Dois livros de Carlos Garcia de Castro
Carlos Garcia de Castro publicou recentemente um ensaio que merece toda a nossa atenção. Vindo a lume no nº. 15 d’ A Cidade, embora – como título indica, “José Régio e os rapazes do meu tempo” – se debruce sobre a recepção do autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos e da sua obra entre a juventude alto-alentejana dos anos ’40-’50 do século XX, constitui um amplo friso da mentalidade de uma região e de uma cidade que José Maria dos Reis Pereira, tendo nela vivido várias décadas, “topou [nos seus] atavismos”.
Quase uma década depois de Rato do Campo (1998), fazendo tríptico com esse artigo, editou o poeta d’ Os Lagóias e os Estrangeiros dois livros de poesia: no Brasil, pela Editorial Escrituras, de São Paulo, na sua colecção “Ponte Velha”, uma antologia denominada Fora de portas, com selecção e organização de Floriano Martins; em Portugal, nas Edições Sempre-em-Pé (ligadas à importante revista DiVersos), a colectânea Gloria Victis. Embora consciente dos mecanismos que produzem em Portugal, e noutras partes, a notoriedade pública dos autores de literatura, parece-me que estes dois livros são passos significativos na certificação da importância da obra de Garcia de Castro que – apesar de produzida e divulgada a partir de um espaço ultraperiférico (Portalegre, “cidade amada, mas também claramente divisada enquanto lugar onde, eivada de pequenos sevandijas e suaves infâmias, Virtude é ter esperteza […]”, num “cenário que muitos não querem nem podem ver e que outros, os mais espertos e perigosos, muito bem vêem mas buscam ocultar ao geral dos cidadãos que habitam naquela que é uma das mais belas das cidades alentejanas e portuguesas, mas onde certas coisas não estão nada salubres eticamente”, como afirma Nicolau Saião num atento e esclarecedor prefácio de Fora de portas) – se apresenta com estrutura e carnação que lhe garantem uma voz própria, inconfundível.
A antologia publicada no Brasil, numa prestigiada editora, é uma excelente introdução à sua poesia. A selecção de poemas feita pelo poeta Floriano Martins consegue relevar os pontos mais luminosos de uma obra que se vem solidificando desde um primeiro livro (Cio), editado ainda em 1955. A ausência de fontes bibliográficas – sendo estranha como opção editorial – consegue, descontextualizando os poemas, mostrar esse movimento de sedimentação e progressão, sugerindo ao leitor quanto há de coerente na produção de um autor com mais de cinquenta anos de Poesia. Entre os textos aí vindos a lume, apresenta-se com uma força assinalável o conjunto de poemas (inéditos?) sobre vários elementos materiais (“vegetais”, “peles e couros”, “metais”, “madeira” e “têxteis” – pp. 59 a 67), ajudando-nos a compreender toda a sua poética que, partindo do concreto da existência (mas sabendo que “nem concreto nem abstracto são propriamente poesia” (V. Nemésio)), o interpreta e transfigura.
Um dos paradigmas críticos que mais dominou (ou domina) o meio literário português, sobretudo o académico, é o do afastamento entre a produção literária de um autor e a sua biografia. Válida em vários aspectos, mas errada e cega noutros, esta postura perante os vários géneros da Arte verbal afasta das suas abordagens um conjunto apreciável de textos (poéticos e de outra índole) que, não sendo propriamente autobiográficos (na medida em que lhes falta um pacto nesse sentido entre o leitor e o autor), não dispensam na sua estrutura semântica algumas dimensões que só serão completamente entendidas quando confrontadas com o percurso existencial de quem as produziu. Em Gloria victis (“não-poemas”, numa leitura sui generis de Alberto Caeiro e/ou de Nicanor Parra, dessacralizando a poesia, e valorizando-a, ao colocá-la no mesmo patamar das outras actividades humanas) dificilmente conseguiremos esquecer o ser empírico existente por detrás do ser textual. Num impressionismo que nos mostra a realidade interior e exterior, própria ou envolvente, e o pensamento de um protagonista que não hesita desnudar-se na sua fragilidade biológica e etária, lemos uma espécie de diário reflexivo em verso branco, decassilábico, a trazer-nos à memória as narrativas greco-romanas, vertidas num estilo melodioso, mas nunca etéreo. Poesia do quotidiano? Também. Mas a anos, a séculos-luz do neo-naturalismo charro que por aí abunda entre alguma malta nova e outra menos nova que o gostaria de ser. Para isto confirmarmos, bastará lermos e relermos o mais comovente poema do livro: “Há mais de cinquenta anos – para o Chambel” (pp. 27-34).
Carlos Garcia de Castro publicou recentemente um ensaio que merece toda a nossa atenção. Vindo a lume no nº. 15 d’ A Cidade, embora – como título indica, “José Régio e os rapazes do meu tempo” – se debruce sobre a recepção do autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos e da sua obra entre a juventude alto-alentejana dos anos ’40-’50 do século XX, constitui um amplo friso da mentalidade de uma região e de uma cidade que José Maria dos Reis Pereira, tendo nela vivido várias décadas, “topou [nos seus] atavismos”.
Quase uma década depois de Rato do Campo (1998), fazendo tríptico com esse artigo, editou o poeta d’ Os Lagóias e os Estrangeiros dois livros de poesia: no Brasil, pela Editorial Escrituras, de São Paulo, na sua colecção “Ponte Velha”, uma antologia denominada Fora de portas, com selecção e organização de Floriano Martins; em Portugal, nas Edições Sempre-em-Pé (ligadas à importante revista DiVersos), a colectânea Gloria Victis. Embora consciente dos mecanismos que produzem em Portugal, e noutras partes, a notoriedade pública dos autores de literatura, parece-me que estes dois livros são passos significativos na certificação da importância da obra de Garcia de Castro que – apesar de produzida e divulgada a partir de um espaço ultraperiférico (Portalegre, “cidade amada, mas também claramente divisada enquanto lugar onde, eivada de pequenos sevandijas e suaves infâmias, Virtude é ter esperteza […]”, num “cenário que muitos não querem nem podem ver e que outros, os mais espertos e perigosos, muito bem vêem mas buscam ocultar ao geral dos cidadãos que habitam naquela que é uma das mais belas das cidades alentejanas e portuguesas, mas onde certas coisas não estão nada salubres eticamente”, como afirma Nicolau Saião num atento e esclarecedor prefácio de Fora de portas) – se apresenta com estrutura e carnação que lhe garantem uma voz própria, inconfundível.
A antologia publicada no Brasil, numa prestigiada editora, é uma excelente introdução à sua poesia. A selecção de poemas feita pelo poeta Floriano Martins consegue relevar os pontos mais luminosos de uma obra que se vem solidificando desde um primeiro livro (Cio), editado ainda em 1955. A ausência de fontes bibliográficas – sendo estranha como opção editorial – consegue, descontextualizando os poemas, mostrar esse movimento de sedimentação e progressão, sugerindo ao leitor quanto há de coerente na produção de um autor com mais de cinquenta anos de Poesia. Entre os textos aí vindos a lume, apresenta-se com uma força assinalável o conjunto de poemas (inéditos?) sobre vários elementos materiais (“vegetais”, “peles e couros”, “metais”, “madeira” e “têxteis” – pp. 59 a 67), ajudando-nos a compreender toda a sua poética que, partindo do concreto da existência (mas sabendo que “nem concreto nem abstracto são propriamente poesia” (V. Nemésio)), o interpreta e transfigura.
Um dos paradigmas críticos que mais dominou (ou domina) o meio literário português, sobretudo o académico, é o do afastamento entre a produção literária de um autor e a sua biografia. Válida em vários aspectos, mas errada e cega noutros, esta postura perante os vários géneros da Arte verbal afasta das suas abordagens um conjunto apreciável de textos (poéticos e de outra índole) que, não sendo propriamente autobiográficos (na medida em que lhes falta um pacto nesse sentido entre o leitor e o autor), não dispensam na sua estrutura semântica algumas dimensões que só serão completamente entendidas quando confrontadas com o percurso existencial de quem as produziu. Em Gloria victis (“não-poemas”, numa leitura sui generis de Alberto Caeiro e/ou de Nicanor Parra, dessacralizando a poesia, e valorizando-a, ao colocá-la no mesmo patamar das outras actividades humanas) dificilmente conseguiremos esquecer o ser empírico existente por detrás do ser textual. Num impressionismo que nos mostra a realidade interior e exterior, própria ou envolvente, e o pensamento de um protagonista que não hesita desnudar-se na sua fragilidade biológica e etária, lemos uma espécie de diário reflexivo em verso branco, decassilábico, a trazer-nos à memória as narrativas greco-romanas, vertidas num estilo melodioso, mas nunca etéreo. Poesia do quotidiano? Também. Mas a anos, a séculos-luz do neo-naturalismo charro que por aí abunda entre alguma malta nova e outra menos nova que o gostaria de ser. Para isto confirmarmos, bastará lermos e relermos o mais comovente poema do livro: “Há mais de cinquenta anos – para o Chambel” (pp. 27-34).
10 comentários:
Ultimamente têm tentado dentro de portas fazer com Garcia de Castro o que durante dezenas de anos têm feito com Régio e um ou outro mais, servindo-se da figura do portalegrense, darem lambidelas de botas a um homem que vai ficando mais idoso e por isso permeável a vénias e manifestações de falso apreço, para com isso caucionarem o domínio oportunista que exercem sobre o "cultural" com a desculpa de que até são atentos, pois consideram o Castro.
Vivi lá mais dum ano, sei o que ali se passa e portanto o que digo.
Em terras pequenas...lá diz o ditado.
Jorge Reis Mota
Na Lagoilândia a "cultura" é uma estratégia de poder como outra qualquer, daí o barbas ter feito aparecer a revista agora.
E as vénias ao Castro são a mesma coisa, além de que o homem está a envelhecer e convém a essa trupe apanhar a barca, não vá o homem morrer e eles ficarem destapados.
Gente boa, gente portalegrense.
Ai pai da vida!
PAULO M.
Portalegre não é aquela cidade onde um tipo que não tem formatura nenhuma se diz doutor e até aparecia num jornal dos padres em sessões com o Sr. Bispo que tiveram artes de mandar embora? Se tem artes de até o bispo enganar deve ser um portalegrense de lei.
O Ribeirinho é que o topa, até já o desmascarou na rádio mas o homem continua a dizer-se doutor.
Cidade de vígaros? Não, é feitio.
Pedra Basta
Fui aluno do Dr C.G.Castro. Um homem bom e um bom escritor.
É pena que às vezes se deixe misturar com gentinha que nem para lhe beijar as solas dos sapatos serve.
Bom texto o do Rui Ventura.
João Carlos Souza
O bom lavrador da terra gosta é de servos da gleba que lhe façam a cultura da "herdade".
Por isso está mais que bem, é portalegre no seu melhor e é preciso é miminhos nas festinhas da cidadela.
Isso já vem de longe, já tem barbas.
OKÊJASÊ
Alerto para a ligação ao www.nortealentejano.blogspot.com onde uma recensão sobre o novo número da Cidade realça o artigo de Carlos Garcia de Castro sobre o olhar portalegrense de Régio. Garcia de Castro é o primeiro a condenar as merdinhas e merdonas portalegrenses - embora tenha de se dar bem com alguns familiares por afinidade que, por isso, não deixam de ser sacripantas.
É pena é que tenha de escrever esses artigos numa revista que já está mais que desqualificada e só serve para dar brilho falso a quem se sabe.
Triste sina lagóia.
PAULO M.
Cada um publica onde pode não onde quer. O que interessa é a dignidade dos textos. Eu, que li o artigo do Garcia, não tenho dúvidas disso.
A dignidade do texto de Garcia não está em causa. O que me parece que o Paulo sublinhou foi a caracteristica de o ser naquele veículo, de repente ressuscitado o que o autor do blog muito bem sublinhou, e que é uma característica das coisas lagóias.
O direito de criticar, em Portalegre é perseguido, mas nós temos o direito de o fazer.
Ou em Portalegre a democracia é a do come e cala?
OKÊJASÊ
Em Elvas nunca senti o clima de intimidação e mesmo de certo medo que se sente em Portalegre e conheço bem as duas cidades tanto estudei numa como noutra.
Tenho a impressão, que ali há gente que se pensa acima da crítica mesmo que seja construtiva. É uma cidade esquisita, em mínimo.
Albicastrense
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