ENCONTRO

Não existe ser humano que não recorde um encontro feliz, porque inesperado. Numa das minhas deambulações bibliófilas pelos alfarrabistas da capital, tive há uns tempos um desses momentos. Esperaria encontrar de tudo ou toda a gente naquele espaço discreto, como que enxertado numa das mais belas ruas de Lisboa. Menos ele.
Enquanto, entre as mãos, limpava o pó acumulado sobre a capa do volume cinzento, com moldura azul e vermelha, era já grande a minha satisfação. Tinha a manhã ganha, pois há muito procurava aquela célula quase esquecida de um amigo que guardo no peito. Comecei então a folhear as 72 páginas desse discreto livro de poemas intitulado Cio, publicado por Carlos Garcia de Castro em 1955.
A surpresa do encontro (encontrar o livro de um autor, há muito procurado, é encontrá-lo a ele, embora sem o calor do abraço muscular...) não ficaria por aqui. Ao levantar a capa, li com emoção uma dedicatória:
Ao / Manuel d’ Assunção, com o / abraço da melhor amizade e admi- / ração, oferece o / Carlos Garcia de Castro / Lx. Março. 1956
Era-me conhecida a amizade que ligou o poeta portalegrense ao grande pintor surrealista e abstraccionista D’ Assumpção. Saíram da pena do autor d’ Os Lagóias e os Estrangeiros algumas das melhores páginas que até hoje se escreveram sobre o artista, considerações e reflexões que foram aos alicerces da sua obra e da sua personalidade artística. Bastará lermos os textos publicados em catálogos, em revistas ou no Fanal d’ O Distrito de Portalegre (nº 1, 19/05/2000). A “amizade” e a “admiração” por D’ Assumpção, manifestadas na dedicatória, eram sinceras, portanto. Quem conhece Carlos Garcia de Castro (homem de qualidade, frontal e vertical em todas as horas), outra coisa não esperaria.
A chegada à minha repartida biblioteca deste exemplar do Cio foi, portanto, fonte de emoção. Juntei num único objecto a presença de um poeta que admiro como escritor e como ser humano à de um pintor cuja obra faz parte das minhas referências artísticas. Há dias e encontros felizes...
Carlos Garcia de Castro considera hoje que este seu primeiro livro é sobretudo “um documento poético que não tem nada de particular, (...) resultante de uma envolvência de gostos, para aquela época em que [foi] educado, ilustrando o tempo dos dois primeiros anos da faculdade” (assim o declarou em entrevista ao suplemento Fanal, de 22/2/2002). Sendo, na verdade, um produto poético digno (em que, no entanto, vemos apenas florescer a intensidade verbal que caracteriza a obra do poeta), revela no seu todo uma poesia que ainda se lê com interesse, situada, já naquele tempo, a anos-luz dos pilritos dados a lume por certos versejadores. Revelador é, por exemplo, o poema “Deslumbramento” (reflexão surrealizante sobre “O Último Bailado”, de D´Assumpção, obra então exposta no Café Plátano portalegrense, hoje no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian):
Uma colcha fria, / de mil pedrarias indiferentes, / o livro impávido da noite, / onde crepita o nada das aragens / e o roçagar das ramagens / a estremecerem cetim. // [...] // Nós temos a Certeza e a Visão - / duma absoluta-relativa dó: / um astro-rei no céu, / e as barbas dum gigante numa árvore-anã! // E casas, montes, rios e valados, / e sonhos, alegrias, sofrimentos - / a dor! as brumas e o sol, / místicos abraços criminosos... // [...] // Ternos, duvidosos, dualistas, / os deuses que nós somos: / fica revibrante a vida que retemos, / e damos ao que é bruto / o mito que abrangemos sem o ter. [...]
Nisto tudo, há uma memória artística e humana que acalenta. Um acto de amizade (um livro oferecido por um amigo, onde um poema reflecte sobre a obra do amigo a quem é dedicado) torna-se presença material. Como escreve Garcia de Castro, “Do que mais custa sermos só memória / são os afectos dela então esquecidos / que só a morte leva para os deixar, / sem nunca mais quem morre os ter consigo”. Que a memória permaneça, digna, desta ou doutra forma.

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