José do Carmo Francisco

Hugo Santos –
Do poema como oração e como voz da Terra

Rezar é sempre a tentativa (nem todas as vezes realizada) de unir dois mundos – o da terra e o do céu, o material e o espiritual, o dos homens e o de Deus. Ao colocar-se de joelhos o crente mais não faz do que recordar nesse gesto a sua origem e o seu fim anunciado. Sabe que veio do pó, é pó e em pó se há-de tornar mas rezando ele (o crente) procura elevar as suas palavras do rés da terra para o reino superior que ele nunca viu mas pressente, que ele nunca tacteou mas reconhece, que ele nunca visitou mas sabe nomear.
Religando o que o tempo separou ele (o crente) procura ascender a uma relação superior. Algo mais do que o emprego, o café, o supermercado, o stand de automóveis, a loja de pronto-a-vestir, o centro comercial.
Rezar é tentar criar outra realidade dentro da quotidiana realidade prática, mercantil, de desperdício. Para quem tem os pés bem assentes na terra (sua condição e seu limite) rezar é uma viagem entre dois mundos, a veloz ligação entre dois tempos, a procura de uma ponte a unir dois espaços.
O poema (tal como a oração) procura ligar, unir, juntar o que a erosão do tempo separou no coração dos homens. O poeta, obscuro sacerdote duma liturgia de silêncio, procura resgatar no poema (que a folha de papel testemunha) uma outra ponte feita de palavras entre a fronteira e o limiar do país sentimental que o ignora.
A infância, a voz da mãe, as colheitas perdidas, a azeitona nos lagares, a lavoura vagarosa dos dias da inocência que nenhum banco financia e sobre a qual nenhuma companhia ou corrector se atreve a emitir uma apólice de seguro, são todos eles, bocados de terra. A mesma terra onde o crente ajoelha para rezar. E mesmo o estádio na cidade, lugar de romaria e de culto, altar urbano de um ritual de ofertório e consagração, cântico e comunhão nas vitórias e nas derrotas, o estádio é também um bocado de terra.
Na grande solidão do Mundo, perdido entre o precário do amor e o inevitável da morte, resta ao crente o lugar da oração. Por isso reza. Perdido entre o peso da morte e a ostensiva falta de atenção, valor e importância que o Mundo dá à vida verdadeira (deixando-se resvalar para uma vida virtual, em diferido e por interposta realidade) resta ao poeta o lugar do poema. Por isso escreve. Afinal escrever é uma forma de rezar na desolada paisagem do seu quotidiano cada vez mais cinzento, vazio e hostil.
Por uma estranha sucessão de coincidências soube há muitos anos que a casa que (sei hoje) habita este livro tem um poço dentro dela. Fui um dia a Campo Maior à Festa das Flores e mostraram-me a casa do poeta. Aquele poço dentro da casa remeteu-me para a minha própria infância. Ao lado da casa do meu avô, casa onde nasci no já distante ano de 1951, havia uma taberna e um poço onde o seu dono mergulhava um cesto de vime cheio de gasosas, laranjadas e cervejas. Essa frescura vinda dessa água nunca mais se repetiria porque foi substituída pelo gelo dos frigoríficos e é outra coisa.
A luz das pequenas coisas é também a memória de uma casa e, por isso, começa com estas palavras: Primeiro falemos da casa, da rua, das vozes.
Mas a casa não é só paisagem: é também povoamento. A casa é povoada pelas pequenas coisas que são: Um livro, uma sépia traída pelo tempo, o vago sopro duma voz que se interpôs entre a mão e o afago que a reclamava.
Antes de Hugo Santos já Raul Brandão tinha proclamado que a ternura é húmida. Na página 10 deste livro se percebe como a água do poço da cozinha da casa, inunda de humidade e de ternura as palavras do poeta. Vejamos:
Creio que amei aqui / o que não poderia ter amado em qualquer outro lugar do mundo. / E, no entanto, é-me grato pensar que uma perene eternidade / avalizou cada uma das minhas emoções. / Ou, melhor sempre houve uma asa a percorrer o sagrado território / situado (sitiado) entre as palavras e os silêncios.
Situado e sitiado entre a palavra e o silêncio, resta ao poeta romper esse impasse pelo poema que é uma ponte a ligar dois Mundos:
Uso-me e gasto-me no coração mais profundo das palavras. / ou, talvez não bem um coração profundo mas uma indefesa concha / que, pelo refluir das marés, recobra o secreto desvelo das águas / e o devolve à fala ou à escrita que o requer.
Na poesia como na outra agricultura há muitas colheitas perdidas. Por isso mesmo o poeta obriga-se a ser também o repórter das chuvas de Setembro:
Olhai; aí está a luz, o vento, a água, o suave perfume / das flores do loendreiro e, perene, o quotidiano aviso da eternidade. / Depois, lento como um afago, o harpejo suave duma gota de orvalho / que em breve retomará o ofício proclamador das primeiras chuvas.
Se a casa é o lugar da água e da vida, o Terreiro é o lugar do encontro com os outros, os que tiveram caminhos e memórias comuns na infância já distante:
Tu lembras-te? perguntam. Talvez minta e lhes diga que sim, que me lembro / de tudo quanto está ali e parece comover-me / como se o tempo não fosse mais que o canhestro prestidigitador / que as ilusões e as nostalgias necessitam para se acercarem / das emoções que as antecederam.
O poeta mente porque é um fingidor mas na verdade não tem ilusões:
Tive uma bicicleta e um sonho, mas nunca a glória / de ter almejado a distância entre a flor e o livro / o voo da ave e o salvo-conduto das águas e do vento. / Não estive só; muitos outros me acompanharam. / Ouviu-se sempre o eco dos passos de quantos, a meu lado / subiram a rua e procuraram a teia e o casulo da casa.
A única certeza feliz é a ligação do poeta à sua terra natal:
A minha terra tem, inegavelmente, a forma do meu coração. / Notai como nela se escuta ainda o balbucio de antigas águas. / Atentai no silêncio. Reparai como nele se cruzam / todas as palavras, mesmo as mais distantes e impronunciáveis. / A eternidade começa aqui.
A lucidez do poeta avisa e proclama que muita coisa poderia ter sido feita
Eu poderia ter amado mais que o lento acordar das vozes submersas. / Poderia ter escrito todos os nomes no poço mais fundo da alma e beber todos os dias a água fresca desses nomes. / Poderia tê-los escrito à lareira e permitir que eles fossem a labareda ágil e eterna que habita o coração dos homens.
Poderia ter feito isso o muito mais mas o poeta escolheu o seu ofício
Contento-me com as palavras deslizando de manso sobre o papel. / Há entre mim e elas, creio que o disse já, um pacto de sangue onde cabe sempre um voo inesperado / dum pássaro insurrecto, planador de confins. / Talvez nem eu nem elas atentemos nas distâncias / que juntos percorremos nem esse seja o mester / para que as palavras foram escritas.
É nesse ofício que ele procura vencer o pó do esquecimento, o mesmo é dizer da morte
Inomináveis filhos do nada para o nada caminhamos. / Fica-nos às vezes a luz e a melodia dum poema. / Dizemo-lo então de nós a nós e é então que a casa, as árvores / e as palavras resplandecem. Quem pode pedir-nos mais?
Só o poema e a palavra do poema ficam quando tudo se perde no silêncio
Como um nómada indeciso, caminha o poema sobre o papel. / água vegetal, angular pedra da casa, trave-mestra da emoção, aqui me tens. / Carne e espírito do tempo, devolvo-te intacto ao secreto lugar onde os rios incendeiam as suas águas na volúpia da nascente.
Todos os poetas aspiram a ser a voz da terra mesmo que essa voz, para ser solene e altiva, surja na humidade e na ternura das pequenas coisas:
Ah, como dizer de outra forma da harmonia das pequenas coisas?
Notai como mesmo as que se ausentaram, persistem.
É escutá-las agora, por dentro das caixas-de-música dos silêncios
Numa mansidão que parece feita para a solícita comoção
dos que chegam e dos que partem.
Inesgotáveis veias da casa, multiplicam-se para lá dela.
Só depois, ao fechar da noite, se tornam violinos de vento.

(Lido na cerimónia de entrega do Prémio Cidade de Almada / Poesia a Hugo Santos)
José do Carmo Francisco

Nenhuma palavra nos salva
de Rute Mota


Rute Mota é uma jovem autora (1980) mas convoca no que escreve muita experiência adquirida nos jornais (como DN Jovem) ou nas revistas como Periférica e Pessoal. Há um evidente domínio da linguagem poética que reflecte sobre o seu próprio modo de criação:
«Tudo quanto escrevo / cabe em dois ou três versos / como por exemplo / terra-de-ninguém / debaixo dos passos
Tal como reflecte também a sua relação com o Mundo:
«Não é poesia isto que faço / tão só corda que entreteço / e agarro / – para não cair do mundo.»
Os poemas, tal como tudo na vida, não se medem aos palmos. Vejamos a sabedoria deste três versos: «São os mortos / que sustentam a terra / e a tornam habitável
Entre o inevitável da morte e a fragilidade do amor, o poema é um intervalo: «Um barco sem nome singra / na memória – a outra vida
As palavras são pronunciadas por uma voz mas vários são os sentidos dessa pronúncia: «Se a voz, pequeno segredo / se desfaz / na voz, outro segredos / se levantam.»
Um excelente livro de estreia, num volume de 90 páginas com uma poesia de síntese, alheia ao excesso e fascinada pelo rigor.

(Edição: Livro do Dia Editores, Capa: Rui Gil)
João Garção

Educação e ensino - PROTEGER, CAPACITANDO

(Texto da conferência efectuada na FNAC da R. de Sta. Catarina, no âmbito da semana do Instituto Politécnico do Porto)




Há alguns anos, uma Universidade apresentou um cartaz promocional no qual se salientava que os peixes maiores comem os mais pequenos e que os primeiros, mais agressivos, estão em situação de vantagem perante os segundos na luta pela sobrevivência. A analogia com a vida social é evidente: extremando-se as posições, há que comer e evitar ser comido e há que matar para não morrer. Capacidades que, pelos vistos, essa instituição ajudaria a adquirir...
Pessoalmente, tenho sérias dúvidas sobre a correcção ética desta forma de procurar captar potenciais alunos, uma vez que a Escola - qualquer escola - deverá formar pessoas sensatas e creio não haver sensatez em apelos dirigidos às mais primitivas e menos nobres pulsões do ser humano, como não a haverá na aceitação fácil do ‘darwinismo social’ como fundamento da organização das sociedades.
Seja como for - e já fora deste quadro de valores - não estranharia se me dissessem que essa campanha promocional tinha sido, afinal, um sucesso, chegando a um número muito significativo de candidatos. Na verdade, em sociedades em acelerada transformação, como são aquelas da nossa contemporaneidade, a rápida redefinição/reinvenção dos quadros sociais no qual o indivíduo se move suscita-lhe vários temores e angústias, os quais parecem ser mais facilmente apaziguados e mesmo ultrapassados se houver a aquisição de um estatuto social que sobreleve o dos seus concidadãos. Ora, para muitos portugueses, as instituições de ensino superior continuam a ser encaradas como apetecíveis mecanismos que, num mundo crescentemente complexo e competitivo, conferem essa tão almejada posição. Contudo, como sabemos, a realidade não é assim tão linear.
As apreciações que acabei de fazer não impedem, é claro, que constate o óbvio: a existência (hoje como sempre, afinal) de um clima de profunda competição entre os indivíduos e entre as nações - agora talvez mais exacerbado por via das enormes mudanças, nos mais diversos domínios, que resultam das constantes inovações dos dispositivos tecnológicos de que os seres humanos vão dispondo. Esta nossa ‘Aldeia Global’ de que nos falou Marshall McLuhan parece estar cada vez mais globalizada, mais pequena e mais povoada e é neste contexto, frequentemente percepcionado como turbulento, que os Estados e os indivíduos vão procurando responder aos desafios que se lhes vão colocando.
O nosso país não é, obviamente, uma excepção. No esforço de modernização que tem empreendido ao longo das últimas décadas, Portugal tem sido apresentado de forma algo ambivalente – ora visto como ‘bom aluno’, ora encarado como exemplo a evitar. Independentemente deste facto – que, ao fim e ao cabo, reflectirá a existência de diversas boas práticas a correr em paralelo a outras profundamente reprováveis – a Educação tem estado sempre no centro dos diversos discursos relacionados com as correctas metodologias de promoção do desenvolvimento do país - mesmo que nem sempre a prática confirme essas disposições.
A recente implementação de uma nova oferta formativa profissionalizante, os denominados Cursos de Especialização Tecnológica, insere-se nesse esforço de modernização. O Decreto-Lei n.º 88/2006, de 23 de Maio, que reorganiza o funcionamento dos CET, é claro em relação a este aspecto, indicando que essa reorganização tem como objectivo último ‘fomentar a competitividade do país’, sendo para tal indispensável qualificar o seu capital humano, sobretudo o mais jovem, almejando-se que estes ‘não entrem para o mercado de trabalho sem uma prévia qualificação profissional orientada para os perfis profissionais em défice’. Tratando-se de Cursos pós-secundários não superiores, visando a aquisição do Nível 4 de formação profissional, possibilitam, no entanto, o prosseguimento de estudos a nível do ensino superior, sobretudo mediante a prévia definição de cursos existentes em estabelecimentos de ensino superior aos quais o detentor de um Diploma de Especialização Tecnológica se pode candidatar, bem como das unidades curriculares dos respectivos planos de estudos de cuja frequência se encontram dispensados.
Não deixa de ser interessante constatarmos que no Preâmbulo do diploma legal a que atrás aludo expressamente se indica, por duas vezes nos três primeiros parágrafos, que um dos objectivos do Governo é o incremento da competitividade do país, mas com coesão social.
Permito-me sublinhar este aspecto porque ele me parece ser bem sintomático de um dilema com que os actuais governantes dos diferentes países estão a ser confrontados e a que o sociólogo Jacques Donzelot tem dedicado particular atenção: o facto de a competitividade e a coesão social já não andarem necessariamente de mãos dadas. Com efeito, a chamada ‘Crise do Estado Providência’, que, independentemente da componente ideológica adversa com que alguns se têm armado para contra ele arremeterem, me parece ser, sobretudo, o resultado de uma constatação óbvia – a de os recursos disponíveis serem finitos, ao passo que as solicitações são potencialmente ilimitadas - essa crise, dizia, tem obrigado os Estados a redefinirem algumas das suas formas de actuação. A própria OCDE tem entendido como indispensável que essa reforma se processe e que os Estados, mais do que efectuarem despesas sociais, façam investimentos sociais. A mudança não é superficial, apesar de, à primeira vista e com uma apreciação simplificada, poder parecer pouco profunda. Não nos deixemos enganar, pois essas alterações semânticas traduzem, afinal, uma maneira muito diferente de entender o papel do Estado no seu relacionamento com os cidadãos que o integram. Mais do que protegê-los, entende-se actualmente que o Estado os deve capacitar, dotando-os de meios que lhes permitam adquirir uma melhor formação, visando uma igualmente melhor integração no mercado de trabalho e, por essa via, na própria sociedade. Daí que o investimento no chamado capital humano seja considerado indispensável atendendo a duas vertentes, afinal complementares: a que se refere ao actual quadro de redefinição do papel do próprio Estado relativamente aos indivíduos; e a que tem a ver com o actual panorama de exacerbada competição à escala mundial.
Para que essa integração se processe de forma tendencialmente perdurável (e para além desse trabalho formativo visando ‘armar’ os indivíduos de maneira conveniente), entende-se que é indispensável, em paralelo, inseri-los no esforço colectivo de construção da sociedade, fazê-los sentir que devem integrar esse trabalho sinérgico ao invés de apenas se limitarem a esperar dela protecção na sua existência, por vezes isolada.
Por outras palavras, considera-se que, se o nosso país não terá possibilidades de se excluir desta competição global e que, em consequência, para melhor a enfrentarmos, aos portugueses devem ser facultadas possibilidades de obterem sólidas capacidades operativas, tal não deve ser efectuado sem se ter igualmente em consideração que a esse empreendimento deve corresponder também um acréscimo de coesão social, mediante a partilha de valores e a participação dos indivíduos num desígnio comum.
Ora, este incremento da competitividade do país com coesão social parece-me cada vez mais difícil de alcançar atendendo ao facto de não se estar a conseguir esbater o fosso entre ricos e pobres – pelo contrário, parece tender a aumentar. Com dois milhões de pobres – os tais 20% que teimosamente persistem, como refere Alfredo Bruto da Costa – Portugal tem um número avassalador de indivíduos que se encontram em diversos estádios de privação. Como esperar, pois, que estas pessoas, que se encontram impossibilitadas de satisfazerem algumas das mais elementares necessidades básicas e que estão muito diminuídas no domínio das relações sociais, consigam – e queiram – sentir-se como parte de um todo que parece negligenciá-las? O escritor espanhol Benito Peres Galdós, referindo-se, há várias décadas, ao agricultor castelhano, afirmou que este era ‘um santo condenado e um guerreiro sem glória’. Infelizmente, a meu ver, essa referência poderia ser feita, igualmente, em relação a muitos dos nossos concidadãos.
Estamos claramente perante um problema com significativos contornos políticos, na medida em que a participação cívica destas pessoas é extraordinariamente reduzida ou mesmo nula, com consequências óbvias (e graves!) para a saúde da nossa Democracia. E se a Política, tal como a definiu Daniel Innerarity, é ‘a capacidade de transformar o disjuntivo em aditivo’, importa dizer que, neste domínio do incremento da coesão social, os ditos poderes públicos têm, pois, falhado de forma muito expressiva. E, a meu ver, não nos deveremos deixar embalar pela utilização do pensamento politicamente correcto, frequentemente execrável em diversos domínios, e com argumentações de que ‘todos somos responsáveis por esta situação’ e que ‘todos temos que fazer algo para que ela se altere’, pois tal apenas servirá para que se esfumem responsabilidades já que, na verdade, nem todos os portugueses tem idêntico grau de poder na definição do rosto da nossa sociedade e, dessa forma, na concretização das mudanças que se afiguram necessárias para que esta progrida de maneira consolidada e harmoniosa.
Serão os CET, então, um mecanismo verdadeiramente válido para que o nosso país veja aumentada a sua capacidade competitiva e, paralelamente, se atenuem internamente as desarmonias sociais?
A meu ver, só por si, não, é claro. Mas parecem-me possuir algumas virtualidades significativas, que considero poderem ser tanto mais eficazes quanto melhor se integrem num sistema mais amplo de reestruturação da Formação e da Educação no nosso país.
Desde logo, porque se afirmam como modelos alternativos de aprendizagem que poderão, por um lado, contribuir para minorar as elevadíssimas taxas de abandono escolar e, por outro, por responder às necessidades específicas sentidas pelo tecido sócio-económico no tocante a quadros intermédios convenientemente qualificados – venho de um concelho onde esta questão é frequentemente focada pelos empregadores. Este último aspecto das especificidades locais afigura-se-me bastante importante. Entendo que há que não ceder a tendências centralistas que as negligenciem e que, a pretexto de serem abrangentes e globais, possam acabar por tenderem a uniformizar ideias, indivíduos e comportamentos, com nefastas consequências. Como dizia José Régio, ‘há mais mundos’ e a riqueza do ser humano reside precisamente na sua singularidade, que não tem que ser negada para se afirmarem outras identidades mais amplas. E essa singularidade dos indivíduos, bem como as especificidades locais onde ele actua e se desenvolve, deverá necessariamente ser considerada pelo sistema educativo. Daqui decorre, pois, que, em minha opinião, deverão multiplicar-se as tipologias da oferta formativa, assentes também em contextos de especificidade territorial, para que as oportunidades educativas também se multipliquem e para que, em última instância, o sistema educativo possa acolher, bem melhor do que agora o faz, cada vez mais franjas da população que acabaram por ficar à sua margem – embora formalmente até o possam ter frequentado.
Outro aspecto que me parece muito interessante nos CET é a possibilidade de formação em alternância, ou seja, o processo que permite que se alternem ‘sequências de formação ministradas por instituições de formação com sequências de formação prática realizadas em contexto de trabalho’, por poder constituir uma relevante experiência de vida activa. Este aspecto da formação no terreno é, a meu ver, muito importante.
Se atendermos ao Despacho com que a ESTGF regulamenta, em 20 de Setembro, os três CET que está autorizada a ministrar, verificaremos que estes também compreendem, na formação geral e científica, áreas de cidadania e sociedade e de línguas e comunicação, o que considero de particular relevância. Por um lado, porque essa formação não se demitirá de afixar a referência a estruturas ideativas e comportamentais que se poderão traduzir numa melhor compreensão do próprio processo de cidadania; por outro, porque a instituição atenderá ao desenvolvimento de competências que o mundo profissional cada vez mais exige, como são, por exemplo, as referentes a capacidades de comunicação e de relacionamento.
Finalmente, importa que estes cursos incorporem – como, afinal, todo o sistema de ensino deverá incorporar – uma cultura de exigência, quebrando aquilo que, há meses, Josep Varela i Serra definiu no El Pais como a dinâmica perniciosa da dupla comodidade – a que existe primeiro em casa e depois na Escola. E tal pode ser feito sem que isso se traduza, necessariamente, em os peixes se comerem uns aos outros…
Numa das suas Greguerias, Ramón Gomes de la Serna afirmou que ‘não há relógio nas horas felizes’. É um facto, mas, em situações como esta, impõe-se que não se exija demais da benevolência dos nossos ouvintes, pelo que prefiro seguir agora o conselho que Churchill dava para se conseguir um bom discurso – levar sempre o fim preparado, pelo menos, e introduzi-lo tão cedo quanto possível. Assim sendo, termino agradecendo o gentil convite que a ESTGF me endereçou, ao qual correspondi menos por obrigação de função do que por amizade e por imperativo de cidadania, agradecendo a atenção de todos os presentes e, eventualmente, a paciência.

ANTÓNIO SALVADO

Podemos depor a favor de um escritor por interesse, por gratidão, por amizade ou por justiça. Há quem louve um escritor porque está interessado no seu apoio (editorial, social, etc.). Há quem o elogie porque lhe deve favores ou sente ser sua obrigação de amigo escrever ditirambos. Há, ainda, quem deponha de forma positiva porque acha justo fazê-lo – sem esperar nada em troca, apenas porque o seu depoimento se impõe não como dever pessoal, mas como dever cívico de testemunho.
É uma questão de justiça escrever este depoimento sobre António Salvado, ainda que sejam palavras curtas e despretensiosas. Conheço-o há mais de dez anos (sem nunca nos termos encontrado fisicamente) – tempo breve, é certo, mas para mim suficiente no aquilatar da sua qualidade como poeta, como tradutor, como ensaísta, como divulgador de Cultura e – sobretudo – como ser humano. Poderia registar aqui a minha leitura da sua poesia, alicerçada – em parte – na investigação/transfiguração do classicismo, levada a cabo por uma geração com raízes no 2º Modernismo e fertilizada por alguns dos princípios defendidos por revistas tão ecuménicas quanto Árvore e Távola Redonda. Outros o farão melhor do que eu. Poderia ainda referir-me com demora ao papel de António Salvado como organizador de antologias, como director de revistas culturais (lembro os despretensiosos, mas importantes, cadernos Sirgo) e como importante tradutor e divulgador em Portugal de vários autores de língua castelhana (Claudio Rodríguez ou Ricardo Paseyro, por exemplo). Prefiro contudo recordar a postura cívica do autor de Jardim do Paço, vertical e intransigente na defesa da Justiça e da rectidão.
Há um episódio que, para mim, exemplifica bem a craveira da sua figura cívica e literária. Quando há alguns anos um semanário nacional publicou uma reportagem sobre a face humana de José Régio, foram reproduzidas algumas declarações que punham em causa a boa memória desse homem exemplar que foi o autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos. Pois, nessa altura, António Salvado foi dos primeiros a alertar para a necessidade de um desagravo público à figura do escritor e, assim, assinou comigo e com mais onze escritores um texto que, depois, foi divulgado por vários órgãos de imprensa. Mas não ficou por aqui. Quando, em Portalegre, Nicolau Saião, João Garção e o autor destas linhas foram alvo de ataques pessoais – porque ousaram contestar quem pusera em causa Reis Pereira, como professor –, desde a primeira hora o poeta albicastrense se pôs ao seu lado, apoiando-os e dispondo-se até a testemunhar em tribunal, caso fosse necessário. Durante os longos anos do processo que conduziu à condenação de quem escrevera os textos que nos difamaram, sempre António Salvado (com vários escritores e personalidades, nomeadamente José do Carmo Francisco, Carlos Garcia de Castro, Henrique Madeira e Matilde Rosa Araújo) se interessou pelo caso e pela mágoa dos ofendidos – ao contrário de outros cujo apoio era uma obrigação ética, mas cobarde ou interesseiramente borregaram. Salvado, não. Nunca regateou uma palavra amiga, nunca escondeu a sua indignação, nunca tentou branquear atitudes e – sobretudo – nunca desmentiu a sua postura cívica de Homem vertical.
Para alguns, esta atitude valerá pouco. Será até considerada marginal quando se olha para um escritor que nos vem inundando (no melhor sentido da palavra) com a sua poesia. Para mim representa muito, pois sou daqueles que – apesar de acreditarem que a Poesia não se escreve com bons sentimentos – continuam a pensar que a Ética e a Literatura devem ser duas faces da mesma moeda.

HÁBITOS DE LEITURA

Os hábitos de leitura aumentaram em Portugal... dizem os jornais de hoje - e eu acredito, ou faço por acreditar.
Fosse outro o tempo e alegrar-me-ia com a notícia. Hoje, com tantas rebelos-pinto, sousas-tavares, rodrigues-dos-santos, lopos-de-carvalho, dan-browns e quejandos, a nova deixa-me relativamente indiferente.
O problema da leitura não é, nunca foi, nem será um problema de quantidade e de assiduidade, mas de qualidade. Dá vontade de afirmar que mais vale uma iliteracia sábia do que uma literacia estúpida e manipulada. Prefiro um cidadão que lê apenas um livro por ano, mas de qualidade, do que um indivíduo leitor de imensos livros, mas todos ou quase todos de fancaria.


Era para ter saído, tanto quanto sei, numa editora que resolveu (ou tem resolvido) debitar para as estantes outras coisas de quilate menos reconhecível. Ficou pelo caminho. Se calhar, ainda bem... Vestígios, de Gérard Calandre, certamente destoaria. É preciso salvaguardar a coerência. Podereis agora ler os poemas no Triplov. Uma oportunidade a não perder!

cadáver

[Lisboa, igreja de S. Julião]



a vizinhança não poderia consentir tal afronta.
(apesar do incêndio, a vida ressuscitara
entre velas, mármores e frontais.)
era preciso consumir de novo
a brancura do corpo
deixando apenas os ossos
e uma pele brilhante
mas ressequida.

a incandescência das vozes
foi devorada pela incandescência
dos motores. no trono
Mamon reina agora
sobre a falsidade da fachada.

noutro lado – taberna, quarto
de cama, teatro ou sala de jantar.
mudaria o diálogo
mas não mudaria o povoamento.

aqui, Mamon escarra nas paredes.
poderia ser de outro modo?
Mamon “suja o olhar
e sem mistério
”.




Nota: A citação final faz parte de um verso de José do Carmo Francisco, transcrito de memória.
A ARTE DE DESERTIFICAR

Há cerca de quatro, cinco anos participei em Castelo de Vide numa tertúlia que tinha como eixo uma obra de José Luís Peixoto, então recentemente publicada. Inevitavelmente, o conteúdo do romance levou a conversa para a nossa visão do estado do Alentejo. A dado passo, um cidadão lisboeta com ar de hippie fora de prazo afirmou: “Eu cá gosto muito do Alentejo porque é deserto... tem pouca gente... Assim é que é bom!” Com visível incómodo, olhámos todos uns para os outros. O silêncio imperou. Até que um dos presentes respondeu ao dito indivíduo: “O senhor diz isso porque é um gajo bem amanhado, tem dinheiro suficiente para ir à capital a bons médicos, para encontrar por aquelas bandas o que aqui falta. Mas, e quem cá mora?” O forasteiro não retorquiu – nem poderia retorquir. E a conversa continuou, ignorando-o, sobre as causas do suicídio no Alentejo. Chegámos à conclusão de que o alentejano, quando perde a dignidade, mata-se, sacrifica-se. (E quanta dignidade lhe têm retirado, uns que “gostam muito do Alentejo” mas só sabem espezinhar quem por lá habita, outros que, sendo alentejanos, gostam de fomentar um viver social pequenino e dependente, o melhor meio para exercerem o seu caciquismo político, económico, social e/ou cultural.)
Tenho recordado muito a conversa do tal hippie fora de prazo a propósito de algumas medidas que os últimos governos têm vindo a publicar em Diário da República. Quem as vê de um apartamento alfacinha ou tripeiro pode até contemplá-las como benéficas. (Encerrar escolas até é bom, segundo afirmam, pois colocará todos os alunos num só edifício com todas as condições para o sucesso educativo. Obrigar homens e mulheres a deslocarem-se, em plena noite, a um centro de saúde fora da sua área de residência pode até ser positivo, pois terão cuidados de saúde que na sua terra não teriam. Obrigar as elvenses, por exemplo, a terem os seus filhos na maternidade de Badajoz até é porreiro, pois assim ficarão de uma vez por todas com a cidadania espanhola, que já vão adoptando quando preferem fazer compras na cidade do Guadiana. Extinguir freguesias e concelhos rurais até está bem visto – pois para que quer aquela gente junto de si uma junta ou uma câmara municipal, se a podem ter a trinta-quarenta quilómetros de distância...) Quem conhece bem o interior português sabe que estas medidas legislativas, levadas a efeito pelo governo de José Sócrates, mas idealizadas por políticos seus antecessores, são uma machadada fatal na dignidade de quem lá vive e, logo, um veneno mortal que aniquilará a vida de muitas aldeias e vilas portuguesas.
Claro que nada disto interessa a quem vê nas aldeias portuguesas fontes de rendimento. Têm até pena quando uma aldeia começa a ser muito habitada, pois nesse momento as casitas que até aí custavam trinta contecos passarão a valer 50 000 euros ou mais. Que lhes interessa a eles se as terreolas têm junta de freguesia, médico, posto de correios, farmácia ou escola, se os centros de saúde possuem atendimento permanente, se há uma maternidade próxima... As nossas aldeias são para eles pavilhões de caça ou campos de férias, lugares de passagem que eles transformam em não-lugares, sem vida, sem nada para além de um cenário ostentado para turista ver.
Os reis dos primeiros tempos da nossa história pelo menos legislavam no sentido de favorecerem a fixação das populações. Os nossos governantes fazem o contrário. Primeiro adubaram os caciques locais (que, diligentemente, pela sua passividade, pela sua mediocridade e pelo seu fechamento, fizeram diminuir a população residente no interior), esquecendo os habitantes das nossas vilas e aldeias, não pondo em prática quaisquer estratégias que contrariassem o êxodo. Agora, retiram a boa parte dos portugueses condições mínimas de dignidade – para que o esvaziamento se complete. Não tenhamos dúvidas: para muitos citadinos que vêem no mundo rural uma terra de cafres, o interior português será tanto mais atraente quanto mais se transformar num verdadeiro deserto.

incêndio
[Lisboa, igreja de S. Domingos]



nenhum brilho poderia restaurar o esplendor do canto.
só uma flama nocturna seria capaz de devolver ao tempo
toda a fuligem que fora depositando sobre as paredes
(da alma?). mesmo depois, o cheiro (dos ossos, da carne,
da pele, dos cabelos) permanecera sobre a cidade.
a cinza ficara, talvez, na argamassa das casas.
não havia forno que queimasse
o sangue caído sobre as colunas, as manchas
de sal no pavimento, os gritos misturados com a terra
e com a tijoleira das abóbadas.


*


o incêndio purificou a pedra e a memória.

sem tecto, a casa soube então receber
a água do baptismo, libertando o mármore e a madeira
do hábito perpétuo e da falsa cruz
que destruíra as veias por onde circulavam
o ouro e o coração.

era preciso um incêndio
para apagar o fogo no terreiro.


*


corroídas, as colunas sustentam
a fragilidade da matéria. enegrecidas
recordam a oscilação das células
e a loucura.

resta-nos a pureza da imagem –
livre da tinta e do cinzel. sustenta
com o braço os pilares do edifício.

nada nos pertence. repugna-nos
a soturnidade da estrutura.
mas tudo em redor reflecte
a nossa face – reconstruída
incêndio após incêndio
cicatrizadas as feridas da memória.

SOBRE AGOSTINHO DA SILVA


Decorrido há cerca de um ano, o colóquio "Agostinho da Silva e o Espírito Universal" organizado pela Biblioteca Municipal de Sesimbra teve agora as suas actas publicadas, com textos de, entre outros, Paulo Borges, Manuel Ferreira Patrício, António Cândido Franco e Pedro Sinde. Em linha estão entretanto disponíveis as comunicações aí apresentadas pelo coordenador deste blogue, "A cal para caiar o universo (cartas e quadras de Agostinho da Silva)", e por Nicolau Saião.

CRÓNICA(S) DO SÉCULO XX PORTUGUÊS


A antologia Crónica Jornalística – Século XX, organizada por Fernando Venâncio e editada há poucos anos pelo Círculo de Leitores é um livro imprescindível. Já antes devorara o volume dado a lume por Ernesto Rodrigues, com textos do século XIX. Mas este livro toca-nos de perto, sobretudo os textos nascidos depois de 1974 – que nos mostram o Portugal de esplendores e misérias em que todos vamos existindo.
Forte, cortante e luminoso, António José Saraiva (democrata até à raiz) desnuda uma revolução inepta e cobarde – e o país que dela nasceu. José Martins Garcia revela, com ironia, o fechamento e a violência da “democracia” existente em terras pequeninas. Luiz Pacheco relata-nos uma “jantarada” oferecida por Mário Soares a alguns escritores – expondo, com o desassombro e o humor cortante a que nos habituou, os ridículos de muito deles. Nuno de Bragança fala-nos de um “povo” que, embora “sereno”, não é politicamente “parvo”. Miguel Esteves Cardoso descreve Portugal como uma “república dos ananases”, onde a “burocracia convida os cidadãos a aldrabá-la, porque a alternativa à aldrabice é tão penosa, tão cara, tão morosa e tão chata”. Cáustico e irónico, Manuel António Pina desvenda os eufemismos utilizados pelos políticos, quando pretendem enganar os eleitores e/ou camuflar a acção de quem se serve do Estado para alimentar interesses particulares. Miguel Sousa Tavares desmonta o vazio chamado “revista feminina” que tem invadido o mercado de publicações. Viale Moutinho conta-nos como foi vítima da prosápia e da arrogância de um representante da classe dos poetastros. Fernando Dacosta dá-nos um murro no estômago, ao narrar o suicídio de um homem que “partiu para não ceder” à “ditadura de mercado”, que lança no desemprego pessoas válidas e competentes. Francisco José Viegas, num texto actualíssimo, escreve sobre o Bloco de Esquerda e o seu “folclore moderno”, que coloca “o acessório antes do essencial, a política do espírito antes da política real”, em questões como, por exemplo, a despenalização do aborto.
Mas este livro, crónica do século XX que todos os portugueses deviam ler, não se limita a compilar textos sobre a realidade portuguesa nascida depois da Revolução do Cravos. Nele podemos encontrar pérolas valiosas escritas por muitos dos vultos mais importantes e/ou mais conhecidos da Cultura do século XX: Pessoa, Almada, Proença, Aquilino, Régio, Irene Lisboa, Sebastião da Gama, Nemésio, Gomes Ferreira, Sena, Mourão-Ferreira, Araújo Correia, Mário Dionísio, Saramago, Rodrigues Miguéis, O’ Neill, Urbano, Luísa Dacosta, Maria Ondina Braga, Vergílio Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Guerra Carneiro, Agustina, Assis Pacheco, Cardoso Pires, António Osório, Mário de Carvalho, etc.. Como refere Fernando Venâncio, as cem crónicas que aí podemos apreciar e saborear são “impagáveis”, demonstrando “quanta agilidade mental, quanta inventiva, na feitura e na expressão, quanta finura e malícia, quanto domínio da persuasão e do divertimento, vão investidos num género tido, desde sempre, por marginal às artes sérias”.
Folheando as páginas desta antologia vêm ainda nosso encontro trechos lapidares, que nos fazem ver mais claramente o Portugal de 2007. Com duas delas termino: “O Estado português dá a impressão de uma tenda de louça onde entrou uma manada de toiros bravos.” (Aquilino Ribeiro, 1926); “As nossas dificuldades presentes (...) merecemo-las, moralmente. (...) Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente.” (António José Saraiva, 1979).
PERGUNTAS A ESMO

Há perguntas que nos inquietam no dia a dia. Resolvi deixar aqui expressas algumas que me tocam particularmente, partilhadas decerto por alguns leitores.


Por que razão quase todos os incompetentes com filiação partidária, quando fazem asneira, não são castigados, mas premiados?
Que motivos guiam a maioria que sustenta o Governo a não querer aprovar legislação eficaz contra a corrupção?
O que leva certos municípios a homenagearem caciques e a deixarem na sombra aqueles que verdadeiramente contribuíram para o desenvolvimento da comunidade em que viveram?
Que vaidade conduz tantos autarcas quando desejam deixar a sua marca nas terras que vão gerindo, mesmo que essa marca seja um mamarracho sem sentido, mesmo que a obra seja inútil e dispendiosa?
Por que razão continuam a existir psicólogos, sociólogos e pedagogos que olham de lado para quem exige dos alunos esforço, trabalho e responsabilidade, preferindo antes nivelar por baixo, transformando a seriedade em palhaçada?
Que razões levam o Ministério da Educação a sobrecarregar os professores com burocracias e mais burocracias, nomeadamente na sua avaliação, diminuindo o tempo que estes deveriam dedicar ao crescimento e à aprendizagem dos seus alunos?
Para que existe uma autonomia do Ensino Superior com os contornos actuais, se ela é muitas vezes sinónima de abuso, de irregularidade, de ilegalidade e de impunidade?
Por que continuamos nós a ver licenciados e mestres no desemprego, quanto vemos tantos iletrados e/ou semi-analfabetos (alguns camuflados) a ocupar lugares que nunca deveriam pertencer-lhes?
Quanto tempo mais continuarão alguns a culpabilizar só aqueles que trabalham pela baixa produtividade da nossa economia, quando está provada a inépcia e ignorância de muitos e muitos empresários?
Por que continuam as autoridades policiais e judiciais a fechar os olhos perante alguns cidadãos que passam em velocidade de cruzeiro da mais negra penúria para a mais descarada riqueza, mesmo quando a medo se vai revelando a mola que produziu tão grande salto?
Por que continuam alguns juízes e magistrados do Ministério Público a vergar a sua coluna vertebral perante certos representantes (locais ou nacionais) do poder económico, político ou mediático?
Que interesses levam a gestão do país a querer mirrar aqueles que não podem escapar ao pagamento de impostos, quando não mexe uma palha para obrigar os que mais têm a entregar ao Estado aquilo que lhe é devido?
Para onde vão os donativos obrigatórios que muitas instituições de “solidariedade social” recebem, como resultado da discreta chantagem de que são vítimas tantas pessoas que não podem ter em casa os idosos da sua família? E em que bolsos estarão guardados os fundos indevidamente recebidos do Estado, à conta de falsas declarações e de utentes inventados?
Quanto tempo mais continuaremos a fazer estas e outras perguntas que nos inquietam e angustiam o viver quotidiano?

VIAGEM A PORTUGAL


Não se lê com desgosto a Viagem a Portugal, de José Saramago. Nem espanta, nem mete medo... Baseia-se, contudo, numa dupla banalidade: de um lado, a dos folhetos turísticos (erros incluídos); do outro, um falso lirismo, nem carne nem peixe. Nos seus melhores períodos, este livro do escritor ribatejano aproxima-se das crónicas de Manuel Teixeira Gomes ou de Brito Camacho. Mesmo sem a sobranceria (com pés de barro) que domina muitas das suas outras obras, esta não deixa contudo saudades.
escuridão
[Carreiras]



a mão desapareceu sob a madeira?
a luz escondeu os dedos – ligando
o norte e o sul, o sul e o sudeste?
a dor, debaixo de algumas palavras, dividiu
e recompôs o reflexo do vidro sobre os olhos.
a pedra renasce depois do negrume.
o ouro envolve três quartos desse rosto:
a legenda.

dissolvi esta parte do meu corpo
para melhor dirigir o olhar
aos alicerces da montanha. poderia subir
deixar entre os rochedos a chama
que iluminaria as asas e o farol.
dissolvi, porém, o clamor, a cinza
e o testemunho. pedaços de metal ficaram
como linhas na água e no trevo, junto da parede.


que ficou dos alicerces
na tiara que ostentas sobre as veias?
que estilete registou sobre o ouro, entre a seda e o damasco,
a palavra – o rosto em que o gelo descreve o canto
negro, ecoando entre os castanheiros e os filamentos
de nojo na sarça e no navio onde tentámos rever-nos?


a luz atravessa a muralha entre excrementos
e pastas de sangue. a flama dirige a sua língua
até muito perto de nós. o cabelo arde. o som
parece idêntico, mas guarda no interior a união
entre o rosto e a seara. mudamos de edifício,
o lintel segura-nos no tremor. as telhas estalam
durante a noite. a mão escreve sobre a cal
a voz do imperador. transporta para dentro
peso da madeira – tantos séculos sepultada a nascente.


olho a imagem. as interrogações surgem nesta agenda.
não consigo encontrar uma única hora
em que não estejam presentes o sangue e o fogo.
a mão desaparece. desaparece apesar do segredo.
a veste alcança o universo. a paixão
revolve a legenda que procuramos colocar
junto do mapa para conseguirmos encontrar o destino.
o friso estoura. quebra cada um dos selos
desta vinha e deste campo. um outro mar
a cidade que vemos. a dança e a morte
nos degraus do altar.

nenhuma celebração nos redime. a tinta esconde
apenas um pigmento mais antigo. que nome possuo?
grande, talvez, a linguagem dos pássaros e das pedras,
do tronco desta árvore, da lombada deste livro
em que escrevo sem cessar. tudo dissolvo com o tempo:
a minha mão abençoando o vazio, a tua mão
acariciando essa criança
crescida demais para a idade, a mão do pastor
a semear insectos nas águas e no futuro, a mão
do mártir atada à distância, os estigmas do fogo
nessa mão que segura a morte e a vida.
tudo dissolvo.
só assim sei reunir as cartas que escrevi:
respigo primeiro, procuro depois a essência –
uma sombra, o milagre do reencontro,
a resistência e o desejo, a assinatura e o alimento.
a autópsia revela algumas palavras no estômago.
algumas palavras. o coração aberto sobre a cama.
a língua recolhendo na carne e na pintura
o escopro e o cinzel para fabricar
o sopro e a memória.

RESISTIR ÀS TENTAÇÕES


A "oferta" governamental era tentadora - e eu deixei-me tentar, confesso. Um computador portátil com serviço de banda larga daria jeito a este cidadão docente pouco abonado. Trinta contos de entrada com trinta e seis mensalidades de dezassete euros e meio era aliciante...
O assunto começou a dar-me comichão no nariz quanto me apercebi de que a "computadeira" não é propriamente um exemplo de tecnologia de ponta. Não se vende por aí e, não sendo uma raridade, a coisa tem marosca. Existem computadores com muito melhor memória e as empresas já nem se dão ao trabalho de os porem à venda. Ninguém lhes pegaria... dizem-me.
Quando recebi o contrato da empresa de telecomunicações, mandei tudo às urtigas. Apesar das benévolas palavras desse primo do Conde d' Abranhos que nos governa, nunca assinarei um contrato sem hipótese de denúncia que, nas letras pequeninas, quase ilegíveis, me obrigue a pagamentos durante três anos a uma empresa que se reserva o direito de alterar o preço pré-estabelecido, elevando-o a cumes desconhecidos, quiçá altíssimos.
Será esta maneira de proceder (outros chamar-lhe-iam "tramóia") legal? Não sei. A mim, contudo, não me enganaram. Por pouco...

CUNHAS

Dispensam até a hipocrisia... Como António Mega Ferreira (ler Visão, de 02.08.2007), há muitos cidadãos que consideram aceitável as editoras não lerem os originais recebidos, recusando quiçá obras-primas, enquanto publicam livros de "influentes" ou de outros promovidos pelas alavancas da "influência", por mais indigentes que sejam. Mais vale porem à porta um letreiro dizendo: "Acesso reservado. São necessárias cunhas!"