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João Candeias

[para Cristovam Pavia]


palavras I

vamos agora esbater as fronteiras
pegar nos remos, navegar como se
uma luz acenasse do infinito
contornar o vazio das palavras
a alucinação deletéria das imagens
a imensa bravura dos oceanos

vamos situar as estevas ao nível das fontes
libertar-nos dessa opressão do corpo:
tomemos o peso ao corpo, até que
o peso do corpo sobre o coração
identifique o rosto
a perfeição do corpo deleitoso
o seu perfil humano, desamericanizado e belo

os lábios descem à emanação telúrica do basalto
vicejam avencas pela verdadeira rede das palavras
é aí que renascem, se nutrem, crescem
flâmulas eufóricas no vento do diálogo
o diálogo encontra a luz e o ouro
sobre a sombra
azul o corpo retoma a navegação como se
o licorne de ouro acenasse do infinito


palavras II

porque te quedaste imperioso, interrogante do silêncio
como espécie rara por habitar os aziagos destinos
com um lampejo de voz nas arestas vivas dos caminhos;
porque descias o chiado com uma lâmpada acesa
à procura do mapa com o plano dos diálogos definitivos…
as palavras, as palavras sempre te aterraram
com elas se decidiram os grandes duelos da honra
por elas se construíram os grandes templos de deus – topografias da alma –
e se desejou a salvação no dia do armistício.
aliás é sempre o que sobra do que se diz o mais inquietante
o movimento circular como um espelho lunar do gesto interminável
que se não completa na orquestrada gargalhada suspensa.

desço ao seio dos teus dias pela haste estreita do acaso
e desafio cada peça do cenário em que pintas
a cidade o acto de nascer e de continuar morrendo
o blusão negro com badges da paz rasgada
ao pequeno inferno onde afogas as paixões mais solenes
e ousas sempre um outro passo ágil e furtivo
e observas nas montras de natal as máscaras da nova contrição.

o rio é sempre uma larga espera quando se espraia em quietude
serenidade, e resguarda futuros, adormece e acorda ausências
Victor Oliveira Mateus


a Cristovam Pavia



Pela janela do meu quarto ouço um ruído que se mantém:
longínquo, indistinto na sua distância, nessa permanência
de rumor que me sufoca. Que me sufoca e atordoa os pássaros
na ramaria em frente. Pela janela as vozes de um lugar!
Vozes que curiosamente vejo e que magoam este desacerto

que sempre volta entre o diferente que vislumbro e esta cidade
empedernida: fanqueiros com os seus manequins de papelão
carcomidos pelo tempo e pelo desuso; miúdos com seus carros
de esferas a ziguezaguearem na humidade do asfalto; um cão
vadio ( ou de liberdade cioso?) vasculhando os restos com que

os imprestáveis excessos mascaram sua vaidade. Pela janela
do meu quarto bebo a luz que a cidade não tem, mas que para ela
sonho em momentos de insurrecto furor ou de esparsa melancolia;
momentos onde ainda teço os poucos poemas que de mim – talvez –
se firmem, para júbilo dos que suportam, mas não desistem.



José do Carmo Francisco



BILHETE NO BOLSO

Às vezes está tão longe
Às vezes está mais perto
Fala e ninguém o ouve
Como telefone no deserto

Vai dar uma longa volta
Pode morrer e não morre
Com um bilhete no bolso
Anda a pé, viaja e corre

Apanha a chuva dos outros
Porque é poeta concreto
Suja as mãos fica na rua
E desenha um ângulo recto

Traz às costas uma dor
Sem peso nem dimensão
Com um bilhete no bolso
Já não ouve o coração

Faz os poemas devagar
Num forno feito de fogo
Que nasce da combustão
Duma voz fora de jogo

Defende sem bem saber
Justos contra tiranos
Com um bilhete no bolso
Anda assim há muitos anos

Um quase nada lhe chega
Para o que vai sonhar
Um futuro sem a morte
Em todo e qualquer lugar

Escondido na multidão
Atravessa as ruas só
Com um bilhete no bolso
Há-de voltar para o pó

(in Leme de Luz, Sol XXI, 1993)

Nicolau Saião


SOBRE CRISTOVAM

Dizia o célebre inquisidor-mor de Richelieu, com um cinismo não isento de senso de humor, “Dai-me uma frase qualquer e conseguirei que ela ponha um baraço ao pescoço do seu autor”. E embora se trate aqui de poesia e de um poeta, talvez faça sentido suspender a respiração por uns segundos.
Porque, com efeito, a poesia é um perigoso ofício. E se não pelas partes de fora, pelo menos pelas partes de dentro.
Será verdade que os poetas são sobreviventes? Talvez sejam - sobreviventes do tal lugar onde se acoita a verdadeira vida a que aludia, entre outros, o sobrevivente de Charleville (Rimbaud). A poesia será também, assim, uma certa arte das retiradas, a forma mais pessoal de combater a adversidade. Quem diz pessoal diz eficaz. Eficaz, na verdade, porque nisto de coisas de dentro temos de nos haver com presenças muito mais perigosas que os habituais fantasmas do quotidiano. Daí que, por vezes, como (não) queria Cristovam Pavia, só possa haver “saída pelo fundo”. Pelo fundo, pelo meio, por cima, em suma e afinal: pelo lugar onde, no encalço de Flamel, “os touros encantados que deitam fumo e fogo pelas narinas” encontram finalmente a brancura da verdade perseguida.
De Cristovam sei muito pouco. Quer dizer, talvez saiba relativamente muito – porque vou a ele inteiramente pelo coração. Como fascinado leitor, primeiro, de uns raros poemas inseridos numa pequena antologia algo precária e, depois, dum livro muito pundonorosamente feito, com os seus poemas completos - publicados, esparsos e inéditos – que li inteirinha num pedaço de tarde de verão, sentado sob uma das nogueiras citadinas em frente do edifício barroco do antigo Hospital da Misericórdia portalegrense.
Cristovam falava (fala) de pequenas coisas, o que é indício de que o fazia de grandes coisas: da morte do seu cão, da luz difusa batendo na parede da casa da velha quinta alentejana dos ancestros, da recordação que sua mãe teria na noite do seu hipotético e afinal sucedido funeral. Coisas assim leves para quem julga que o poeta é uma espécie de artilharia pesada.
E porque o tom em que o fazia é dos mais belos (e estou a lembrar-me da emoção em Rilke, em Hesse, mas também em Marie-Noel), há-de encontrar sempre quem através dele possa olhar as tardes de negrume e, simultaneamente, de inteira claridade onde se vão reflectindo ora um rosto, ora um ombro, ora uma mão escapando ao nevoeiro...
Rui Almeida





(homenagem a Cristovam Pavia)


I.


De um lado
a sombra delicada dos que choram.

A tristeza virginal cosida ao forro do casaco
e os dedos viciados na textura
do tecido do interior dos bolsos.

Mergulhamos na terra
que já não nos dá pão ou sepultura.

Lá dentro
dizem qualquer coisa que nos ensina a ser velozes,
a estar perto da cegueira.
Depois calam-se dentro da violência
e do sussurro tremido.

Somos nós quem mente
quem abandona os ossos para não morrer,
antes mesmo de saber contar pelos dedos
a secura da cara que antecipa a nudez.

O golpe mais viável é o desespero.
Tudo o resto fere a sensibilidade da pele
sujeita ao frio que queima.

Como são belos os frutos
roubados das mãos dos suicidas.




II.


Do outro
o riso abundante chovendo sobre os mortos.

Amanhã não estou cá e não sei se volto.
Todo o gozo pode ser devolvido
e marcado com o sinal da virtude.

O zelo da coragem não compensa
e só a resposta dos que esperam pode salvar.

Falo das ruas onde não habita ninguém
mas não sou compreendido.
É como se todos desconhecessem
que tudo o que se pode comparar ao mar
permanece inteiro nas vísceras
e está acessível ao rubor da pele.

Os defuntos agonizam ainda
sem se lembrarem do sangue de quando viviam.
Não há qualquer solenidade nisto,
é apenas um veneno que serve para afiar facas
nos dedos dos desempregados;
um licor de calma que alivia
para que não se ausentem do registo.

A chuva é branca e suspende os olhos
no elogio do corpo reclinado sobre a aparência.

Aurélio Porto


Dois poemas



(um quase haiku)

Cristovam, mastigadores do mundo
somos, e de tuas glicínias.
Doce flor na saliva, passado menino.

1983


A uma cadela

Enquanto vives,
Diana, e teus olhos do teu mais profundo sono
jamais me perdem e vigilantes
ao menor gesto meu se sobressaltam,
enquanto o sopro que não há te atravessa inteira
e te mantém a nosso lado,
na poeira e no vento, e no sol o xisto
abrindo,
digo-te agora que o teu sopro é o meu sopro,
e enquanto imóveis na memória
frescas glicínias tombam sob o calor de agosto
sob a sombra tombam onde Farrusco
o cão dormindo outro cão lembra
esse que Cristovam amou onde outras glicínias engrinaldam
esse menino só
lembrança,
digo-te enquanto vives a alegria a dor
do coração compassivo,
a ferida funda rasgada e o golpe
à faca o corpo já morto e agoniza,
digo-te aí o lugar único
onde o coração repousa,
e quando tuas orelhas ao longe se erguem
ao curto silvo que o vento traz,
não há,
Diana,
outra alegria.

1988


in Flor de um Dia
no prelo

Amadeu Baptista

PARA UMA HOMENAGEM A CRISTOVAM PAVIA


1.
Se eu tivesse uma pistola em vez de um abre-latas,
obviamente não me inquietaria esta manhã.
Há opções a que o livre arbítrio força
e alvos a que disparo mesmo às escuras.

De tanto protagonizar a solidão
respiro o ar rarefeito dos cafés.
Não fossem Plutão e a Atlântida
não sei onde esconderia o coração.

Raios partam a vida e quem lá ande,
já o outro disse e viu-se o fim que teve.
Eu sou daqueles que sabem por experiência

a que mundos virtuais nos leva a maledicência.
Um barco é que eu assaltava, se pudesse.
Se tivesse uma pistola em vez de um abre-latas.


2.
Na capital do império às nove da manhã
reflicto sobre alguma gente que aqui vive
e faz das letras portuguesas
a história da carochinha que se vê.

A esta hora o monstro ainda dorme
infinitamente cansado da crítica hebdomadária.
Há bons empregos pela noite dentro
entre o cais das colunas e a cruz quebrada.

Sejam quem sejam os da academia
deviam dedicar-se à vaselina
em vez da ambiguidade que mantêm

no exercício frustrado da alquimia
ao politicamente correcto hipotecado.
Tivesse eu uma pistola em vez de um abre-latas.


3.
Entre o engarrafamento geral e a loira do cais
fico de rastos com tanta violência.
Valha-me o rio e aquela coisa alta
que deste lugar de luz ao longe se avista.

Embora saiba que nada me convence
e a insurreição prometida ainda não basta,
obrigado, destino, pela feliz desgraça
que veio a mim neste desatino.

Uma criança soletra no autocarro
um sorriso perverso para os que passam
e avança sobre mim com a metralhadora de plástico.

Ao menos tenho um cúmplice nesta selva urbana.
Do mesmo modo sorrindo já nada mais me resta
que premeditar o disparo que o abre-latas adestra.

Nicolau Saião

CRISTOVAM PAVIA

a António Luís Moita

Entre mim e as casas estão as árvores e a ribeira
e milhões de anos feitos para a Lua e as estevas.
Essa ribeira que corre sabe-se lá para onde
talvez p'ra São Mamede, talvez p'ra esses campos
de Espanha - vida minha! - que jamais conhecerei.
Dionísio teria olhado o vale e a montanha
quando neles se ocultava o rasto de animais
depois desaparecidos. Pensamentos e memórias
entre um olhar e um silêncio, como o odor
do fumo dos lares ao fim da tarde.
Serena é a madrugada, despertando
um vôo de coruja sobre os ombros de quem vela
- pastor ou aguadeiro
homem que na terra coloca a semente do tempo
ou do trigo fremente para os sonhos e os minutos.

Algures, junto a uma parede devastada
onde a cal cristaliza a inocência e a perfídia
as abelhas são mais que uma simples razão
do Universo gerando recordação e inquietude
de anos e anos a vir: são o retrato
multiplicado da vida que fugiu
quando a nossa voz íntima se cala. Na terra
marco os dedos e os vestígios
de avós e bisavós, do solitário
cão que me adorou na infância:
o contorno das palavras que escrevi e que despertam
as sombras do futuro e do passado. E lá entre segredos
de amigos, de quimeras, das ofertas
que nem ousamos preferir
- gramínea, barco, gazela, primavera -
e que por isso são nossas
mais que tudo o que foi
o nosso quinhão misericordioso
hei-de lembrá-las sempre, como puras
e felizes sombras sobre o rio
Sobre as casas que vi como as imagens

que tive e que inventei.

(in Os Olhares Perdidos, Universitária Editora)
Maria do Sameiro Barroso



CRISTOVAM PAVIA

Sei que todos os rouxinóis já morreram,
no centro das paisagens amarelas,
onde os cães já não uivam, nem os galgos
choram.
Sei que todos os pássaros que me trazem
a névoa são cometas efémeros.
Por isso, nada designo.

Hoje, tudo é triste, como um poema que desaba
na Rua dos Fanqueiros.
Talvez os meteoros ainda pulsem, algures,
na estrada sinuosa do meu sangue.
Sei que todos os rouxinóis já morreram
e que os lobos e os homens apenas desfiam
a sua teia de morte.

Que pode o silêncio quando a luz se cinde?
Que pode o corpo, quando o coração se prende
e se estilhaça?
Que pode a sede, o magma, o vulcão,
quando as faíscas cintilam

apenas para perfilar o nada?


Lisboa, 13 de Outubro de 2008






HOMENAGEM A CRISTOVAM PAVIA

Faz hoje 40 anos que morreu em Lisboa Cristovam Pavia, aí nascido em 7 de Outubro de 1933. Estes dois poemas, da autoria do coordenador deste blogue e retirados do seu livro inédito Vale dos Homens, são os primeiros passos de uma homenagem alargada que aqui se publicará em primeira mão, visando uma futura edição em livro. Enquanto a poesia do filho de Francisco Bugalho não sai do limbo onde tem sido colocada pelo esquecimento dos editores portugueses de poesia - é mínimo que lhe devemos.



[entre Francisco Bugalho e Cristovam Pavia – 1968]

não pude, meu filho, acolher no peito
a carne e a madeira. nesta terra
reservei de antemão o espaço necessário
para aumentares comigo o fogo
em que fui depositando a minha sede.
perdeste a chave, eu sei. mas fertilizaste com a tua mão
o rosto dessa escultura virada a nascente.
na montanha, a água do tanque ficou límpida.
nela entalhaste o oiro e a agonia. o medo
desfez a porta. colocou sobre os músculos o lintel
dessa torre, como se fora um tronco de carvalho.
o líquido assentou no coração.
só então pudeste beber desse cálice
esculpido pelo mar e pela sombra.


*


recebi, meu pai, o tempo e a sementeira. procurei
nesta terra um veio de água
para lavar e alimentar o coração.
o campo enegrecia.
fui escutando, quando não conseguia vigiar,
essa ponte sobre o mundo.
que lugar me pertencia?
sem olhos, o verbo toldava o movimento.
a água corria entre os lençóis postos de novo.
colei retratos de gente. desenhei mapas, paisagens e rostos.
anotei com minúcia estradas que se cruzavam comigo.
contudo, o campo enegrecia.
transportei a humanidade inteira
no peso dos ossos e da carne.
atravessei a corrente transportando
sobre os ombros a viagem e o desespero.
em silêncio, tentei regressar. a semente ardia entre os dedos
queimando lentamente a pele e as unhas.
espalhada pelo mundo, era preciso reunir essa carne
para com ela fertilizar o vale e a ribeira.
sobre o arco registei o cântico dos mortos.
procurei uma paisagem para alimentar o coração.
diante da imagem tive de novo o corpo reunido.
o sangue desenhou no mármore
o canto da devesa.
entre as ervas e a inscrição do medo – pude descansar.



[p/ Cristovam Pavia]

escreve, sempre de novo,
o vento entre os pinheiros,
uma chuvada, antes da divisão da terra.

no sótão, a mão direita
(os dedos demasiado longos).
fragmentos de um texto circundam
a abóbada, o comboio, o coração.

plantaram carvalhos na encosta
dentro da viagem
na fresta virada a poente.

a legenda continua incompleta.
sob as letras nascem letras ainda mais antigas.
desapareceram as paredes,
a cal onde o texto surgiria.

vizinhos na infância,
resguardaram teu sangue nos limites do campo:

o sopro que escreveste nas ruínas,
o odor que sempre nos iluminou.

[Castelo de Vide, ruínas de S. Paulo]