REVERTE


Ando a ler mais um volume de Arturo Pérez-Reverte, Con ánimo de ofender, que reúne artigos editados no El Semanal nos anos que estabeleceram a transição entre o século XX e o século XXI.
Ler os textos de opinião e de observação deste autor espanhol traz-me à memória uma força verbal que, em Portugal, só pode ser encontrada nas páginas de crónica assinadas por Fialho de Almeida ou por Camilo Castelo-Branco.
Nos últimos cem anos, tirando Luiz Pacheco e pouco mais (e mesmo assim...), nada surgiu de comparável. Nos nossos dias, então, não há testículos como os do criador de Alatriste - ou, se os há, estão devidamente ocultados, arredados da grande imprensa que lhes poderia dar justo eco alargado.
Na nossa "imprensa de referência", tanto quanto me parece, o que mais há são teclados com problemas de erecção e de coluna vertebral, ilusionistas de feira sem a menor dignidade, a soldo dos mais diversos interesses, mesmo quando parecem mostrar o contrário. Uns e outros, quando parecem escarrar nas fuças de quem merece, apenas dão beijinhos velados, não fique abalado o edifício do status quo, a que pertencem.
Ler algumas crónicas de Arturo Pérez-Reverte injecta-nos coragem. Obriga-nos a continuar a luta pela sobrevivência digna neste mundo de trampa. Não esqueçamos: aqui, onde vivemos, haverá sempre homúnculos à espera do momento exacto para proceder à nossa castração, seres que, discretamente, com diabólica rapidez e eficácia, procuram sodomizar a nossa verticalidade.

Já havia iniciado a publicação no Arquivo do Norte Alentejano de um inventário fotográfico da pintura mural existente na região. Agora é a vez de uma iniciativa semelhante destinada a divulgar o rico património retabular dessa parte do distrito de Portalegre. Aguardo a vossa visita.
OU NÓS, OU O DILÚVIO

No domingo passado, enquanto me ia chegando a casa para almoçar, ouvi um provecto militante do pê-ésse afirmar que é absolutamente necessária uma maioria absoluta do seu partido nas próximas legislativas para que se evite a ingovernabilidade do país.
Há algumas semanas (ou meses?) atrás outro sénior senhor da mesma agremiação partidária teceu palavras com um teor parecido. Terão combinado?
Para que não restassem dúvidas da heterodoxia destes "senadores da república" (como sói dizer-se), acrescentaram críticas mansinhas ao gerente-mor deste país, para que não parecessem cópias encarquilhadas dum tal Augusto que de santo nada tem, mas cuja silvar propaganda a favor da canonização do filósofo da Covilhã pica como uma coroa de espinhos.
Curioso... Com os mesmos agrumentos ou argumentos muito parecidos conseguiu, pelos anos 30 do século passado, António de Oliveira aprovar a constituição corporativa num plebiscito. Com a mesma versão politicorra e descabelada do "ou nós ou o dilúvio" lavou Hugo Chávez a moleira de 55% dos venezuelanos, convencendo-os do que o melhor para o bolivariano país da América do Sul será tê-lo no poder até que Deus nosso senhor o faça dar o peido-mestre...
Lembrei-me, nessa altura, do meu estimado Popper: não vale a pena pensarmos muito em quem nos irá governar, mas nos métodos mais eficazes para nos livrarmos de quem nos gere os destinos com arrogância e incompetência.




Estes são aspectos das pinturas murais descobertas recentemente no tecto de uma capela da igreja matriz de Arronches. Outras imagens e um estudo sobre elas, da autoria de Patrícia Monteiro e de Maria João Cruz, podem ser vistos e lidos no Arquivo do Norte Alentejano.
Nicolau Saião oferece texto de Mário Crespo

ÀS VEZES CHEGAM CARTAS

Umas trazidas pelos velhos CTT (velhos são os trapos...), outras pela Rede, a Net, a netezinha que, se nos irrita com tanta publicidade relativamente tola ou definitivamente palonça, também nos empolga com notícias de longe ou de perto. De perto do coração, digamos, ou da mente forjadora de conceitos e reflexões assaz fecundas.
Esta chegou-me de um amigo que há muito tempo não vejo mas que, volta e meia, me remete coisas de ponderar. Por vezes da sua própria lavra, outras vezes deste, daquele, daqueloutro publicista...
Ontem, já tarde na noite, mandou-me o texto que segue – e aqui partilho convosco a sua leitura:


Está bem...
façamos de conta


Façamos de conta que nada aconteceu no Freeport. Que não houve invulgaridades no processo de licenciamento e que despachos ministeriais a três dias do fim de um governo são coisa normal. Que não houve tios e primos a falar para sobrinhas e sobrinhos e a referir montantes de milhões (contos, libras, euros?). Façamos de conta que a Universidade que licenciou José Sócrates não está fechada no meio de um caso de polícia com arguidos e tudo.

Façamos de conta que José Sócrates sabe mesmo falar Inglês. Façamos de conta que é de aceitar a tese do professor Freitas do Amaral de que, pelo que sabe, no Freeport está tudo bem e é em termos quid juris irrepreensível. Façamos de conta que aceitamos o mestrado em Gestão com que na mesma entrevista Freitas do Amaral distinguiu o primeiro-ministro e façamos de conta que não é absurdo colocá-lo numa das "melhores posições no Mundo" para enfrentar a crise devido aos prodígios académicos que Freitas do Amaral lhe reconheceu. Façamos de conta que, como o afirma o professor Correia de Campos, tudo isto não passa de uma invenção dos média. Façamos de conta que o "Magalhães" é a sério e que nunca houve alunos/figurantes contratados para encenar acções de propaganda do Governo sobre a educação. Façamos de conta que a OCDE se pronunciou sobre a educação em Portugal considerando-a do melhor que há no Mundo. Façamos de conta que Jorge Coelho nunca disse que "quem se mete com o PS leva". Façamos de conta que Augusto Santos Silva nunca disse que do que gostava mesmo era de "malhar na Direita" (acho que Klaus Barbie disse o mesmo da Esquerda). Façamos de conta que o director do Sol não declarou que teve pressões e ameaças de represálias económicas se publicasse reportagens sobre o Freeport. Façamos de conta que o ministro da Presidência Pedro Silva Pereira não me telefonou a tentar saber por "onde é que eu ia começar" a entrevista que lhe fiz sobre o Freeport e não me voltou a telefonar pouco antes da entrevista a dizer que queria ser tratado por ministro e sem confianças de natureza pessoal. Façamos de conta que Edmundo Pedro não está preocupado com a "falta de liberdade". E Manuel Alegre também. Façamos de conta que não é infinitamente ridículo e perverso comparar o Caso Freeport ao Caso Dreyfus. Façamos de conta que não aconteceu nada com o professor Charrua e que não houve indagações da Polícia antes de manifestações legais de professores. Façamos de conta que é normal a sequência de entrevistas do Ministério Público e são normais e de boa prática democrática as declarações do procurador-geral da República. Façamos de conta que não há SIS. Façamos de conta que o presidente da República não chamou o PGR sobre o Freeport e quando disse que isto era assunto de Estado não queria dizer nada disso. Façamos de conta que esta democracia está a funcionar e votemos. Votemos, já que temos a valsa começada, e o nada há-de acabar-se como todas as coisas. Votemos Chaves, Mugabe, Castro, Eduardo dos Santos, Kabila ou o que quer que seja.

Votemos por unanimidade porque de facto não interessa. A continuar assim, é só a fazer de conta que votamos.

Mário Crespo

O ESTUDO DA TOPONÍMIA

(notas metodológicas)


ENCRUZILHADA

Com o crescente descrédito dos três pilares do regime - o poder legislativo, o poder executivo e o poder judicial -, Portugal aproxima-se de uma encruzilhada.
Chegado esse momento (e o tempo está próximo), os portugueses - como comunidade - deverão escolher um de três caminhos:
1. Pressionar (seja de que forma for) as classes dirigentes no sentido da reforma radical do nosso regime e da nossa forma de governação, para que se instaure uma verdadeira Democracia;
2. Permitir que os corruptos e traficantes gestores da causa pública instaurem por aqui um Estado definitivamente "pós-democrático", autoritário e desrespeitador dos direitos e dos deveres dos cidadãos, tenha ele a face que tiver;
3. Entregar as chaves do país a quem nos queira governar, ou seja, consentir no suicídio da nossa independência política.
Continuar como estamos levar-nos-á a qualquer coisa parecida com a indiferença, primeiro passo na escada da anarquia.
REDENÇÃO

Só um bom poema pode apagar da memória os vestígios de um poema mau ou lamentável.
Depois de ter lido, numa antologia oferecida com um jornal, um punhado de versos de José Saramago que dificilmente seriam reivindicados pelos mais assolapado e coxo poeta do parnaso oitocentista, eis que a repulsa se apagou ao receber - vindo de Espanha - o novo livro de poemas de Luis Arturo Guichard, Nadie Puede Tocar la Realidad, editado pela colecção Litteratos, na muito digna Littera Libros.





É realmente oposto: um volume que nos oferece uma poesia forte, situada - como é necessário - nos limites entre o tangível e o intangível. Sinto-me privilegiado ao ser um dos (poucos) leitores portugueses deste belo livro... Embora tencione traduzir alguns dos seus textos, não quero deixar-vos sem algo deste livro. Aqui fica um dos poemas, no original:


SERÉ MATERIA

... la bibliothèque était le point de réunion d'une secte pythagorienne...
JACQUES ROUBAUD, La bibliothèque de Warburg

La biblioteca tiene cuatro plantas:
Palabra, Imagen, Acción y Fundamento.
Ordenados los libros del banquero
como un ejército dispuesto en círculo
su general es el olivo plantado en el patio.
Los libros saben que los persas nunca ganan.
Los libros saben cómo se construye la balsa de Ulises.
Los libros saben cuál es el camino hacia arriba y hacia abajo.
Por eso los libros tienen un escudo.
Por eso los libros se apiadan de sus dueños muertos.
De pronto recuerdo a Simónides:
"Soy un muerto, y un muerto es mierda, y la mierda es tierra
y si soy tierra, entonces no soy un muerto: soy una divindad."
Todos los dueños están muertos.
Son vanidad sus nombres en las portadas.
Ayer leí que dijo un poeta a sus amigos:
"Seré ese vaso de agua que estoy bebiendo.
Seré materia."
No me conmueve la materia, aunque sé
que a través de ella puede haber una salida,
ni el agua, lo que más brilla sobre la tierra,
sino este "seré", escrito por Quevedo
hace quinientos años
y que no tiene peso ni medida.

Todos tenemos un gallo para Asclepio
ya curados de la vida
Y el librero a mi lado es todo Metamorfosis

Antes de entrar en esta biblioteca
Yo no sabía que soy pagano.

(Carregue na imagem
para aumentar.)

Uma conversa entre poetas


por Pedro Maciel



Gerard Manley Hopkins (1844-1889) foi um inventor que revolucionou a linguagem poética, um dos precursores das rebeldias estéticas dos modernistas. O poeta-jesuíta não conheceu a fama em vida e nem esperou por reconhecimento, já que vivia em plena era vitoriana. Poems of G. M. Hopkins só foi publicado em 1918, vinte e nove anos após o falecimento do autor. O amigo e leitor-crítico Robert Bridges considerou estranha a linguagem de Hopkins e, por não compreender as inovações estilísticas do seu interlocutor, decidiu ignorar vários poemas.
Hopkins escreveu para Bridges alertando-o: “Se o poema lhe parece obscuro, não se atormente muito com o sentido, mas preste atenção às estrofes melhores e mais inteligíveis, como as duas últimas de cada uma das partes e as que narram o naufrágio...” O poeta se referia ao célebre poema “O Naufrágio do Deustschland” (poema místico de 35 estrofes), que narra um fato real, o desastre marítimo do navio “Deutschland”, ocorrido em dezembro de 1875, fazendo muitas vítimas, entre as quais cinco freiras da Ordem de São Francisco, exiladas na Alemanha. O poeta também insistia com seus leitores-críticos que o verso era “menos para ser lido que para ser ouvido”, e prossegue, “ler alto, pausadamente, numa recitação poética (não retórica), com largas pausas, ênfase nas rimas e sílabas marcadas...
Apenas em 1930, uma edição revista organizada por Charles Williams despertou interesse de críticos. Hopkins se importava apenas com seus escritos filosóficos. Determinou que estes fossem publicados na íntegra, temendo que as suas idéias filosóficas fossem distorcidas. Em relação à sua poesia, escreveu que “poderia fazer algum bem, mas se permanecesse desconhecida, nem por isso faria mal”.
Hopkins antecipa Joyce. Reinventa o idioma inglês, dando preferência ao vocabulário anglo-saxão em detrimento ao de origem latina; recupera a poesia celta, anterior ao início do Renascimento e da influência francesa decorrente da invasão normanda de 1066. Recria termos arcaicos e usa palavras germânicas. Inventa neologismos e redescobre a aliteração, a paronomásia e a assonância. A métrica e o ritmo são absurdamente modernos em Hopkins. “Sprugn rhythm” é o termo cunhado pelo poeta para designar seu novo ritmo. É um ritmo de pés variáveis e mesmo número de acentos. Na poesia inglesa contam-se pés e não sílabas. O pé varia de uma a quatro sílabas, cada um deles com apenas uma sílaba acentuada.
Segundo W. H. Gardner, o “sprung rhthm” de Hopkins revela “uma nova e eficaz fusão de ritmo e textura fônica”. As rimas internas e externas, as vogais, os ecos, as repetições fônicas criam uma orquestração de sons. Em carta de 1878 a Bridges, o poeta diz que “não há dúvida de que minha poesia vagueia sobre o plano da excentricidade... Mas tal como a ária, a melodia, é o que me atrai mais que tudo em música, e o desenho em pintura, assim o desenho, a estrutura ou o que estou acostumado a chamar inscape é o que acima de tudo busco em poesia...
A Beleza Difícil (Ed. Perspectiva), com introdução e tradução de Augusto de Campos, é um texto musical, composto como uma sinfonia. O que impressiona em Hopkins é a força do ritmo, os sons verbais e as imagens sonoras que criam uma linguagem sintaticamente criativa.
O universo poético de Hopkins desperta a empatia do leitor não só por se tratar de uma revolução estética, mas também por revelar um espírito sensível, aberto às angústias e tormentos dos homens. A poesia de Hopkins é uma fusão incomum de “espiritualidade e sensualidade”. O padre-poeta tinha preocupações sociais, como em sua poesia, e numa carta a Robert Bridges declarou que estava sempre pensando no futuro comunista: “de certo modo eu sou um comunista”.
Segundo o poeta e tradutor Augusto de Campos, os sons e ruídos do seu conflito interno fizeram com que Hopkins desafinasse “o coro do decoro vitoriano para ingressar na modernidade”. Augusto em sua tradução exemplar recupera a alma de Hopkins. Executa uma “tradução-arte”. Para a felicidade dos leitores, A Beleza Difícil apresenta uma afinada conversa entre poetas.

___________________________________________





To R. B.

The fine delight that fathers thought; the strong
Spur, live and lancing like the blowpipe flame,
Breathes once and, quenchèd faster than it came,
Leaves yet the mind a mother of immortal song.

Nine months she then, nay years, nine years she long
Within her wears, bears, cares and combs the same:
The widow of an insight she lives, with aim
Now known and hand at work now never wrong.

Sweet fire the sire of muse, my soul needs this;
I want the one rapture of an inspiration.
O then if in my lagging lines you miss

The roll, the rise, the carol, the creation,
My winter world, that scarcely breathers that bliss
Now, yields you, with some sighs, our explanation.

( G. M . Hopkins, 1889)


A R. B.

A alegre luz que gera a idéia, a força pura,
Viva e voraz, como uma chama de estopim,
Brilha uma vez mas dura pouco, e ainda assim
À mente muda em mãe de um canto que perdura.

Nove meses, ou mais, nove anos ela o apura
E dentro o gesta, gasta, gosta e alenta, enfim:
Viúva de uma visão perdida, vive; com seu fim
Sabido, a mão perfaz, nunca mais insegura.

Fogo maior, senhor da musa _ uma só graça
Pede meu ser: o arroubo de uma inspiração.
Mas, se por minhas lentas linhas já não passa

A vaga, o vôo, a voz, o canto, a criação,
Meu mundo-inverno, onde esse júbilo não grassa,
É, com alguns suspiros, nossa explicação.



Publicado no caderno “Idéias/Livros”, Jornal do Brasil.



Pedro Maciel é autor do romance A Hora dos Náufragos, Ed. Bertrand Brasil
PERSISTÊNCIA NA METAMORFOSE

Só em Maio de 1773 se publicou em Portugal uma lei que extinguiu a segregação entre “cristãos velhos” e “cristãos novos”. Mas foi preciso esperar até 1822 para se ver atirada para o arquivo dos horrores da História essa instituição de manipulação política e social do religioso chamada Santo Ofício. O sinistro tribunal (já existente em Espanha desde 1478) fora autorizado por Roma em 1547, mas a perseguição pelo poder real dos judeus iniciara-se décadas antes, com especial vigor a partir do seu baptismo forçado, decretado por lei de D. Manuel I datada de 1497, no seguimento das imposições decorrentes do seu casamento com uma filha dos Reis Católicos.
Com a expulsão dos judeus de Castela, ordenada em 1492, todo o território português se transformara em campo de incontáveis multidões de refugiados, as quais – num primeiro momento – fixaram residência provisória nos terrenos limítrofes de muitas vilas e cidades da raia. Nem todos permaneceram, mas muitos foram aqueles que acabaram por se agarrar às terras de Trás-os-Montes, da Beira e do Alentejo – engrossando a população hebraica que já aí habitava, cuja presença comprovada por achados arqueológicos se pode remontar aos últimos séculos do Império Romano (embora existam indícios linguísticos e documentais que nos poderão levar a épocas anteriores).
As judiarias da raia portuguesa, tal como chegaram ao nosso tempo, são fruto de um palimpsesto arquitectónico e cultural. Com origem medieval – talvez nos tempos em que se iniciara a segregação de judeus e muçulmanos – apresentam uma identidade sedimentar. Se até ao século XIV judeus e cristãos viviam no mesmo espaço – embora os seguidores da Lei de Moisés tivessem as suas comunas, com espaços sociais e de culto próprios – a partir desse momento vêem-se obrigados a envergar vestuário distintivo e a viver em ruas separadas, fechadas por portas. As leis nem sempre eram cumpridas ou feitas cumprir, mas existiam. Pequenos comerciantes e/ou artífices, foram os fundadores de uma estrutura habitacional ligeiramente distinta, reconhecível pela existência de edifícios com duas portas: uma estreita (a de morada) e outra larga (a da oficina). Na ombreira do lado direito era colocada a “mezuzah”, pequeno rolo com uma oração ritual (de que hoje sobram rasgos na pedra). Existiriam ainda, em todas as comunidades com mais de dez membros, constituídas enquanto comunas, a sinagoga e a escola.
Foi tudo arrasado com a conversão forçada em finais do século XV? Nem por isso. As sinagogas transformaram-se em habitações (como a pequena casa de oração de Castelo de Vide) ou em igrejas cristãs (a de Portalegre passou a “igreja de São Lourencinho”). As “ruas da Judiaria”, sendo as mesmas, mudaram de nome (primeiro exemplo dessa lamentável mania de apagar a memória toponímica), passando a ser “ruas novas”. Continuaram a demolir-se casas e a construir-se casas novas. O rasgo vertical nas ombreiras transformou-se numa cruz. Nos lintéis passaram a surgir, com abundância estranha, símbolos cristãos – não fizessem o diabo inquisitorial e a inveja das suas (e muitas vezes fizeram…). Esta metamorfose levou, até, à edificação na entrada de Castelo de Vide de uma capela a Vicente Ferrer, o pregador espanhol do século XV que marca presença também numa fonte pouco distante da “Rua Nova” portalegrense.
São raras as vilas e cidades da raia portuguesa que não preservam a memória arquitectónica e/ou toponímica da sua antiga judiaria. Entre todas, é Castelo de Vide aquela que melhor transpira essa presença ancestral. O bairro que desce da fortaleza até à inigualável Fonte da Vila impressiona pela quantidade de portais góticos e renascentistas, pelas ruas íngremes, com recantos secretos, pelo olhar das suas gentes que – ainda há pouco tempo – continuavam a rezar, com os habitantes de uma aldeia próxima (Carreiras), orações judaicas ligeiramente cristianizadas, persistindo em costumes que não negam a sua origem.
A Civilização muda, mas a Cultura tende a persistir. Provam-no muitas judiarias. Prova-o a Cultura de muitos homens e mulheres da raia portuguesa.


Publicado em tradução na revista La imagen de Extremadura, nº 12, disponível aqui.