SEIS APONTAMENTOS
SOBRE CHAVE DE IGNIÇÃO

Não é ainda a versão final do texto de João Candeias, mas já é possível ler aqui uma versão prévia do ensaio lido pelo autor de Voltei à casa pequena no lançamento de Chave de ignição, em Sesimbra. Agradeço desde já a vossa leitura.
FRUTOS DA ÁRVORE MEDITERRÂNICA


Permitam-me que inicie esta viagem recorrendo à minha memória e saindo um pouco da faixa de território que constitui a Raia. Escrever sobre a gastronomia desse espaço não é para mim possível sem que ao meu pensamento venham lembranças gustativas cujo valor é indissociável dalguns contactos humanos, paisagísticos e arquitectónicos havidos em toda a Extremadura de Espanha. Embora o eixo desta crónica e das suas antecessoras seja sempre a identidade raiana, penso que ela nunca será devidamente compreendida sem se relacionar com a paisagem e o povoamento de outros milhares de quilómetros quadrados que a rodeiam e sem termos sempre em mente que tudo se passa no âmbito de uma cultura e de uma civilização sedimentar com raízes mediterrânicas.
Como esquecer, falando deste tema, uma morcela assada comida à sombra do mosteiro de Guadalupe, as excelentes migas saboreadas sob as arcadas de Plasencia, o arroz de lebre que (em Zorita ou Logrosán) me deu forças para continuar uma viagem, o doce de amora que adoçou um encontro de poetas ocorrido em Yuste, as alcachofras a tortilha e o gaspacho degustados nas proximidades da catedral de Badajoz, o licor de bolota que nunca deixa a minha garrafeira, a reconfortante torrada à moda extremenha – com alho esfregado, tomate e finas tiras de presunto – comida na casa de um poeta muito amigo? Não seria possível. Tal como não é possível olvidar alguns produtos que trago para minha casa sempre que posso deslocar-me às agrestes mais fortes paisagens da Extremadura. São sabores que ficam, inesquecíveis, sabedorias que nos foi dado conhecer pelo paladar e que, mais do que quaisquer outras facetas do verdadeiro corpo desta parcela da Península Ibérica, se tornam logo irrepetíveis, imateriais.
Não sou de coleccionar nomes de restaurantes. Posso assegurar-vos de que a nenhuma das experiências gustativas antes enumeradas consigo juntar o nome comercial do estabelecimento onde tiveram lugar. Esse hábito, hoje muito em voga, cheira-me sempre (na melhor das hipóteses) à colagem infantil de cromos numa caderneta ou (na pior) ao exibicionismo turístico daquela gente que tanto gosta de mostrar t-shirts compradas (ou não) em Cuba, no Brasil ou nas Canárias. Há no entanto espaços que não podem ser esquecidos, ao aliarem sabor e saber. Lembro o “Palacio de Arteaga”, em Olivença, onde tradição toma ares renovados. Recordo com particular veemência o quanto se come e bebe bem naquele espaço histórico das terras de Alcántara, “El Convento”, instalado no cenóbio de San Pedro de Majarretes, onde viveu essoutro Pedro, santo monge franciscano que um dia aportou ao mosteiro da Serra da Arrábida, vizinho da minha casa.
Mais do que tudo, tenho sempre presentes – ao lembrar-me da gastronomia raiana, extremenha ou alentejana – os ingredientes a que as mãos e o cérebro de muitos homens e mulheres souberam dar sabedoria e arquitectura no gosto: sobretudo o azeite, o vinho e o pão, mas também as peças de caça, o bezerro, o cabrito e o borrego, o porco (bravo ou manso), as aves de capoeira, algum peixe do rio, o leite e o mel, as frutas de horta ou silvestres, os legumes nascidos de uma terra exigente e sequiosa… Com estes elementos se confecciona tudo ou quase tudo na raia que nos une.
Se falássemos de música, poderíamos dizer que temos alguns temas básicos e muitíssimas variações. O arroz de coelho, as migas e o gaspacho, por exemplo, na minha aldeia de Carreiras são feitos de outro modo… mas já o “cachafrito” tem uma grande semelhança com algum borrego frito comido em terras da Extremadura. Valerá a pena repetir? Estamos tão próximos que nem a gastronomia nos separa. Mediterrânicos de um e de outro lado, embora hoje ponhamos no prato uma enorme variedade de receitas, aprendemos todos a mesma lição milenar, somos todos frutos da mesma árvore genealógica.

(Publicado em castelhano na revista Imagen de Extremadura)