AMADEU BAPTISTA
DOZE CANTOS DO MUNDO
(alguns excertos)
WILLIAM BLAKE: NIGHT THOUGHTS (1797)
Não há síntese,
mas só mundos paralelos
onde a graça e a desgraça
se encontram
para delimitar o inferno
e o acrescentarem
com a essência e o erro,
a tontura e o desequilíbrio.
[…]
GOYA: A FAMÍLIA DE D. CARLOS IV (1801)
[…]
Preciso de água forte para dessedentar
o rumo a que o desespero obriga,
pincéis de cerdas duras,
espátulas cortantes,
paletas invisíveis
onde as cores, fortíssimas, latejem.
Preciso de fulgores
e circunstâncias
onde uma ardência nos olhos possa ser
um sinal de redenção,
[…]
GUSTAVE COURBET: A ORIGEM DO MUNDO (1866)
[…]
Eu crio:
estrume,
ou esterco,
crio,
para que o meu testemunho,
sob o efémero,
possa aguilhoar as almas
e consumar
a união entre o diverso e o transitório,
e não haja mais escândalo
que o escândalo
de ser a soberba a nossa ignorância
e a nossa ignorância a desventura.
[…]
FRANCIS BACON: STUDY FOR CROUCHING NUDE (1952)
[…]
No osso inciso,
na grande obra incompleta,
sou uma válvula de vácuo
e um transístor,
a desfragmentação
e o cromatismo
que resiste à vileza
e vê no crime
o imparável modo de estar vivo,
a aprofundar a refrega dos subúrbios,
como arte,
dissipação,
incandescência.
[…]
[…]
[…] os cães estão em todo o lado,
e devoram as casas,
e sobem aos telhados para devorar
os livros,
e, nas jaulas,
amontoam cadáveres,
instantes peregrinos
com cabeça de rádio
e desorbitados olhos
pelo terror do urânio,
as múltiplas engrenagens.
[…]
MARK ROTHKO: NUMBER 207 – RED OVER DARK BLUE ON DARK GRAY (1961)
[…]
Coube-nos viver num tempo de assassinos,
mas é a claridade que almejamos,
não a que veio ao quadro convocar-nos,
mas a que, pelo poder da pintura,
se instala em nós,
a modular a noite
e a apaziguar-nos.
É essa claridade que procuro,
– e o silêncio.
O silêncio das cores e o seu apelo
irrevogável,
de que nada há a temer,
mesmo que atemorize.
A vida é isso mesmo:
o medo à nossa frente,
imóvel como a esfinge,
e nós sempre a enfrentá-lo,
transparentes,
aflitos,
condenados,
mas prontos para ver
as cores do infinito.
Doze Cantos do Mundo está entre os melhores livros de Amadeu Baptista. Foi galardoado com o Prémio Oliva Guerra, na edição de 2008. A colectânea foi publicada em Setembro de 2009 pela Câmara Municipal de Sintra (organizadora do concurso), numa tiragem infelizmente restrita.
Mostrar mensagens com a etiqueta Amadeu Baptista. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Amadeu Baptista. Mostrar todas as mensagens
DIVINA MÚSICA
Chegou há poucos dias há minha caixa de correio a antologia Divina Música – Antologia de Poesia sobre Música, uma edição comemorativa do 25.º Aniversário do Conservatório Regional de Música de Viseu, organizada por Amadeu Baptista.
Nela podem ser lidos poemas de Adalberto Alves, Affonso Romano de Sant’Ana, Albano Martins, Alexandra Malheiro, Alexandre Vargas, Alexei Bueno, Amadeu Baptista, Ana Hatherly, Ana Luísa Amaral, Ana Mafalda Leite, Ana Marques Gastão, Ana Salomé, Ana Sousa, António Brasileiro, António Cabrita, António Cândido Franco, António Ferra, António Gregório, António José Queirós, António Osório, António Rebordão Navarro, António Salvado, Artur Aleixo, Bruno Béu, C. Ronald, Camilo Mota, Carlos Felipe Moisés, Carlos Garcia de Castro, Casimiro de Brito, Cláudio Daniel, Cristina Carvalho, Daniel Abrunheiro, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Danny Spínola, Davi Reis, Donizete Galvão, E.M. de Melo e Castro, Edimilson de Almeida Pereira, Eduardo Bettencourt Pinto, Eduíno de Jesus, Ernesto Rodrigues, Eunice Arruda, Fernando de Castro Branco, Fernando Echevarría, Fernando Esteves Pinto, Fernando Fábio Fiorese Furtado, Fernando Grade, Fernando Guimarães, Fernando Pinto do Amaral, Francisco Curate, Gonçalo Salvado, Graça Magalhães, Graça Pires, Henrique Manuel Bento Fialho, Hugo Milhanas Machado, Iacyr Anderson Freitas, Inês Lourenço, Isabel Cristina Pires, Jaime Rocha, Joaquim Cardoso Dias, João Aparício, João Camilo, João Candeias, João Manuel Ribeiro, João Moita, João Rasteiro, João Rios, João Rui de Sousa, João Tala, Joaquim Feio, Jorge Arrimar, Jorge Reis-Sá, Jorge Velhote, José Agostinho Baptista, José Carlos Barros, José do Carmo Francisco, José Luís Mendonça, José Luís Peixoto, José Manuel Vasconcelos, José Mário Silva, José Miguel Silva, José Tolentino de Mendonça, Júlio Polidoro, Levi Condinho, Luís Amorim de Sousa, Luís Filipe Cristóvão, Luís Quintais, Luís Soares Barbosa, manuel a. domingos, Margarida Vale de Gato, Maria Andersen, Maria Estela Guedes, Maria João Reynaud, Maria Teresa Horta, Miguel-Manso, Miguel Martins, Myriam Jubilot de Carvalho, Nicolau Saião, Nuno Dempster, Nuno Júdice, Nuno Rebocho, Ondjaki, Ozias Filho, Patrícia Tenório, Paula Cristina Costa, Paulo Ramalho, Paulo Tavares, Prisca Agustoni, Risoleta Pinto Pedro, Roberval Alves Pereira, Rosa Alice Branco, Rui Almeida, Rui Caeiro, Rui Coias, Rui Costa, Ruy Ventura, Sara Canelhas, Soledade Santos, Teresa Tudela, Torquato da Luz, Urbano Bettencourt, Vasco Graça Moura, Vera Lúcia de Oliveira, Vergílio Alberto Vieira, Victor Oliveira Mateus, Virgílio de Lemos, Vítor Nogueira, Vítor Oliveira Jorge, Yvette K. Centeno, Zetho Cunha Gonçalves.
Há no volume poemas que gostei muito de ler, como por exemplo os assinados por C. Ronald, Carlos Felipe Moisés, Carlos Garcia de Castro, Edimilson de Almeida Pereira, Echevarría, Fiorese Furtado, Iacyr Anderson Freitas, Joaquim Cardoso Dias, João Camilo, José Carlos Barros, José Mário Silva, Luís Quintais, Luís Soares Barbosa, Maria Andersen, N. Saião, Nuno Dempster e Rui Almeida. De outros, nem tanto, sou sincero. (Continuo a não perceber como pôde ficar à porta um poeta da craveira de Wilmar Silva - mas Amadeu lá conhecerá as suas mais íntimas razões). Pessoalmente, assino por lá um poema dedicado a Bach, numa versão que os últimos tempos se encarregaram já de modificar.
Chegou há poucos dias há minha caixa de correio a antologia Divina Música – Antologia de Poesia sobre Música, uma edição comemorativa do 25.º Aniversário do Conservatório Regional de Música de Viseu, organizada por Amadeu Baptista.
Nela podem ser lidos poemas de Adalberto Alves, Affonso Romano de Sant’Ana, Albano Martins, Alexandra Malheiro, Alexandre Vargas, Alexei Bueno, Amadeu Baptista, Ana Hatherly, Ana Luísa Amaral, Ana Mafalda Leite, Ana Marques Gastão, Ana Salomé, Ana Sousa, António Brasileiro, António Cabrita, António Cândido Franco, António Ferra, António Gregório, António José Queirós, António Osório, António Rebordão Navarro, António Salvado, Artur Aleixo, Bruno Béu, C. Ronald, Camilo Mota, Carlos Felipe Moisés, Carlos Garcia de Castro, Casimiro de Brito, Cláudio Daniel, Cristina Carvalho, Daniel Abrunheiro, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Danny Spínola, Davi Reis, Donizete Galvão, E.M. de Melo e Castro, Edimilson de Almeida Pereira, Eduardo Bettencourt Pinto, Eduíno de Jesus, Ernesto Rodrigues, Eunice Arruda, Fernando de Castro Branco, Fernando Echevarría, Fernando Esteves Pinto, Fernando Fábio Fiorese Furtado, Fernando Grade, Fernando Guimarães, Fernando Pinto do Amaral, Francisco Curate, Gonçalo Salvado, Graça Magalhães, Graça Pires, Henrique Manuel Bento Fialho, Hugo Milhanas Machado, Iacyr Anderson Freitas, Inês Lourenço, Isabel Cristina Pires, Jaime Rocha, Joaquim Cardoso Dias, João Aparício, João Camilo, João Candeias, João Manuel Ribeiro, João Moita, João Rasteiro, João Rios, João Rui de Sousa, João Tala, Joaquim Feio, Jorge Arrimar, Jorge Reis-Sá, Jorge Velhote, José Agostinho Baptista, José Carlos Barros, José do Carmo Francisco, José Luís Mendonça, José Luís Peixoto, José Manuel Vasconcelos, José Mário Silva, José Miguel Silva, José Tolentino de Mendonça, Júlio Polidoro, Levi Condinho, Luís Amorim de Sousa, Luís Filipe Cristóvão, Luís Quintais, Luís Soares Barbosa, manuel a. domingos, Margarida Vale de Gato, Maria Andersen, Maria Estela Guedes, Maria João Reynaud, Maria Teresa Horta, Miguel-Manso, Miguel Martins, Myriam Jubilot de Carvalho, Nicolau Saião, Nuno Dempster, Nuno Júdice, Nuno Rebocho, Ondjaki, Ozias Filho, Patrícia Tenório, Paula Cristina Costa, Paulo Ramalho, Paulo Tavares, Prisca Agustoni, Risoleta Pinto Pedro, Roberval Alves Pereira, Rosa Alice Branco, Rui Almeida, Rui Caeiro, Rui Coias, Rui Costa, Ruy Ventura, Sara Canelhas, Soledade Santos, Teresa Tudela, Torquato da Luz, Urbano Bettencourt, Vasco Graça Moura, Vera Lúcia de Oliveira, Vergílio Alberto Vieira, Victor Oliveira Mateus, Virgílio de Lemos, Vítor Nogueira, Vítor Oliveira Jorge, Yvette K. Centeno, Zetho Cunha Gonçalves.
Há no volume poemas que gostei muito de ler, como por exemplo os assinados por C. Ronald, Carlos Felipe Moisés, Carlos Garcia de Castro, Edimilson de Almeida Pereira, Echevarría, Fiorese Furtado, Iacyr Anderson Freitas, Joaquim Cardoso Dias, João Camilo, José Carlos Barros, José Mário Silva, Luís Quintais, Luís Soares Barbosa, Maria Andersen, N. Saião, Nuno Dempster e Rui Almeida. De outros, nem tanto, sou sincero. (Continuo a não perceber como pôde ficar à porta um poeta da craveira de Wilmar Silva - mas Amadeu lá conhecerá as suas mais íntimas razões). Pessoalmente, assino por lá um poema dedicado a Bach, numa versão que os últimos tempos se encarregaram já de modificar.
Amadeu Baptista
vence Prémio Literário Oliva Guerra/ Sintra 2008
O original de poesia Doze Cantos do Mundo, de Amadeu Baptista, venceu o Prémio Literário Oliva Guerra – Sintra 2008, promovido pela Câmara Municipal de Sintra. A distinção mereceu a unanimidade do júri, que analisou 83 originais concorrentes. O júri integrou os escritores Liberto Cruz, em representação da Associação Portuguesa de Críticos Literários, José Correia Tavares, em representação da Associação Portuguesa de Escritores, e Ricardo António Alves, em representação da Câmara Municipal de Sintra.
O Prémio Literário Oliva Guerra é anualmente patrocinado pela Câmara Municipal de Sintra e consiste, além da publicação em livro da obra vencedora, no montante de 5.000 euros. A entrega do prémio ocorrerá em data a anunciar pela autarquia de Sintra.
Amadeu Baptista - a quem o Estrada do Alicerce endereça publicamente os parabéns - nasceu no Porto em 1953, onde frequentou a Faculdade de Letras da Universidade daquela cidade.É membro da Associação Portuguesa de Escritores e do Pen Clube Português.Tem colaboração dispersa em jornais, revistas, antologias e livros colectivos, em Portugal e no estrangeiro, designadamente: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U.A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Roménia e Uruguai.Poemas seus foram traduzidos para alemão, castelhano, catalão, francês, hebraico, italiano, inglês e romeno.
Publicou os seguintes livros de poesia: As Passagens Secretas (1982), Green Man & French Horn (1985), Maçã (1986) (Prémio José Silvério de Andrade - Foz Côa Cultural, 1985), Kefiah (1988), O Sossego da Luz (1989), Desenho de Luzes (1997), Arte do Regresso (1999) (Prémio Pedro Mir – Revista Plural, na categoria de Língua Portuguesa, México, 1993), As Tentações (1999), A Sombra Iluminada (2000), A Noite Ismaelita (2000), A Construção de Nínive (2001), Paixão (2003) (Prémio Vítor Matos e Sá e Prémio Teixeira de Pascoaes, 2004), Sal Negro (2003), O Som do Vermelho - Tríptico Poético sobre pintura de Rogério Ribeiro (2003), O Claro Interior (2004), (Prémio de Poesia e Ficção de Almada, 2000), Salmo (2004), Negrume (2006), Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007) (2007), Outro Domínios (2008), (Prémio Literário Florbela Espanca, 2007), O Bosque Cintilante (2008) (Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2007), Sobre as Imagens (2008) (Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica, 2008), Poemas de Caravaggio (2008) (Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, 2007). Recentemente foi galardoado com o Prémio Literário Edmundo Bettencourt – Cidade do Funchal, pelo original Os Selos da Lituânia e o Prémio Espiral Maior (Galiza/Espanha), pelo original Açougue.
Do original premiado divulgamos em pré-publicação:
GOYA: A FAMÍLIA DE D. CARLOS IV (1800)
Assim como há o cinismo,
há uma gramática do cinismo.
Cada mestre usa o seu
à luz do seu compêndio,
com forças à deriva,
e consubstanciando
o alarde da pintura
Tomemos o exemplo
da família real,
esta ou qualquer outra.
Se olharmos bem os rostos
vemos o que Deus
falha no mundo
– as insipiências
onde a criação é um malogro.
Mas o cínico sou eu,
embora o Príncipe
esteja talhado para a maldade,
com o corpo a três quatro,
olhando para trás,
sem profundidade,
mas a arrogância que é própria dos príncipes.
O Rei é uma amálgama de sucata,
que a idade sutura
e um certo ‘ai que não dói’,
que se escuta em toda a corte,
lhe lava as mãos
na promiscuidade,
enquanto acata as ordens da Rainha.
Esta, ao centro do painel,
é só os braços
que mostra por contraste
com a riqueza insultuosa do vestido,
paramentado de rendas espanholas
e formas que, há muito,
exercem a lascívia
a bom recato.
O mais são tétricas figuras,
que uma Princesa apoia colocando a altivez
em contraponto com gente impaciente pelo almoço
e as fatias de presunto quando a tarde
os puser a caminho do curral.
Lamento que a pintura não faça ouvir
os ruídos da rua,
o povo com os sacos de carvão sobre os ombros
e as putas com os ombros sobre os sacos de carvão.
Lá fora o mundo é a mais valia
do conjunto,
sendo que tudo está lubrificado
para que se note o estupro
e seja Deus, Nosso Senhor, crucificado.
E o cínico sou eu.
Por isso, à esquerda,
onde há ponto de luz
que a sombra alcança,
olho de esguelha o universo
e quase que parece que sorrio.
Não é verdade.
A esse canto,
onde fito como posso os que estão,
sendo que os de vejo de frente
e de joelhos,
queixando-se do reumático,
apenas conjecturo
como há aberrações
que podem tudo.
Passei por Moncloa
a um fim de tarde,
começava Maio
e dos campos desprendia-se
o odor sereno e violento
que há na terra.
E vi
como os massacres são, ainda,
o pão de cada dia,
por mais ou menos cínicas
que sejam as pinturas,
ou as armas estejam prontas para o abate.
E o meu coração
anotou tudo:
- a luz, sempre vital,
o pelotão de anónimos
e as suas vítimas,
a centelha de fogo, ou água,
no olhar do condenado.
E, já tendo visto tudo,
quero dizer,
já tendo visto em excesso
deste excesso de vergonha
sem vergonha,
aferi o meu lugar
na tábua rasa em que vivo,
e morro,
e, sem sonhos, durmo.
Preciso de água forte para dessedentar
o rumo a que o desespero obriga,
pincéis de cerdas duras,
espátulas cortantes,
paletas invisíveis
onde as cores, fortíssimas, latejem.
Preciso de fulgores
e circunstâncias
onde uma ardência nos olhos possa ser
um sinal
de redenção,
enquanto o povo
é à míngua que morre
e eu, cínico sendo,
página a página leio este compêndio
que os cínicos maiores que o meu cinismo
instituíram.
Pudesse eu regressar a Fuendetodos,
ou fazer pintura sacra,
cheia de entorses e nervos,
com o Cristo ladeado de ladrões,
como eu estou.
Provavelmente,
entre a maga vestida e a desnuda,
preferiria chorar
até ao fim do mundo,
chorar
e abrir as veias:
para que o sangue corresse
e a pintura tomasse um outro rumo
de cores,
difusas, se possível,
repartidas.
Mas eis que a doença chega
e a vivacidade se esvai,
e estou cego,
e totalmente surdo
e sou, assim, o cínico do retrato
a conferir ao mundo o mundo retratado
e os seus caprichos,
enquanto os desastres
e a guerra submeto
nas gravuras.
Já nem sei o que digo,
o tempo sobrevoa-me as têmporas
e onde estive não estou,
estando sempre
algures,
mais ano para a frente ou para trás,
mais cão ou menos cão nas telas,
mais cínico ou menos cínico
entre os cínicos.
O Príncipe, o Rei e a Rainha:
vesti-os de cores vivas
e, contudo, é de luto que está a minha arte,
porque, por esta comitiva,
nem para a eternidade
ressuscito.
Mas persisto.
Para isso é que o cinismo
recebe do cinismo
moedas de oiro,
e posso, quando posso,
com o branco de espanha
misturar azul cerúleo,
e ao verde-bétula
juntar óxido de ferro,
para que o esplendor da luz
seja o que é, na obra:
– fútil, sem glória,
como é cada guerra,
embora lute sempre,
e não lhes dê tréguas.
Este é meu tempo:
tomai e bebei.
Este é meu tempo,
tomai e comei.
Por mim, como sempre, estou
cheio de fome.
vence Prémio Literário Oliva Guerra/ Sintra 2008
O original de poesia Doze Cantos do Mundo, de Amadeu Baptista, venceu o Prémio Literário Oliva Guerra – Sintra 2008, promovido pela Câmara Municipal de Sintra. A distinção mereceu a unanimidade do júri, que analisou 83 originais concorrentes. O júri integrou os escritores Liberto Cruz, em representação da Associação Portuguesa de Críticos Literários, José Correia Tavares, em representação da Associação Portuguesa de Escritores, e Ricardo António Alves, em representação da Câmara Municipal de Sintra.
O Prémio Literário Oliva Guerra é anualmente patrocinado pela Câmara Municipal de Sintra e consiste, além da publicação em livro da obra vencedora, no montante de 5.000 euros. A entrega do prémio ocorrerá em data a anunciar pela autarquia de Sintra.
Amadeu Baptista - a quem o Estrada do Alicerce endereça publicamente os parabéns - nasceu no Porto em 1953, onde frequentou a Faculdade de Letras da Universidade daquela cidade.É membro da Associação Portuguesa de Escritores e do Pen Clube Português.Tem colaboração dispersa em jornais, revistas, antologias e livros colectivos, em Portugal e no estrangeiro, designadamente: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U.A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Roménia e Uruguai.Poemas seus foram traduzidos para alemão, castelhano, catalão, francês, hebraico, italiano, inglês e romeno.
Publicou os seguintes livros de poesia: As Passagens Secretas (1982), Green Man & French Horn (1985), Maçã (1986) (Prémio José Silvério de Andrade - Foz Côa Cultural, 1985), Kefiah (1988), O Sossego da Luz (1989), Desenho de Luzes (1997), Arte do Regresso (1999) (Prémio Pedro Mir – Revista Plural, na categoria de Língua Portuguesa, México, 1993), As Tentações (1999), A Sombra Iluminada (2000), A Noite Ismaelita (2000), A Construção de Nínive (2001), Paixão (2003) (Prémio Vítor Matos e Sá e Prémio Teixeira de Pascoaes, 2004), Sal Negro (2003), O Som do Vermelho - Tríptico Poético sobre pintura de Rogério Ribeiro (2003), O Claro Interior (2004), (Prémio de Poesia e Ficção de Almada, 2000), Salmo (2004), Negrume (2006), Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007) (2007), Outro Domínios (2008), (Prémio Literário Florbela Espanca, 2007), O Bosque Cintilante (2008) (Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2007), Sobre as Imagens (2008) (Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica, 2008), Poemas de Caravaggio (2008) (Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, 2007). Recentemente foi galardoado com o Prémio Literário Edmundo Bettencourt – Cidade do Funchal, pelo original Os Selos da Lituânia e o Prémio Espiral Maior (Galiza/Espanha), pelo original Açougue.
Do original premiado divulgamos em pré-publicação:
GOYA: A FAMÍLIA DE D. CARLOS IV (1800)
Assim como há o cinismo,
há uma gramática do cinismo.
Cada mestre usa o seu
à luz do seu compêndio,
com forças à deriva,
e consubstanciando
o alarde da pintura
Tomemos o exemplo
da família real,
esta ou qualquer outra.
Se olharmos bem os rostos
vemos o que Deus
falha no mundo
– as insipiências
onde a criação é um malogro.
Mas o cínico sou eu,
embora o Príncipe
esteja talhado para a maldade,
com o corpo a três quatro,
olhando para trás,
sem profundidade,
mas a arrogância que é própria dos príncipes.
O Rei é uma amálgama de sucata,
que a idade sutura
e um certo ‘ai que não dói’,
que se escuta em toda a corte,
lhe lava as mãos
na promiscuidade,
enquanto acata as ordens da Rainha.
Esta, ao centro do painel,
é só os braços
que mostra por contraste
com a riqueza insultuosa do vestido,
paramentado de rendas espanholas
e formas que, há muito,
exercem a lascívia
a bom recato.
O mais são tétricas figuras,
que uma Princesa apoia colocando a altivez
em contraponto com gente impaciente pelo almoço
e as fatias de presunto quando a tarde
os puser a caminho do curral.
Lamento que a pintura não faça ouvir
os ruídos da rua,
o povo com os sacos de carvão sobre os ombros
e as putas com os ombros sobre os sacos de carvão.
Lá fora o mundo é a mais valia
do conjunto,
sendo que tudo está lubrificado
para que se note o estupro
e seja Deus, Nosso Senhor, crucificado.
E o cínico sou eu.
Por isso, à esquerda,
onde há ponto de luz
que a sombra alcança,
olho de esguelha o universo
e quase que parece que sorrio.
Não é verdade.
A esse canto,
onde fito como posso os que estão,
sendo que os de vejo de frente
e de joelhos,
queixando-se do reumático,
apenas conjecturo
como há aberrações
que podem tudo.
Passei por Moncloa
a um fim de tarde,
começava Maio
e dos campos desprendia-se
o odor sereno e violento
que há na terra.
E vi
como os massacres são, ainda,
o pão de cada dia,
por mais ou menos cínicas
que sejam as pinturas,
ou as armas estejam prontas para o abate.
E o meu coração
anotou tudo:
- a luz, sempre vital,
o pelotão de anónimos
e as suas vítimas,
a centelha de fogo, ou água,
no olhar do condenado.
E, já tendo visto tudo,
quero dizer,
já tendo visto em excesso
deste excesso de vergonha
sem vergonha,
aferi o meu lugar
na tábua rasa em que vivo,
e morro,
e, sem sonhos, durmo.
Preciso de água forte para dessedentar
o rumo a que o desespero obriga,
pincéis de cerdas duras,
espátulas cortantes,
paletas invisíveis
onde as cores, fortíssimas, latejem.
Preciso de fulgores
e circunstâncias
onde uma ardência nos olhos possa ser
um sinal
de redenção,
enquanto o povo
é à míngua que morre
e eu, cínico sendo,
página a página leio este compêndio
que os cínicos maiores que o meu cinismo
instituíram.
Pudesse eu regressar a Fuendetodos,
ou fazer pintura sacra,
cheia de entorses e nervos,
com o Cristo ladeado de ladrões,
como eu estou.
Provavelmente,
entre a maga vestida e a desnuda,
preferiria chorar
até ao fim do mundo,
chorar
e abrir as veias:
para que o sangue corresse
e a pintura tomasse um outro rumo
de cores,
difusas, se possível,
repartidas.
Mas eis que a doença chega
e a vivacidade se esvai,
e estou cego,
e totalmente surdo
e sou, assim, o cínico do retrato
a conferir ao mundo o mundo retratado
e os seus caprichos,
enquanto os desastres
e a guerra submeto
nas gravuras.
Já nem sei o que digo,
o tempo sobrevoa-me as têmporas
e onde estive não estou,
estando sempre
algures,
mais ano para a frente ou para trás,
mais cão ou menos cão nas telas,
mais cínico ou menos cínico
entre os cínicos.
O Príncipe, o Rei e a Rainha:
vesti-os de cores vivas
e, contudo, é de luto que está a minha arte,
porque, por esta comitiva,
nem para a eternidade
ressuscito.
Mas persisto.
Para isso é que o cinismo
recebe do cinismo
moedas de oiro,
e posso, quando posso,
com o branco de espanha
misturar azul cerúleo,
e ao verde-bétula
juntar óxido de ferro,
para que o esplendor da luz
seja o que é, na obra:
– fútil, sem glória,
como é cada guerra,
embora lute sempre,
e não lhes dê tréguas.
Este é meu tempo:
tomai e bebei.
Este é meu tempo,
tomai e comei.
Por mim, como sempre, estou
cheio de fome.

Amadeu Baptista
PARA UMA HOMENAGEM A CRISTOVAM PAVIA
1.
Se eu tivesse uma pistola em vez de um abre-latas,
obviamente não me inquietaria esta manhã.
Há opções a que o livre arbítrio força
e alvos a que disparo mesmo às escuras.
De tanto protagonizar a solidão
respiro o ar rarefeito dos cafés.
Não fossem Plutão e a Atlântida
não sei onde esconderia o coração.
Raios partam a vida e quem lá ande,
já o outro disse e viu-se o fim que teve.
Eu sou daqueles que sabem por experiência
a que mundos virtuais nos leva a maledicência.
Um barco é que eu assaltava, se pudesse.
Se tivesse uma pistola em vez de um abre-latas.
2.
Na capital do império às nove da manhã
reflicto sobre alguma gente que aqui vive
e faz das letras portuguesas
a história da carochinha que se vê.
A esta hora o monstro ainda dorme
infinitamente cansado da crítica hebdomadária.
Há bons empregos pela noite dentro
entre o cais das colunas e a cruz quebrada.
Sejam quem sejam os da academia
deviam dedicar-se à vaselina
em vez da ambiguidade que mantêm
no exercício frustrado da alquimia
ao politicamente correcto hipotecado.
Tivesse eu uma pistola em vez de um abre-latas.
3.
Entre o engarrafamento geral e a loira do cais
fico de rastos com tanta violência.
Valha-me o rio e aquela coisa alta
que deste lugar de luz ao longe se avista.
Embora saiba que nada me convence
e a insurreição prometida ainda não basta,
obrigado, destino, pela feliz desgraça
que veio a mim neste desatino.
Uma criança soletra no autocarro
um sorriso perverso para os que passam
e avança sobre mim com a metralhadora de plástico.
Ao menos tenho um cúmplice nesta selva urbana.
Do mesmo modo sorrindo já nada mais me resta
que premeditar o disparo que o abre-latas adestra.
PARA UMA HOMENAGEM A CRISTOVAM PAVIA
1.
Se eu tivesse uma pistola em vez de um abre-latas,
obviamente não me inquietaria esta manhã.
Há opções a que o livre arbítrio força
e alvos a que disparo mesmo às escuras.
De tanto protagonizar a solidão
respiro o ar rarefeito dos cafés.
Não fossem Plutão e a Atlântida
não sei onde esconderia o coração.
Raios partam a vida e quem lá ande,
já o outro disse e viu-se o fim que teve.
Eu sou daqueles que sabem por experiência
a que mundos virtuais nos leva a maledicência.
Um barco é que eu assaltava, se pudesse.
Se tivesse uma pistola em vez de um abre-latas.
2.
Na capital do império às nove da manhã
reflicto sobre alguma gente que aqui vive
e faz das letras portuguesas
a história da carochinha que se vê.
A esta hora o monstro ainda dorme
infinitamente cansado da crítica hebdomadária.
Há bons empregos pela noite dentro
entre o cais das colunas e a cruz quebrada.
Sejam quem sejam os da academia
deviam dedicar-se à vaselina
em vez da ambiguidade que mantêm
no exercício frustrado da alquimia
ao politicamente correcto hipotecado.
Tivesse eu uma pistola em vez de um abre-latas.
3.
Entre o engarrafamento geral e a loira do cais
fico de rastos com tanta violência.
Valha-me o rio e aquela coisa alta
que deste lugar de luz ao longe se avista.
Embora saiba que nada me convence
e a insurreição prometida ainda não basta,
obrigado, destino, pela feliz desgraça
que veio a mim neste desatino.
Uma criança soletra no autocarro
um sorriso perverso para os que passam
e avança sobre mim com a metralhadora de plástico.
Ao menos tenho um cúmplice nesta selva urbana.
Do mesmo modo sorrindo já nada mais me resta
que premeditar o disparo que o abre-latas adestra.

Amadeu Baptista revisita Lisboa
Depois de inúmeras apresentações pelo norte do país, o poeta Amadeu Baptista — nascido no Porto — regressa a Lisboa [cidade onde também viveu, em pleno Bairro Alto] para duas sessões de apresentação dos seus 3 últimos livros de poesia editados na Cosmorama: O Bosque Cintilante [Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, 2007], Sobre as Imagens [Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica, 2008] e Poemas de Caravaggio [Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, 2007].
As sessões terão lugar na Fábrica Braço de Prata [quarta-feira 24 de Setembro, pelas 20h.] e na Fnac do Chiado [quinta-feira 25 de Setembro, pelas 18h.30].

O Bosque Cintilante
Sobre as imagens
são os dois novos livros de Amadeu Baptista
editados pela Cosmorama.
Não percam!


AMADEU BAPTISTA
Se não tivesse ganho estes prémios,estaria na miséria
Vencedor recente da edição portuguesa do Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica, Amadeu Baptista (n. 1953) começou a publicar em 1982 (As Passagens Secretas) e tem 20 livros editados em Portugal, além de poemas traduzidos para alemão, castelhano, catalão, francês, hebraico, italiano, inglês e romeno.
Em entrevista feita por e-mail, falou a este blogue da génese de Sobre as Imagens (o livro premiado), da escrita compulsiva, do seu “sistema” poético, do desemprego que vai enganando com o dinheiro dos vários prémios ganhos nos últimos meses e do “enxovalho” a que a maior parte dos autores estão sujeitos em Portugal.
(A entrevista dada ao blogue Bibliotecário de Babel, cuja entrada se reproduz, pode ser lida também no Triplov. Estrada do Alicerce aproveita assim a ocasião para dar os parabéns a Amadeu Baptista por mais um - merecido... - prémio.)
Se não tivesse ganho estes prémios,estaria na miséria
Vencedor recente da edição portuguesa do Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica, Amadeu Baptista (n. 1953) começou a publicar em 1982 (As Passagens Secretas) e tem 20 livros editados em Portugal, além de poemas traduzidos para alemão, castelhano, catalão, francês, hebraico, italiano, inglês e romeno.
Em entrevista feita por e-mail, falou a este blogue da génese de Sobre as Imagens (o livro premiado), da escrita compulsiva, do seu “sistema” poético, do desemprego que vai enganando com o dinheiro dos vários prémios ganhos nos últimos meses e do “enxovalho” a que a maior parte dos autores estão sujeitos em Portugal.
(A entrevista dada ao blogue Bibliotecário de Babel, cuja entrada se reproduz, pode ser lida também no Triplov. Estrada do Alicerce aproveita assim a ocasião para dar os parabéns a Amadeu Baptista por mais um - merecido... - prémio.)
AMADEU BAPTISTA
VENCE "PRÉMIO DE POESIA NATÉRCIA FREIRE"
O poema seguinte, que agradecemos a Amadeu Baptista, faz parte do seu livro "Poemas de Caravaggio", galardoado há poucos dias com o Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire 2007, promovido pela Câmara Municipal de Benavente.
Nesse concurso, foram atribuídas Menções Honrosas às obras "Principia Matemathica", de Carlos Rodrigo da Silva Vaz, "As Limitações do Amor são Infinitas", de Rui Costa, e "A Educação do Mal", de Fábio Nunes Viana Mendes Pinto.
O Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, no valor de cinco mil euros, foi atribuído pelo segundo ano consecutivo, e é patrocinado pela Companhia das Lezírias.
Amadeu Baptista nasceu no Porto em 1953. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e tem colaborações dispersas em vários jornais e revistas nacionais e estrangeiros. Poemas seus foram traduzidos para Castelhano, Italiano, Inglês, Francês, Hebraico e Romeno. É divulgador em Portugal de poetas espanhóis e hispano-americanos. Está representado em diversas antologias e livros colectivos. Publicou “As Passagens Secretas” (1982), “Green Man & French Horn” (1985), “Maçã” (1986) (Prémio José Silvério de Andrade - Foz Côa Cultural, 1985), “Kefiah” (1988), “O Sossego da Luz” (1989), “Desenho de Luzes” (1997), “Arte do Regresso” (1999) (Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, México), “As Tentações” (1999), “A Sombra Iluminada” (2000), “A Noite Ismaelita” (2000), “ A Construção de Nínive” (2001), “Paixão” (2003) (Prémio Vítor Matos e Sá e Prémio Teixeira de Pascoaes 2004), “Sal Negro” (2003), “O Som do vermelho - Tríptico Poético sobre pintura de Rogério Ribeiro” (2003), “O Claro Interior” (2004) (Prémio de Poesia e Ficção de Almada), “Salmo” (2004), “Negrume” (2006), “Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007)” (2007) e “O Bosque Cintilante” (2007) (Prémio Nacional Sebastião da Gama 2007).

CARAVAGGIO: SETE OBRAS DE MISERICÓRDIA
(para Silvino Oliveira)
Uma atitude plástica indomável
e arrebatamento rítmico nas figuras,
eis o que me interessa transmitir:
sou panteísta,
e sei como nas cores há um luxo físico
que torna o que é palpável
imaterial
– de modo que o que faço
é da rua que vem,
para que se transfigure em dom de imanência
e a alma e o espírito se cumpram nos pigmentos
para que tudo seja obra compassiva,
como um enigma de arrebatamento.
A minha vida é a cor
– e o recorte que o relevo da luz
lhe introduz
serve para que o universo vibre
e uma tensão grandíloqua se estabeleça,
entre a detonação da tela
e o espectador,
num repto total,
esmagador.
Ouso o fascínio,
mas, mais do que o fascínio,
aspiro ao coração
dos que vêem a tela interiormente,
sendo que os olhos
acumulam sortilégio
para que o entendimento desmorone
a falsidade que nos cerca e mata.
Eis a encomenda:
um quadro de grandes dimensões
que patenteie
as sete obras de misericórdia corporais,
dando relevo aos justos, obviamente,
mas também aos pecadores,
já que cada um deles é cada um de nós,
se a nossa prudência souber dizê-lo
de modo a não ardermos na fogueira.
Deu-me trabalho, o esboço:
a caridade existe,
mas é tão raro vê-la
que um pintor não sabe onde encontrar
modelo adequado,
mesmo que vá de igreja em igreja
a cuidar que, de repente,
encontra exemplo para a missão.
Tentei de tudo. Tentei, até, de mais.
Mas os dias passavam, e as noites,
e não me satisfazia com o que via,
os palácios a abarrotar de nobres
sem magnanimidade, e os pobres
sempre mais pobres, a morrer à míngua.
O mundo, agora, é só hipocrisia.
E, por isso mesmo, a minha regra
é não ter regra nenhuma
– em busca da brandura
vou de sítio em sítio,
a procurar um sentido nos sentidos,
ou alguém que não difame,
ou que não roube.
Só posso pelo sonho exorcizar-me;
mas o facto é que na rua é que anda tudo
– abrindo bem os olhos, em lida
extenuante, mas de grande prazer,
basta só olhar em volta e ver:
e ver é uma arte que faz toda a diferença.
E assim foi que vi os anjos nesta esquina,
e uma profusão de personagens
a perfazer o périplo das obras
misericordiosas:
a visitar os presos,
a dar de comer a quem tem fome,
a enterrar os mortos,
a cuidar dos enfermos,
a vestir os nus,
a dar de beber a quem tem sede,
a dar pousada aos peregrinos.
Olhando o quadro, agora pronto,
exposto na igreja do Pio Monte della Misericordia,
em Nápoles,
entendo que é pelo arrojo
que vou bem
– e fico impressionado
pelo que faço dos temas,
e como os meus impulsos artísticos resultam
em explosões categóricas de beatitude
de que até eu me assombro.
Toda a beleza é transcendência,
afirmo, de mim para comigo.
No meu tempo poucos haverá
que isto entendam, embotados
que estão de dogmas e preceitos
em que se relega o mundo
e nada vive como a vida é.
Martinho tira a capa e dá-a a um pobre.
Uma jovem mulher oferece o seio
a um velho preso da sua miserável condição
matando-lhe a fome e aliviando-o
do desgaste do castigo.
Um diácono clemente
manda que os coveiros
abram a terra e sepultem os cadáveres.
Um jovem, em tronco nu, ampara os doentes.
Um Sansão, sequioso, dessedenta-se com água
que alguém pôs no maxilar de um asno.
E Santiago aloja os peregrinos
com a ajuda de um almocreve adolescente.
Eis o meu quadro, a que juntei,
sobre a multidão,
uns anjos
para que se saiba
que não são dos anjos as tarefas dos homens,
e que o que é possível pode até tocar-se
se estendermos a mão ao nosso semelhante
– mesmo que ninguém veja,
mesmo que fique no segredo dos anjos a nossa acção,
mesmo que a partilha seja, apenas, nossa
e que nada, nem ninguém, nos agradeça
o gesto,
o acto.
Chamo-me Michelangelo Merisi Caravaggio
e ignoro
se sou cristão, ou não.
No caso, interessa pouco quem eu sou.
Sei é que deixo nesta terra
uma pequena herança
de luz
e movimento
e cor
que me fará feliz
se os homens se lembrarem
que pior que o esquecimento é a ingratidão,
e que ser ingrato nesta terra é não estar ao lado
de quem na vida vai ao nosso lado
e é nosso irmão.
VENCE "PRÉMIO DE POESIA NATÉRCIA FREIRE"
O poema seguinte, que agradecemos a Amadeu Baptista, faz parte do seu livro "Poemas de Caravaggio", galardoado há poucos dias com o Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire 2007, promovido pela Câmara Municipal de Benavente.
Nesse concurso, foram atribuídas Menções Honrosas às obras "Principia Matemathica", de Carlos Rodrigo da Silva Vaz, "As Limitações do Amor são Infinitas", de Rui Costa, e "A Educação do Mal", de Fábio Nunes Viana Mendes Pinto.
O Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, no valor de cinco mil euros, foi atribuído pelo segundo ano consecutivo, e é patrocinado pela Companhia das Lezírias.
Amadeu Baptista nasceu no Porto em 1953. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e tem colaborações dispersas em vários jornais e revistas nacionais e estrangeiros. Poemas seus foram traduzidos para Castelhano, Italiano, Inglês, Francês, Hebraico e Romeno. É divulgador em Portugal de poetas espanhóis e hispano-americanos. Está representado em diversas antologias e livros colectivos. Publicou “As Passagens Secretas” (1982), “Green Man & French Horn” (1985), “Maçã” (1986) (Prémio José Silvério de Andrade - Foz Côa Cultural, 1985), “Kefiah” (1988), “O Sossego da Luz” (1989), “Desenho de Luzes” (1997), “Arte do Regresso” (1999) (Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, México), “As Tentações” (1999), “A Sombra Iluminada” (2000), “A Noite Ismaelita” (2000), “ A Construção de Nínive” (2001), “Paixão” (2003) (Prémio Vítor Matos e Sá e Prémio Teixeira de Pascoaes 2004), “Sal Negro” (2003), “O Som do vermelho - Tríptico Poético sobre pintura de Rogério Ribeiro” (2003), “O Claro Interior” (2004) (Prémio de Poesia e Ficção de Almada), “Salmo” (2004), “Negrume” (2006), “Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007)” (2007) e “O Bosque Cintilante” (2007) (Prémio Nacional Sebastião da Gama 2007).

CARAVAGGIO: SETE OBRAS DE MISERICÓRDIA
(para Silvino Oliveira)
Uma atitude plástica indomável
e arrebatamento rítmico nas figuras,
eis o que me interessa transmitir:
sou panteísta,
e sei como nas cores há um luxo físico
que torna o que é palpável
imaterial
– de modo que o que faço
é da rua que vem,
para que se transfigure em dom de imanência
e a alma e o espírito se cumpram nos pigmentos
para que tudo seja obra compassiva,
como um enigma de arrebatamento.
A minha vida é a cor
– e o recorte que o relevo da luz
lhe introduz
serve para que o universo vibre
e uma tensão grandíloqua se estabeleça,
entre a detonação da tela
e o espectador,
num repto total,
esmagador.
Ouso o fascínio,
mas, mais do que o fascínio,
aspiro ao coração
dos que vêem a tela interiormente,
sendo que os olhos
acumulam sortilégio
para que o entendimento desmorone
a falsidade que nos cerca e mata.
Eis a encomenda:
um quadro de grandes dimensões
que patenteie
as sete obras de misericórdia corporais,
dando relevo aos justos, obviamente,
mas também aos pecadores,
já que cada um deles é cada um de nós,
se a nossa prudência souber dizê-lo
de modo a não ardermos na fogueira.
Deu-me trabalho, o esboço:
a caridade existe,
mas é tão raro vê-la
que um pintor não sabe onde encontrar
modelo adequado,
mesmo que vá de igreja em igreja
a cuidar que, de repente,
encontra exemplo para a missão.
Tentei de tudo. Tentei, até, de mais.
Mas os dias passavam, e as noites,
e não me satisfazia com o que via,
os palácios a abarrotar de nobres
sem magnanimidade, e os pobres
sempre mais pobres, a morrer à míngua.
O mundo, agora, é só hipocrisia.
E, por isso mesmo, a minha regra
é não ter regra nenhuma
– em busca da brandura
vou de sítio em sítio,
a procurar um sentido nos sentidos,
ou alguém que não difame,
ou que não roube.
Só posso pelo sonho exorcizar-me;
mas o facto é que na rua é que anda tudo
– abrindo bem os olhos, em lida
extenuante, mas de grande prazer,
basta só olhar em volta e ver:
e ver é uma arte que faz toda a diferença.
E assim foi que vi os anjos nesta esquina,
e uma profusão de personagens
a perfazer o périplo das obras
misericordiosas:
a visitar os presos,
a dar de comer a quem tem fome,
a enterrar os mortos,
a cuidar dos enfermos,
a vestir os nus,
a dar de beber a quem tem sede,
a dar pousada aos peregrinos.
Olhando o quadro, agora pronto,
exposto na igreja do Pio Monte della Misericordia,
em Nápoles,
entendo que é pelo arrojo
que vou bem
– e fico impressionado
pelo que faço dos temas,
e como os meus impulsos artísticos resultam
em explosões categóricas de beatitude
de que até eu me assombro.
Toda a beleza é transcendência,
afirmo, de mim para comigo.
No meu tempo poucos haverá
que isto entendam, embotados
que estão de dogmas e preceitos
em que se relega o mundo
e nada vive como a vida é.
Martinho tira a capa e dá-a a um pobre.
Uma jovem mulher oferece o seio
a um velho preso da sua miserável condição
matando-lhe a fome e aliviando-o
do desgaste do castigo.
Um diácono clemente
manda que os coveiros
abram a terra e sepultem os cadáveres.
Um jovem, em tronco nu, ampara os doentes.
Um Sansão, sequioso, dessedenta-se com água
que alguém pôs no maxilar de um asno.
E Santiago aloja os peregrinos
com a ajuda de um almocreve adolescente.
Eis o meu quadro, a que juntei,
sobre a multidão,
uns anjos
para que se saiba
que não são dos anjos as tarefas dos homens,
e que o que é possível pode até tocar-se
se estendermos a mão ao nosso semelhante
– mesmo que ninguém veja,
mesmo que fique no segredo dos anjos a nossa acção,
mesmo que a partilha seja, apenas, nossa
e que nada, nem ninguém, nos agradeça
o gesto,
o acto.
Chamo-me Michelangelo Merisi Caravaggio
e ignoro
se sou cristão, ou não.
No caso, interessa pouco quem eu sou.
Sei é que deixo nesta terra
uma pequena herança
de luz
e movimento
e cor
que me fará feliz
se os homens se lembrarem
que pior que o esquecimento é a ingratidão,
e que ser ingrato nesta terra é não estar ao lado
de quem na vida vai ao nosso lado
e é nosso irmão.
Subscrever:
Mensagens (Atom)