e da Classificação de Diamantes. No nosso país tem desenvolvido trabalho extenso de identificação e classificação gemológica, em colaboração com museus públicos e privados e com a Igreja, associando-se a vários projectos de inventário, nomeadamente nas dioceses de Beja e Évora.

Autor de obras de referência, desempenha as funções de editor de “Portugal Gemas”, revista digital de gemas e joalharia. É colaborador de associações nacionais do sector da ourivesaria, nas áreas da formação gemológica, e lecciona módulos temáticos em diversas instituições de ensino, nomeadamente a Universidade Católica (Porto) e o Ar.Co (Lisboa). Desenvolve também actividade lectiva e de divulgação gemológica no Brasil e em Moçambique.


"São Sebastião"
Gravura existente no espólio da Biblioteca Nacional de Lisboa que deu origem à pintura a óleo existente num altar lateral da igreja matriz de Aljezur.

[699466]

[SAO SEBASTIAO]
[São Sebastião] [Visual gráfico. - [S.l. : s.n., entre 1650 e 1750?]. - 1 gravura : buril e água-forte. - Data provável baseada em características formais. - Dim. da comp.: 40,5x27,5 cm
CDU 248.159Sebastião, Santo(084.1) 762(=1.4)"16/17"(084.1)
http://purl.pt/5191/1/
INVENIRE:
Revista de Bens Culturais da Igreja




Nº 1 apresentado em Lisboa no dia 6 de Outubro



Será apresentada no próximo dia 6 de Outubro, no Museu Nacional de Arte Antiga, pelas 18.00 horas, a revista INVENIRE: Revista de Bens Culturais da Igreja. Incidindo nas diversas áreas de actuação do sector, esta nova publicação, da responsabilidade do Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja, organismo da Conferência Episcopal Portuguesa, pretende ser mais um meio de divulgação, valorização e estudo do vasto património histórico e artístico nacional.

Apostando na qualidade gráfica e de conteúdos, este número inicial abre com uma secção de investigação, com ensaios de Carlos A. Moreira Azevedo e Nuno Resende, a que se segue um Portfolio sobre marfins, escolhidos por Carla Alferes Pinto. Em destaque, apresenta-se ainda um conjunto de obras de vários pontos do país, analisadas por diversos especialistas e investigadores nacionais. O projecto "Rota das Catedrais", será abordado em caderno temático, no qual se destaca a entrevista ao Secretário de Estado da Cultura, Elísio Summavielle. Rui Vieira Nery inaugura o espaço de opinião da revista, com o artigo “Salvar o património de música sacra portuguesa”. A fechar a edição, uma selecção de livros e a agenda de eventos.



Índice N.º 1

INVENIRE

Revista de Bens Culturais da Igreja



Editorial

INVESTIGAÇÃO
São Paulo na Arte Portuguesa - Carlos A. Moreira Azevedo
O Discurso do Tempo: para uma releitura das Memórias Paroquiais de 1758 - Nuno Resende

PORTFOLIO - Patriarcado de Lisboa
Marfins, A escolha de Carla Alferes Pinto

OBRAS EM DESTAQUE
Colecção têxtil do Tesouro-Museu da Sé de Braga - Fernanda Barbosa
Pintura mural da Capela de São Marcos de Fonte Arcadinha - Maria de Fátima Eusébio
Um projecto-piloto de salvaguarda: a igreja de Nossa Senhora da Piedade de Santarém e a arte ao serviço do seu orago - Eva Raquel Neves
Compromisso dos Pescadores e Mareantes do Alto da Confraria, e Irmandade do Espírito Sancto - Ricardo Aniceto
Do Paço Patriarcal aos Palácios Nacionais: transferência das obras de escultura dos jardins de S. Vicente de Fora - Sandra Costa Saldanha
Variações para uma Ceia: A Última Ceia de Cirillo V. Machado para S. Sebastião da Pedreira - Nuno Saldanha
Um «Aeolian Orchestrelle» em São Salvador de Elvas - Artur Goulart de Melo Borges

CADERNO - Rota das Catedrais
As intervenções arquitectónicas: rumos e perspectivas - José Fernando Canas
Impacto Cultural: a Rota no contexto das dinâmicas nacionais - Marco Daniel Duarte
Reportagem: Um ponto de situação nas dioceses - Rui Almeida
Entrevista: Elísio Summavielle, Secretário de Estado da Cultura - António Marujo
A Rota na perspectiva de… - Dália Paulo e António Pedro Pita
Paralelismos de Sucesso:
Rota do Românico: Uma experiência fundada na História - Rosário Correia Machado
Rota do Fresco: A democratização do património - Catarina Valença Gonçalves

OPINIÃO
Salvar o património de música sacra portuguesa - Rui Vieira Nery

Livros
Agenda


HOMENAGEM
AOS JUDEUS DE CASTELO DE VIDE

Ao transformar um conjunto de edifícios na judiaria em espaço museológico, a Câmara Municipal de Castelo de Vide decidiu usar um dos compartimentos para lembrar os judeus desta terra do Norte Alentejano supliciados pela Inquisição. Significativa, esta iniciativa. Há nomes que nunca deverão ser esquecidos e atitudes que nunca deverão ser apagadas. Sugiro, apenas, que esses nomes fossem colocados num local central da vila, gravados em granito da região para o tempo e a estupidez dos homens tenham maior dificuldade em apagá-los.
Visitei o museu - localizado no que se julga ser a antiga sinagoga - no passado mês de Agosto, acompanhado pela minha filha. Ao conversar na recepção com a sempre disponível e generosa Maria do Carmo Alexandre, falou-me dum nome estranho inscrito nas paredes do monumento: Catarina Dias, a Purgatória. Respondi-lhe, emocionado, ser minha antepassada, sobre quem escrevi há tempos um pequeno poema.
A fotografia documenta o seu nome entre o de muitas outras vítimas dessa negação da religião e da religiosidade. O poema aqui fica, de novo, conforme se publico no blogue de Nuno Guerreiro Josué, "Rua da Judiaria": http://ruadajudiaria.com/?p=514



Catarina Dias, a Purgatória



cantava, nesse tempo,
a oração dos mortos,
ligando no tear
os fios da memória –

devolvia a água
à raiz da oliveira
para que o sangue
pudesse alimentar
a luz (e as sombras)
dessa terra –

lançava sobre o lume
o sabor e a sabedoria
para que o fermento
envolvesse a solidão –

bebia na fonte
o brilho da pedra,
guardando no cântaro
a angústia das palavras –

guardava no peito
o fogo e a fuga,
o leito que um dia
fechara a garganta –

– quando vieram, sem sombra,
impor sobre o corpo esse peso
sem vida

e a vestiram de noite,
embora fosse branco
o hábito perpétuo.



NotaCatarina Dias, a Purgatória foi uma judia do século XVIII residente em Castelo de Vide. Foi condenada pela Inquisição de Évora a usar o chamado “sambenito”. Outros familiares seus foram queimados em auto-de-fé na capital da então província de Entre-Tejo-e-Odiana. Ao construir a minha árvore genealógica, deparei-me com um nome estranho: Catarina Dias, a Purgatória. Tentei investigar de onde viria essa designação. Achei Catarina membro da família Narigão (de Castelo de Vide) que, em conjunto com os Tirados, fora severamente atormentada pelos sequazes da Inquisição. Catarina estava incluída no número dos sofredores: embora não tivesse visto as suas cinzas misturadas à terra de um terreiro eborense, fora obrigada a usar durante toda a vida o odioso “sambenito “. Daí o alcunha.

Estátuas

Largo das Duas Igrejas, em Lisboa. Do alto do seu pedestal, Camões não põe os olhos nos transeuntes, mas nos dois confrades que, ao longe, mal se distinguem. Sentado, com o braço esticado e ar galhofeiro, António Ribeiro Chiado aponta Fernando Pessoa. "A quanto chegaste, meu velho! Só falta animarem o bronze e porem-te, bem-mandado, a servir cafés na esplanada da Brasileira..."
JOSÉ MARÍA CUMBREÑO

Os poetas-professores

"[...] Tengo varios amigos que son profesores en distintos institutos de España. Y la mayoría me cuenta lo mismo: que todo son pegas cuando los invitan a leer a alguna parte (aunque se trate de otro instituto), que nadie les agradece que lleven la revista del centro, que no se tiene en cuenta que la tele y los periódicos hayan sacado de paso al instituto al ir a entrevistarlos a ellos, que sus alumnos disfrutan del conocimiento de otros escritores por mediación suya ...


Etcétera, etcétera, etcétera.

Imagino que este desprecio por el arte y los artistas responde al espíritu de este tiempo en que las humanidades no constituyen sino un mero adorno. Lo que ocurre es que resulta triste que ni siquiera en los centros educativos pintar o escribir se considere un mérito. A pesar de que, se pongan como se pongan, objetivamente, contar con un escritor de cierto nombre en el claustro represente un beneficio para el instituto o colegio de turno.
 
[...]"
 
 
Embora, pessoalmente, tenha sido muito bem tratado na escola onde dou aulas por alturas da apresentação de um livro meu na biblioteca do Agrupamento, subscrevo as palavras do José María Cumbreño.
 
http://liliputcontrablefescu.blogspot.com/2010/09/acerca-de-los-poetas-profesores.html


MÁRCIO-ANDRÉ


Lisboa nunca existiu para além desse instante


Lisboa nasceu de um terremoto. O mesmo que dizer: nomearam os escombros diante do rio: deram nome ao nome cidade: o nome de outro lugar que coube no mesmo lugar. Essa cidade inventada por um poeta e esquecida por outro. E no meio dela, esse meiopoeta desejando profundamente o sonho mínimo que sonham as tainhas no rio em frente. E que pára para ouvir o canto de pedra desses peixes de pedra e almeja para cimento do próprio corpo o limo das barbatanas [para conhecer a pedra, sê pedra]. Minor queria a palavra perfeita e Dominic Matei refez-se jovem para continuar buscando a origem das línguas, e, no entanto, este rio é uma sentença impronunciável e cabe inteiro na janela. Sem tradução. A Paisagem na janela é a mesma que está lá fora, com seus cargueiros à óleo diesel [todo lugar é cópia de si mesmo – os turistas só conhecem a cópia]. Nem o sucesso nem a razão nem a ruína nem o flagelo das saias das raparigas de pernas grossas subindo as ladeiras da bica e rindo com suas bocas pequenas e bêbadas e mandando sorrisos e beijos aos meiopoetas que passam, nada disso é desculpa para levar essa cidade a sério e acreditar que estamos ali mais do que realmente estamos. Ela só existe enquanto é caminhada. Ela é uma circum-navegação em torno da medula da cabeça e da mão. A cidade é a parte mais encantadora das pessoas. E, assim como esse rio corre sem a porra da bênção dos santos e detém na língua laminada do seu muco-pedra polida o sacro-saber de ser rio, não é preciso querê-lo para sempre. É preciso querê-lo agora, enquanto rio. Como o querem as roupas nos varais quando o chamam balançadas pelo vento. É nesse meiopoeta, que recusa a ser feliz nesta cidade e envelhece sem jamais ter sido jovem, que Lisboa se refaz a cada pisada cambaleante. Da mesma forma que vamos seguindo assim, todos meiopoetas e meiobêbados e meioapaixonados e sem saber afinal para que a vida foi feita e para que se apaixonar ou ser poeta (inteiro ou pela metade). A infelicidade é um vício, mas todo o resto é diversão.

Fonte: http://intradoxos.blogspot.com/2010/09/lisboa-nunca-existiu-para-alem-desse.html

Entre a serra de São Paulo (Castelo de Vide) e os montes da Penha e do Cabeço de Mouro (Portalegre).


Neste hora de regresso, partilho consigo uma das paisagens contempladas no tempo de descanso (Ponta da Atalaia, junto das ruínas do ribat da Arrifana, Aljezur).
MULTITUBETEXTURA

O espectáculo apresentado  no dia 22 de Julho por Márcio-André e por uma bailarina turca na Fábrica do Braço de Prata, em Lisboa, foi sublime e perturbante. A luz escassa apontou, por momentos, vislumbres de Caravaggio ou de Zurbarán no corpo daquela mulher. A oscilação do pêndulo entre a experimentação de sons e os trechos neo-impressionistas, misturados com vozes ancestrais saídas da garganta do autor de Intradoxos, despertou em mim emoções inesperadas.

Ver vídeo aqui: http://www.youtube.com/watch?v=s82u7F_hlwo
Matilde Rosa Araújo
vista pelo seu maior amigo, Sebastião da Gama:


Autobiografia
Matilde Rosa Araújo


(JL 928, de 26 de Abril de 2006)



Falar da minha vida, no seu percurso até esta idade octogenária, é difícil. Mais difícil ainda para uma memória sempre abalada, ida, de quem desde criança viveu "fora do contexto". Este "fora do contexto" não por excepcionalidade (afirmo-o sem falsa modéstia), mas porque sempre me encontrei longe e perto. Este longe e perto não nega o tesouro real, para além da família, que constituíram os amigos. Amigos de presença tão viva, embora tantos já ausentados pela lei de um "fim" que muito dói e não sei entender.

Nasci numa quinta em Benfica, no meio de árvores, flores, fontes, animais natureza viva que me seduzia. Perto de Jardim Zoológico. De noite, ouvia o ressonar ou o gemer dorido dos leões, dos tigres, do elefante e de outros animais que não identifico: eram "vozes" de animais presos. Vozes de grades. E gritos de aves estranhas. Ficava acordada para os ouvir, não sei porquê. E doíam-me. Não seria já o "gosto amargo" de sofrer (que não tenho) mas a inconsciente busca de um mundo próximo e livre que não entendia.

Não frequentei nenhuma escola. Quantas vezes subi para o telhado de casas onde vivia, para olhar os meninos que iam para a escola? Talvez, por isso, a infância encontrou-me quando comecei a ensinar. Encontrou-me e continuou comigo no deslumbrado acontecer das aulas, deslumbrado e receoso de não saber comunicar. E fui aprendendo, tentando aprender o segredo da infância, da juventude, descoberta viva todos os dias. O curso de Letras encaminhara-me para esta profissão. Tive sorte. E o que aconteceu? Foi tanto o acontecido.

Em Lisboa, e por outras terras, fui enraizando o poder de um sonho Os Direitos da Criança.

E, comungando na profissão e à margem dela, encontrei amigos que não posso nem sei esquecer.

Amigos simples e grandes cuja ternura ainda me embala. Desde a Faculdade de Letras da velha Academia das Ciências, professores, colegas que me deram a fortuna do seu ser, do seu contar.

Depois, na vertente das Letras, lembro a felicidade que constituiu para mim fazer parte da Sociedade Portuguesa de Escritores. Felicidade que findou (findou?) numa amarga, injusta destruição da sua sede. Falar de lágrimas nesta altura é pouco: a própria revolta seca-as de imediato.

Vivi décadas do século passado, como se calcula. E, nesse século, pude olhar dois momentos da História que me deslumbraram.

Uma alegria que Beethoven na sua ode nos entregara para sempre, maravilha de sons que aconteceu. Pungente. Viva. Um desses momentos foi o fim da Segunda Guerra Mundial. A paz no Mundo na qual acreditei para sempre. Soava a Alegria como água pura da nascente. Branca luminosa.

Outro momento foi o 25 de Abril. Depois de um tempo de silêncio, de silêncios, com vozes heróicas ou caladas, nós íamos acreditar num país de fraternidade, sem arma de agressão. País sonhado há tanto. De justiça e paz. E hoje? "Pelo sonho é que vamos", como disse Sebastião da Gama". Continuamos.

De mim, que mais posso falar? Escrevi. Escrevo ainda. Sei que é bom viver, apesar das dores, das inibições físicas. Mas como é bom amar, ter amado. Em ter a infância no coração. Com a infância no coração e tanta memória com ela encontrada. Às vezes, acontecimentos aparentemente tão simples mas que apontam da infância um historial amargo. Simples como uma boneca de trapos, trapos sujos pelo tempo magoado. Olhos de retrós que olham para mim num doce olhar.

Eu lembro a "história" desta boneca, que não é só minha, como se contasse o segredo escondido de toda a criança mal amada. Fui, um dia, a uma escola. Qual? Já nem me lembro do seu nome, da terra a que pertencia. Mas não esqueci nunca, nunca poderei esquecer, a prenda rara que foi para mim esta boneca. Parece-me, desde que a recebi, que ela tem voz, que me dá um imenso recado. Enfim, como já disse, visitar uma escola. Qual? Onde? Como sempre, rodearam-me os alunos com a sua ternura, as suas interrogações, a graça tão única de quem é jovem em querer descobrir o mundo. Entre esses jovens surpreendeu-me o olhar de uma menina, olhar triste e destroçado de infância perdida. E a menina olhava, eu percebia sem o saber nada do seu mundo para além da mágoa do seu olhar.

No meio daqueles alunos que perguntavam, ficaram muito sérios ou riam, me davam a força da ternura, não me apercebi da ausência daquela menina triste. Estava no momento de me despedir, agradecer a todos, professores e alunos, tanto amor que me fora dado, quando a menina triste que se ausentara chegou junto de mim. Com uma boneca de trapos, envelhecida pelo uso, nos seus braços magrinhos.

Tome. É para si. Eu fui buscá-la.

Não nomeou onde fora. Mas onde chegou até mim.

Não podia aceitar.

A boneca é tua. É a tua boneca! Aceite. Eu quero que fique consigo.

Mas não. Os olhos da menina, determinados, imploravam. Olhos maravilhosos e húmidos de uma fome que não é de pão. Compreendi. Os professores da escola ajudaram-me a compreender aquela dádiva única daquela menina mal amada. Toda a criança também é uma dádiva única. Aquela boneca não lhe pertencia. Não tinha o direito de brincar numa casa sem amor. Menina que não era amada podia guardar a sua boneca de trapos? Boneca tão suja e tão linda! E não me lembro do nome da menina "sua mãe". Por contraste a boneca seria a "cigarreira breve" de Fernando Pessoa. Outra forma de guerra. Não me lembro do nome da menina mas sei o seu recado. Esta boneca "aconteceu" numa visita a uma escola.

Tenho ainda a felicidade de visitar escolas, bibliotecas generosos convites dos seus responsáveis.

Convites que me trazem o grande prazer da convivência, do afecto dos professores, bibliotecários, auxiliares de ensino, da juventude. Sem esquecer a infância que por vezes me cabe como uma graça plena. E, com estas visitas, lembro o passado do livro infanto-juvenil, o respeito renascido por esta literatura até então quase ignorada, adormecida em silenciosos armários escolares. E lembro, com grato respeito, a importância que tiveram para tal literatura as carrinhas, bibliotecas ambulantes, da Fundação Calouste Gulbenkian. Carrinhas que corriam o país e levavam a boa nova do livro que todos podiam ler. As crianças, os jovens. E os adultos rompendo a morna ileteracia também. Hoje, nessa esteira, temos bibliotecas que são o lar vivo de uma literatura tanto tempo ignorada apesar de lhe caberem cultores, raros embora, de grande mérito literário e pedagógico.

Nas décadas que vivi, pude assistir a esta dignificação das letras tão naturalmente ignoradas.

E como a história, a "estória", está tão presente no coração dos homens! O reconto oral é um património riquíssimo de entendimento da vida, das suas realidades, da sua poesia. Esta oralidade está viva, acontece nas próprias bibliotecas sem livros adormecidos. Sei, como não saber?, que os meios audiovisuais são fortes competidores da imprensa escrita. Mas sei, também, que tal imprensa não pode morrer: os livros, os jornais (da escola e não só) têm uma força real, o segredo claro de um diálogo silencioso e livre com o leitor. Diálogo que espera, permanece.

Cheguei até aqui com a voz da memória a dizer-me tanto. Há anos (do tal século passado.) pude editar três volumes que contêm a recolha de textos (poesia e prosa) de escritores portugueses. Nesses textos de autores de diferentes épocas, textos "para adultos", pude encontrar em beleza em verdade a presença da infância. Da própria infância e da infância com eles convivente.

A um desses volumes dei o título de Estrada Fascinante. No seu prefácio acabo por dizer: "Alguma paixão reconheço nestas folhas, reconheço-a mas não a enjeito. Para mim, abriu-se uma "estrada fascinante" e só lamento os pés menos firmes de quem foi, apesar de tudo, deslumbrada caminheira". Estrada nunca demais percorrida.

FALECEU MATILDE ROSA ARAÚJO

A escritora Matilde Rosa Araújo morreu hoje de madrugada, em casa, em Lisboa, aos 89 anos, disse à agência Lusa fonte da família.
Nascida em Lisboa em 1921, Matilde Rosa Araújo licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, e foi professora do ensino técnico profissional em várias cidades do país. Foi também professora do primeiro curso de Literatura para a Infância, na Escola do Magistério Primário de Lisboa. Foi autora de livros de contos e poesia para adultos e de mais de duas dezenas de livros de contos e poesia para crianças - como O Sol e o Menino dos Pés Frios, História de uma Flor e O Reino das Sete Pontas. Dedicou-se intensamente à defesa dos direitos das crianças através da publicação de livros e de intervenções em organismos com actividade nesta área, como a UNICEF em Portugal.
De acordo com fonte da Editorial Caminho, o corpo de Matilde Rosa Araújo será velado hoje na sede da Sociedade Portuguesa de Autores, em Lisboa.

(A seu tempo darei o meu testemunho sobre a escritora com que tive o privilégio de privar. Paz à sua alma!)

POEMAS

DE MÁRCIO-ANDRÉ





OS PLANETAS



3 batimentos
2 céus do lado esquerdo – malcolados



um campo de parabólicas
para azeite de antenas
e o mar com sedimento de planetas



[o mar fez-se a si mesmo de seu celofane verde
tirou das tripas o ocidente
traçou na pele um autómato de estrelas
– iluminuras no dorso de um dromedário]



no princípio foi o giro
e sua sinfonia de esferas



[só é verdade a parte que se desconhece]



a partitura do architeto
sua planta fotogramétrica







A SOMBRA



teu olho é vidro de morder



e o dorso improvável soprado no gás
queimado a sais de prata
nascido do primeiro sonho
não termina e não começa codificado nos objectos



ainda não existia encaixe entre as coisas
nem as formas nem as cores
                  siemens
                 designers for life



tirando tua sombra sobra o mundo inteiro









AS LIBAÇÕES



e depois de orar e polvilhar farinha
degolam e destroncam bois
esfolam touros
coxas cortam pernis apartam
envolvendo em gordura de dupla camada
e talhos crus lançados sobre



velhos queimam a carne na brasa
derramam por cima o vinho agridoce
com garfos moços manejando bifes



pernis tostados
saborear filetes degustar entranhas



o resto retalham em tiras e assam no espeto
peritos



ao fim do trabalho o banchete:
cada um a seu gosto: ancas e nacos
homens se nutrem em farta festa
vertem plenas crateras de vinho
delibam lambendo boca
graxa de tripa nos dedos



e assim pelo dia com cantos e danças
dânaos aplacam Apolo – péã para o guardião



que alegra-se no coração ao ouvi-los







Poemas retirados de Intradoxos, livro publicado por Márcio-André (Rio de Janeiro, Brasil, 1978) em 2007. A sua poesia foi considerada por Boaventura de Sousa Santos (para além de sociólogo, um poeta que Portugal deveria ler com outros olhos mais esclarecidos) como “uma das mais notáveis da sua geração”: “[…] é uma luta permanente com a língua. O seu experimentalismo não é abstracto (ou seja, concretista), é antes a sua maneira de interpelar uma tradição asfixiante e ao mesmo tempo vazia.
AMADEU BAPTISTA




DOZE CANTOS DO MUNDO

(alguns excertos)







WILLIAM BLAKE: NIGHT THOUGHTS (1797)



Não há síntese,



mas só mundos paralelos
onde a graça e a desgraça
se encontram
para delimitar o inferno
e o acrescentarem



com a essência e o erro,
a tontura e o desequilíbrio.
[…]







GOYA: A FAMÍLIA DE D. CARLOS IV (1801)



[…]
Preciso de água forte para dessedentar
o rumo a que o desespero obriga,
pincéis de cerdas duras,
espátulas cortantes,
paletas invisíveis
onde as cores, fortíssimas, latejem.



Preciso de fulgores
e circunstâncias
onde uma ardência nos olhos possa ser
um sinal de redenção,
[…]







GUSTAVE COURBET: A ORIGEM DO MUNDO (1866)



[…]
Eu crio:



estrume,
ou esterco,



crio,



para que o meu testemunho,
sob o efémero,
possa aguilhoar as almas
e consumar
a união entre o diverso e o transitório,
e não haja mais escândalo
que o escândalo
de ser a soberba a nossa ignorância



e a nossa ignorância a desventura.
[…]







FRANCIS BACON: STUDY FOR CROUCHING NUDE (1952)



[…]
No osso inciso,
na grande obra incompleta,
sou uma válvula de vácuo
e um transístor,
a desfragmentação
e o cromatismo
que resiste à vileza
e vê no crime
o imparável modo de estar vivo,
a aprofundar a refrega dos subúrbios,
como arte,
dissipação,
incandescência.
[…]



[…]
[…] os cães estão em todo o lado,
e devoram as casas,
e sobem aos telhados para devorar
os livros,
e, nas jaulas,
amontoam cadáveres,
instantes peregrinos
com cabeça de rádio
e desorbitados olhos
pelo terror do urânio,
as múltiplas engrenagens.
[…]









MARK ROTHKO: NUMBER 207 – RED OVER DARK BLUE ON DARK GRAY (1961)



[…]



Coube-nos viver num tempo de assassinos,
mas é a claridade que almejamos,



não a que veio ao quadro convocar-nos,
mas a que, pelo poder da pintura,
se instala em nós,
a modular a noite
e a apaziguar-nos.



É essa claridade que procuro,
– e o silêncio.



O silêncio das cores e o seu apelo
irrevogável,
de que nada há a temer,
mesmo que atemorize.



A vida é isso mesmo:



o medo à nossa frente,
imóvel como a esfinge,



e nós sempre a enfrentá-lo,



transparentes,
aflitos,
condenados,



mas prontos para ver



as cores do infinito.





Doze Cantos do Mundo está entre os melhores livros de Amadeu Baptista. Foi galardoado com o Prémio Oliva Guerra, na edição de 2008. A colectânea foi publicada em Setembro de 2009 pela Câmara Municipal de Sintra (organizadora do concurso), numa tiragem infelizmente restrita.
EDMAR GUIMARÃES




Massa Corrida



Ele, encostado agora na parede, perde a janela, mira outras imagens da sala. As mãos espalmadas parecem buscar fendas. O corpo se cola ao concreto, sente a respiração úmida dos tijolos, gosto de tinta. Líquidos se vertem em cimento. Ele sua.

A boca engole o reboco pela nuca; um pouco mais de esforço e postura de homo-sapiens, os calcanhares; as nádegas encostam-se noutro corpo duro; as mãos totalmente enterradas na parede, e, aos poucos, também o abdómen; com um leve tremor de músculos, os úmeros e as omoplatas.

Linhas do rosto fundem-se à superfície, mínimas trincaduras, caminhos de formigas deformam a espessura da massa corrida. Ele tenta dizer… Há uma pastilha de pedra sobre a língua. Os olhos imprensados nas pálpebras só veem arestas do recinto.

Tudo o que via, respirava, o espaço buscado além dos terraços do mundo… uma mácula na parede, uma marca de mofo mais encorpada. – A sombra mais escura lembra restos do esôfago, os dois furos amarrotados, talvez as pálpebras –.

A presença toda de um homem se traduz numa marca de gordura na parede, alguém jogará cal em cima, repintará como se cobre uma nódoa renitente do tempo.







As Coisas



Exaustas de ser, todas as coisas. Não pela natureza intrínseca, sentido o sopro das estações, mas por olhá-las da carne, o homem lhes deu superfície, quis a brisa no laboratório; o aroma dos primeiros instantes do mundo, num punhado de pedras.

O que se passou entre pirâmides, juntas e operários repetem. Do carpete de ouro e ácaros do corpo do faraó, o fugo acende o incenso, espectros do que um dia sonharam acordar de novo na carne que nunca cicatriza, vestida à gala, digo, gaza.

O que se revela é ponta de osso, iceberg que, escavado, expõe o riso de nós mesmos.

Nas escavações de antigos passos, nas grutas do âmago, nuns palimpsestos de desejos, desenhos rupestres, ou no chão mesmo rude do tempo aberto em sítio, o fóssil, punhado de peças, isso só, e fácil.

Tudo está exausto de ser pedra e lâmina cega de laboratório, de ser escavado até sua porção mais severa e insuficiente.

O que se busca traz no bojo algo mais denso que osso.



Textos retirados do mais recente livro do escritor goiano/brasileiro Edmar Guimarães, Cápsulas dos Dias (Editora KELPS / Editora da UCG, 2009). O volume tem um prefácio da ensaísta Wania Majadas e um posfácio do poeta e ficcionista Miguel Jorge, reproduzindo na capa um óleo de José Amaury de Menezes. Micro-contos ou contopoesia? “Em cada nova cápsula deste livro existe um tempo de um dia que enseja códigos de disfarçada loucura e que corre em idas e vindas pelo universo que vai além do real ao imaginário, como se o autor quisesse captar os olhos de seus inúmeros personagens” (Miguel Jorge).
MEMÓRIA D' ALVA
Contributos para uma biografia
da igreja matriz de Aljezur


Terminei há poucos dias o meu mais recente livro, um estudo sobre a história da igreja matriz de Aljezur. Aqui ficam as primeiras linhas da introdução:


Os edifícios são como as pessoas. Todos têm biografia. Sendo o prolongamento das mãos humanas que lhes deram forma e dos corpos que neles existiram e viveram, transportam nos seus materiais de construção a recordação do seu nascimento, do seu crescimento, das suas vicissitudes e, até, da sua morte. Mesmo quando se resumem a escassos vestígios arqueológicos, a relíquias guardadas ou reutilizadas noutros lugares ou à lembrança difusa registada nos documentos escritos ou na oralidade colectiva.


Sendo como pessoas – ou parcelas inalienáveis dessa Pessoa que é uma comunidade quase sempre milenar – possuem ainda uma genealogia e um código genético. Não existem gerações espontâneas. Se a matéria de uma casa, de uma igreja ou de um castelo surgiu de novo – numa parcela do espaço antes ocupada apenas pelo crescimento das espécies vegetais e pelo povoamento da fauna –, trouxe sempre consigo um património que orientou a génese. Nesse código genético vindo do passado estarão decerto as estratégias e as técnicas inerentes à selecção e ocupação do território, a espiritualidade das formas, a sabedoria com que se distinguiram e trabalharam os materiais, a religação desse microcosmos ao macrocosmos universal, a religiosidade que presidiu a escolhas e afirmações, a experiência que definiu funcionalidades, os diálogos inevitáveis entre a paisagem e o povoamento.


[...]


Tendo partido do registo histórico da construção da “igreja nova” de Nossa Senhora d’ Alva, entre 1795 e 1809, este trabalho que apresento nunca poderia prescindir de um conhecimento minimamente aprofundado do que fora a existência material do templo antecedente, arruinado em 1755. Mesmo assim, sendo embora cómodo iniciá-lo com a narrativa da edificação de um primitivo espaço cultual no século XIII, não seria aceitável que se relegasse para as calendas gregas uma leitura integrada do elemento religioso que justificara a existência qualquer dos edifícios – a veneração de Nossa Senhora d’ Alva –, possuindo toda uma envolvência mítica e onomástica que o revestiam de interesse e até de alguma estranheza.

[...]




DA OSTENTAÇÃO


Pessoa - longe da imortalidade que hoje ninguém lhe nega - escreveu mais ou menos isto (cito de memória): "Tenho feito passar como meus vários poemas de autores famosos; todos lhe torcem o nariz. Tenho feito passar como de autores conhecidos poemas escritos por mim; são elogiadíssimos."


Só saberemos avaliar devidamente o valor da obra de um autor - separando-a da fama (justa ou injusta) de quem a criou - quando os livros forem publicados sob anonimato. Certa gente ostenta gostos literários como quem exibe sapatos de marca (mesmo que não prestem).


A autora deste livro - Maria do Carmo Vieira - deveria receber a homenagem de todos os portugueses que ainda amam a sua dignidade cultural. A sua denúncia da situação do ensino da Língua Materna - fomentada por técnicos do absurdo que vêm consagrando o império da facilidade para melhor acabar com a democracia verdadeira em Portugal - deveria ser de leitura obrigatória. Por lá se encontra, até, uma senhora escritora que - antes de ser comissária de um tal Plano Nacional de Leitura e ministra da Educação - era radicalmente contra quaisquer listas com sugestões literárias... logo abdicando das suas convicções quando alguns rectângulos de papel-moeda lhe foram postos na mão. O cenário é aterrador. Mas vale a pena o tempo ganho na sua leitura.
INSTRUMENTOS EM LISBOA



A apresentação de Instrumentos de Sopro ontem, 1 de Junho, em Lisboa, foi (quanto a mim) muito interessante. Não pelo "pretexto", mas pelo "texto" que fez nascer. Tanto quanto a minha memória alcança, nunca numa sessão nascida de um livro meu se dialogou tanto e tão profundamente sobre a Arte, a Poesia e a Poética.
O pintor e poeta Fernando Aguiar apresentou uma leitura simples, mas atenta, do livro - realçando dois dos seus pilares: a memória e a visualidade. 
No que respeita às minhas palavras, fiz questão de realçar que esta colectânea representa destruindo a representação, narra demolindo a narração (como acontece, aliás, noutros livros meus).
Lembrando A Capital, de Eça de Queirós, sublinhei a sua actualidade como crónica do meio literário português do nosso tempo, onde pontificam Romas e mais Romas que vão obrigando tantos Curvelos à desistência. No momento em que vivemos, a vitalidade artística precisa contudo de quem lhes resista e vá persistindo num caminho doloroso e paciente, contra-cultural. Explicando o significado do título Instrumentos de Sopro (expressão de matérias e anti-matérias que insuflam/insuflaram vida na existência), manifestei a minha convicção na existência de dois campeonatos, inconciliáveis, na produção artística contemporânea: de um lado, o campeonato da notoriedade pública; do outro, aquele que é jogado por quantos tentam servir a Arte, humildemente (isto é, ligados à húmus, à fertilidade), sem esperarem prebendas nem passeios pagos.
No seguimento dessas intervenções, estabeleceu-se um período de debate muito participado, no qual intervieram nomeadamente José Carlos Marques (editor do livro), Levi Condinho, Manuel Herculano (da Associação Sebastião da Gama), Joaquim Cardoso Dias e Rui Almeida, para além dos supracitados. Questionou-se a estética contemporânea, sobretudo o seu anacronismo e sua miopia histórica, que todos os dias afirma inventar a roda, quando ela já foi inventada há tantos milénios. Abordou-se ainda a importância da poesia experimental e do seu contributo para o refrescamento da poesia portuguesa - que tanto necessita de ser posta em causa, ou seja, que tanto precisa da incerteza, para não continuar a fazer a tal roda quadrada.

(Como apontamento final, gostaria de agradecer a gentiliza da gerência do ginásio Body Plaza, que criou todas as condições para um acontecimento digno. Agradeço ainda ao poeta Joaquim Cardoso Dias a captação de imagens para memória futura.)


MONARQUIA, REPÚBLICA E ANARQUIA



Integrado no ciclo "Portugal Renascente" (iniciativa conjunta dos «Cadernos de Filosofia Extravagante» e da «Nova Águia», em parceria com a Câmara Municipal de Sesimbra), tem lugar no próximo sábado, dia 29, pelas 15:00, na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra, o colóquio "Anarquia, Monarquia e República", no qual serão oradores António Telmo ("Monarquia e República") e António Cândido Franco ("Anarquia e República").

Na ocasião, serão lançados os novos livros de António Telmo («Luís de Camões», 1.º volume das obras completas, com a chancela da Al-Barzakh e apresentação de António Cândido Franco) e Renato Epifânio («A Via Lusófona», da colecção Nova Águia, com a chancela da Zéfiro e apresentação de Rodrigo Sobral Cunha).
Casé Lontra Marques


Avesso ao monumento, isto que ainda sinto ser esforço dedica seu artesanato à confecção de um instante que, apesar de precário, recusa cair nas engrenagens do espetáculo.

(in A densidade do céu sobre a demolição, 2009)


*


Compartilhamos, como poucos, ligações de rara reprodução:
nossos laços varam veias dos circuitos que
sustentam o combate
à comunicação. Parecemos seres de palavra
fraca, sintaxe
faminta; ruminando rumores,
no entanto, inauguramos
pactos de fala
que consagramos
à inutilidade. Movimentamos - quase digo -
signos sem
função. Não saudamos
nenhuma autoridade,
contudo
celebramos qualquer insuficiência.

(id.)


*


confrontar-se com o real faz trepidar o mundo duplicado que se enuncia como superação da realidade? não perguntar sobre a sua incidência permite que se suspenda o confronto com o real? seria a suspensão um circuito de atrocidades? a ficção construída como recusa constitui tanto um afastamento quanto uma proteção contra a dúvida?

(in Saber o sol do esquecimento, 2010)


*


CONTRACANTO

Não esperamos em vão porque não construímos
o que esperar (porque não
arriscamos
uma mediocridade maior): acreditamos

numa dor sem sofrimento: podemos
confessar
nossas insônias, às vezes com

entusiasmada autoridade, mas calamos
sobre o nosso sono;
calamos
sobre as vozes arrastadas pelos

cômodos que exigimos
cada
vez mais calmos, cada vez

mais nítidos, penso que habito
este corpo; meus músculos, no entanto,
continuam
despovoados: movimento
algum
lábio; digo que

habito este corpo: meus braços,
no
entanto, continuam

abandonados: preciso
falecer para falar: sem morrer

as mortes que me amordaçam,
não
conseguirei tocar
a
palavra com
que
aprenderei a me despreparar

(id.)


Casé Lontra Marques nasceu no Brasil em 13 de novembro de 1985. Vive no estado do Espírito Santo.





Foi no dia 7 de Maio. A foto, contudo, só agora chega. Documenta a leitura de poemas ocorrida na Casa Fernando Pessoa no âmbito do Festival de Poesia "Tordesilhas". Da esquerda para a direita: Ruy Ventura, Eduardo Jorge, Virna Teixeira e João Miguel Henriques.