matéria


sangue ou tinta? nada substitui o corte
na paisagem. pedra ou tinta? não interessam
as formas nem as figuras dispostas no paramento
que rompe a linha das casas. os vitrais escondem

a passagem de um navio por entre os dedos.
não existem imagens que os olhos reconheçam.
na memória avultam movimentos mínimos –
lábios recebendo no negro esplendor

a torre inteira, arquitectura de sangue.
pedra ou sangue? esqueço o horizonte.
contemplo os vitrais. gritos explodem
como sinos num dia de nevoeiro.

ou tocarão os sinos como gritos nesta torre
que permanece sobre o livro?

* * *

sangue, tinta, pedra. a inexistência
sobre o espaço, substituindo a existência sobre a terra.
a pedra como símbolo do sangue – o sangue
como tinta, elevando na superfície
da carne outra torre feita de vulcões e de memória.

nada resiste contudo ao efémero das raízes.
a erosão e a humidade desfazem e apodrecem
o corpo, a torre, a paisagem.

os átomos subsistem. mas no fim dos tempos
ninguém poderá distinguir no deserto
a torre do corpo, o corpo da tinta e do papel
que um dia registaram a transfiguração

da pedra, do sangue – nas palavras.



(Paris: torre de Saint-Jacques.)

José do Carmo Francisco



D. Duarte
de Luís Miguel Duarte


Não por acaso este volume tem o subtítulo de «Requiem por um rei triste». Na verdade D. Duarte, o décimo-primeiro rei de Portugal, filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre foi um rei muito especial. Nascido em Viseu no ano de 1391 e armado cavaleiro aos 24 anos, casou-se em 1428 com D. Leonor de Aragão tendo sido aclamado rei em 1433. Faleceu em Tomar no ano de 1438 deixando um reino dividido entre o seu irmão D. Pedro e a sua viúva, a rainha D. Leonor. Marcado desde o século XIX pela imagem fortemente negativa que dele traça Oliveira Martins, a vida de D. Duarte é fascinante: escreveu dois livros, deixou outro de notas e apontamentos, ajudou D. João I na governação, foi pai de nove filhos, sofreu uma depressão, durante o seu reinado os portugueses dobraram o cabo Bojador e perderam uma batalha – e ele um irmão – em Tânger.
Um dos aspectos mais curiosos da sua vida tem a ver com a sua especial relação com a escrita: «D. Duarte introduz pela primeira vez na língua portuguesa alguns latinismos que depois se tornaram vocábulos de raro sucesso: fugitivo, evidente, sensível, abstinência, infinito, circunspecto ou intelectual são alguns deles. De resto algumas das melhores páginas do Leal Conselheiro são precisamente aquelas em que ele medita sobre a língua: é o caso da análise de campos semânticos como tristeza, nojo, aborrecimento, pesar, desprazer, saudade, avisado, percebido, previsto e circunspecto. O que lhe faltou eventualmente em fluidez e elegância de escrita, sobrou-lhe em visão política, em capacidade de articular o passado e o futuro ao serviço de uma ideia de reino.»


Editora – Círculo de Leitores
Capa – F. Rochinha Diogo

PINTURA DE BRIAN STRANG
na Canessa Park Gallery
em San Francisco (EUA)


"I’ve always been interested in art that is guided by forces larger than itself, art that follows more than hammers the contours of thought, whether linguistic, visual or otherwise. And “nature” is the word we give to the largest context, the most permeating materiality, the system of interrelated forces so complex, so enormous and so minute, so internal and external, that it extends far beyond the limitations of imagination and is, therefore, marvelous. This is Whitman’s “spear of summer grass.” But in an ecosystem poised at the brink of collapse, a world of drowning polar bears, disappearing bees, dying coral reefs and increasingly-intense weather events that kill tens of thousands of human beings at a time, our understanding of this system of systems is tinged with peril and fragility."


Já há algum tempo realçámos, como ponto luminoso, a pintura de Brian Strang, que pode ser visitada no blogue Sorry Nature. O artista e poeta expôe agora numa das mais prestigiadas galerias de San Francisco. O texto transcrito será lido por ele na inauguração, a ocorrer no dia 3 de Junho. Vale a pena lê-lo na íntegra.

AINDA NICOLAU


Para além da entrevista, que recomendámos há dias, de Nicolau Saião merecem ainda visita a sua exposição virtual intitulada "Ruínas" e leitura um seu artigo sobre Agostinho da Silva.
José do Carmo Francisco

Dissertação
sobre o Nocturno de Chopin,
opus 9 nº 1

Há quem lhe chame Nocturno mas eu, modesto amador, sem diploma nem outras qualificações, oiço a interpretação de Maria João Pires e penso: deveria chamar-se poema sinfónico. Esta música leva-me a ligar de novo dois tempos separados pela angústia e pela distância. Estamos de novo em Setembro de 1973, eu acabo de ser promovido a furriel e tu chegas a Lisboa com todas as dúvidas de quem acabou o sétimo ano do Liceu. Estavas entre Medicina e Educação Física. Descubro o teu rosto numas escadas, num fugaz olhar de quem se cruza sem se conhecer mas percebe que está ali uma pessoa especial. A irmã mais nova de uma fratria de sete irmãos com dois rapazes e cinco raparigas, a mais nova, a mais protegida, aquela de quem todos e todas falam como a menina. O diminutivo envolve o teu nome com um halo de ternura tão grande como a Serra de Aire ou como a espuma sem fim da Praia da Vieira de Leiria. A tua voz acumulava todo o calor do Verão da Estremadura, toda a cor das maçãs mais vermelhas da nossa mais bela Província. Temos junto o que os outros só podem ter em separado: o iodo das praias, as planícies semeadas, as encostas ricas de vinha e de pomar e, por fim, as serras onde o ar é mais puro e também mais leve. Havia no teu olhar toda a extensão de uma geografia equilibrada entre o mar e a serra, dum ritmo entre sementeira e colheita, as quatro estações seguidas, pontuais e completas. O som do Nocturno de Chopin entra pela casa da costura e voa até à eira onde o vento já atirou para longe a última espiga de trigo. Cansada mas atenta, a tua mãe sorri. Só tu permaneces na eira, hoje como em 1973. Nem o vento nem o tempo fizeram no teu olhar qualquer erosão.

TRIÁLOGO
com Nicolau Saião

Por motivos pessoais e de saúde, Nicolau Saião tem andado afastado das lides literárias (o que não significa afastamento em relação à Arte e à Poesia). Como noticiámos, publicou recentemente uma antologia pessoal no Brasil e preparam-se, para breve, edições noutros países da América do Sul. Quebrou há pouco tempo um relativo silêncio, através de uma entrevista concedida à revista brasileira Agulha, um triálogo com Augusto José e Manuel Caldeira de que seleccionámos algumas declarações. O documento vale no entanto como um todo - merece ser lido e reflectido.

Em primeiro lugar desprezo os oportunistas, tanto na vida quotidiana como nas letras & artes… Aqui na cidade de Portalegre e no Alentejo, para não sair da região, tenho conhecido vários. Pequenos oportunistas, porque isto é uma terra pequena. O que aliás não me descansa, às tantas uma pessoa gostava de encontrar canalhas em grande, como no Balzac… e apanha só canalhinhas à portuguesa! Bom… E desprezo também os enfatuados, os que se escondem por detrás do dinheiro ou do poder. A nível geral desprezo os politiqueiros, os raposões que fazem grandes frases e apenas querem enganar o povo, os – no caso da escrita – que constroem as suas lendas, grandes ou pequenas, sobre a desgraça dos povos, para acatitarem as respectivas produções. Mas os que desprezo acima de todos são os que se proclamam irmãos dos homens e nada mais têm para lhes dar que obtusidade, dureza e frieza. Pessoas por vezes com grande formação académica e intelectual, universitários e quejandos, mas que são uns perfeitos patifórios, usando o lugar de que dispõem para exterminar a dignidade com um evidente sentido de que o podem fazer impunemente.


Ao contrário do que às vezes se usa fazer (“os outros que me definam” e tal… ) tenho muito gosto em me definir… até para poder epigrafar o que me parece legítimo: creio que sou um poeta surrealista pop. Nos meus textos, se bem notar, o universo onírico entra e sai (como uma bomba de pistão?) pela sociedade de consumo adentro, são constantes nos meus textos as referencias aos objectos e coisas característicos dos tempos que correm, comidas, lugares quotidianos, coisas vulgares em suma. Isso não é, evidentemente, premeditado, garanto-lhe que não tenho gosto pelo miserabilismo, não há tanto quanto me dou conta qualquer propósito preconcebido. Sinto a dada altura que os textos vivem vida própria, vivem por eles mesmos. Os mundos à Dali não me atraem nada enquanto hacedor, nada me dizem, os vastos painéis oníricos encaro-os como entidades… bem, falecidas. A meu ver o universo da poesia não é extático, há uma intrínseca vitalidade nas coisas. Sonho, sim, mas com cadeiras, janelas, motocicletas, roupas até. Que eu me lembre nunca sonhei com cavalos voadores ou homens espantados de olhos na ponta do nariz ou assim… O meu surrealismo é de situações inusitadas entre os factos e as personagens, o que me parece ser muito peculiar e ter muita força. Aliás, a “imagerie” surrealista à la page (ou pseudo-surrealista, se quiser) nunca foi cultivada com insistência senão por falsos surrealistas e explorada por publicistas pouco éticos ou propriamente tolos.

Não me diz nada enquanto literatice e creio mesmo que autores que se respeitam sofrem um pouco com esse cenário. Enquanto paixão interessa-me muito, é uma parte muito importante da minha vida. Aliás, numa palestra que fiz há uns dois anos em Espanha deixei isso bem claro. É uma grande aventura. Não posso esquecer o gosto com que defrontei – não apenas como simples leitor - livros como Mau tempo no canal de Nemésio, Voltar atrás para quê? de Irene Lisboa, Apresentação do rosto de Herberto Hélder, os livros de contos de Branquinho da Fonseca, prosa de Pascoaes e de Raul Brandão… O teatro do Ionesco, mesmo os seus contos, as reflexões memorialísticas em que se vasou às vezes, o Margarita e o mestre de Bulgakov, A montanha mágica de Thomas Mann… São experiências absolutas, só por isso valeu a pena ter vivido. Não falando em certos autores mais chegados, cuja escrita também sigo atentamente. No entanto o comboio literário em estilo Deve-Haver é frequentemente uma tristeza mas, como vivo fora desses meios onde as pugnas mais intensas acontecem, não sou muito tocado pela eventual peralvilhice. De vez em quando em fortuitos órgãos de informação topo com inquéritos género “ano passado nas letras” ou “para onde vai a literatura” que relanceio com certa má disposição porque aquilo tem mais o tom de treta mercantilista, o usual tique de coscuvilhice. Pacoviada. A literatura para onde vai? Para onde sempre foi, para o limbo dos séculos. O que interessa é a poesia e a escrita que se erguem altivamente para escarnecer as leis e ofender os deuses, como dizia Brassai. O resto é assim como que cocoricó para seis anos de imortalidade…”

“[…] nos últimos tempos têm tentado dar a poesia, a escrita, o “complexo literário”, como algo de supranumerário, talvez porque antes se tentava fazer dele uma arma de ascensão político-partidária. O que por vezes me parece que há é tácticas de sector onde o que se busca é fazer do autor uma espécie de padre sem sotaina, no mais acabado estilo de super-mercado ou de assanhada evangelização para primários. Aponto, como exemplo, para o neo-naturalismo (para empregar a expressão cunhada por Levi Condinho e posta a circular por Ruy Ventura) que entre nós quer agora ocupar totalmente, totalitariamente, a paisagem. De forma ainda mais nefanda que os antigos próceres e proponentes do “realismo-socialista”, pois esses ainda tinham uma justificação ideológica. Nestes lê-se, sem ser necessário binóculos, o simples nivelamento por baixo, para que a sua mediocridade, controlando por fora e em simultâneo “a praça”, seja legítima e imprescindível.
No campo das escritas as mais diversas os surrealistas trabalham sem rede, a própria busca de continentes novos a que se votam é por vezes empatada e prejudicada por gente que, já sem sequer disfarçar, o que quer é prebendas mesmo que a sua falta de talento as não justifique. E há encenações para “
inglês ver”: certos prosopoemadores, que se desunham em tragédias artilhadas em livro, quando na vida quotidiana tiram a mascarilha afinal são cidadãos cheios de calma, muito contentes com o lugar que ocupam na árvore dos níveis…

NOUTRA LÍNGUA

É estranho encontrarmo-nos noutra língua. Mesmo assim, nessa duplicação poética, vislumbramos uma imagem que não nos é completamente estranha.
Cada vez que estabeleço ligação com este número (o sexto) da Alice Blue Review sei que encontro outro (transfigurado no inglês de Brian Strang) e que, simultaneamente, me encontro a mim mesmo.

A SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA

É hoje lançado, na FNAC Chiado, pelas 18h30, o novo livro do antropólogo Aurélio Lopes (um dos mais interessantes autores actuais neste domínio do saber). O volume - que recensearemos brevemente - intitula-se A Sagração da Primavera e tem a chancela das Edições Cosmos, sediadas em Alpiarça. A apresentação terá a participação de José do Carmo Francisco; aí lerá o seguinte poema, que tomamos a liberdade de divulgar, com autorização do autor:


Uma memória de luz
ou pequena dissertação sobre a Primavera

Uma tarde estava eu na Ilha de Murano
A ver o esplendor do fogo das forjas
De onde saem peixes, relógios e cavalos
Quando me lembrei da força da terra
Não da terra propriamente dita, o planeta
Mas a terra de onde viemos e nos espera
Terá sido porque tinha estado em Burano
E no caminho vi o cemitério de Veneza
Cruzando a força das rendas das mulheres
E das redes dos pescadores dessa laguna
Com a fragilidade das flores mais secas
Sobre as pedras com as datas e os nomes
Lembrei-me mais da Primavera nesse lugar
Onde a terra era tão escassa e o mar imenso
No sono dos pequenos barcos no nevoeiro
No sossego interrompido pelos navios de luxo
Que descem o Adriático ao som da música
Mais fria, pobre e triste que se pode imaginar
Lembrei-me mais do cortejo do trem do cuco
Quando as coisas mais velhas e mais feias
Enchiam todos os carros de bois em desfile
Por entre os risos dos homens de barrete
E a desaprovação das mulheres velhas à porta
Porque havia ali coisas ainda boas de servir
Lembrei-me mais das fogueiras antigas
Nessas noites de cortejo no nosso Largo
Onde o Pelourinho é memória de justiça
E os rapazes mais velhos não deixavam
Que os pequenos saltassem a fogueira
Porque tudo tem o seu tempo na vida
Lembrei-me mais da nossa primeira festa
Que era sempre no Domingo de Pascoela
No Lugar da Granja Nova onde eu ia a pé
E o primeiro arroz de ervilhas da minha avó
Com o coelho do meu avô e dos meus tios
Era comido pelos músicos à beira do rio
Lembrei-me das nossas procissões à tarde
Quando eu segurava a naveta do incenso
E o turíbulo tinha brasas da nossa lareira
Que o meu tio ia buscar sempre a correr
Porque tinha o casaco de músico para vestir
Tocava trompete e fazia falta na filarmónica
Lembrei-me mais das festas de arraial
As gasosas a subirem do poço num cesto
A frescura nada tem a ver com frigorífico
Quando o vinho tinto amolecia as cavacas
E só assim o menino que era eu as comia
A olhar o coreto rodeado de sol e de pó

Lembrei-me mais de eu ser tão pequeno
E toda a gente na família me dizia
Para me levantar cedo e eu falhava
Não sejas lapão não deixes entrar o Maio
Repreendia a minha avó todos os anos
Sem nunca me explicar esta sua fala
Lembrei-me mais de ir ao Vale de Água
Para trazer os vários ramos da Primavera
Para nós, para a Tia Velha, para a Ti Zabel
Será por isso que ainda hoje no Chiado
Há quem venda estes ramos a alto preço
E um vai logo para o meu neto em Londres
Será isso hoje a Primavera possível
Um ramo num envelope almofadado
Ingénua maneira de prolongar o tempo
Que flutua numa memória qualificada
Mas não existe na verdade no campo
Onde se vive o esplendor dos pesticidas
Afinal nem tudo se perdeu, nem tudo caiu
Como eu não percebia as falas da minha avó
O meu neto vai demorar a perceber o ramo
Que ele possa chegar ao Outono como eu
Com o fogo da Primavera no seu olhar
E uma memória de luz onde tudo continua


Quando apareceu uma referência ao assunto no "Gato Fedorento", pensei que era piada.
Afinal, enganei-me. A matéria existe e merece ser lida (contada não tem graça). Meditação merecem, entretanto, os comentários publicados aqui e aqui.




ALGUMAS PALAVRAS

A entrega do Prémio Nacional de Poesia "Sebastião da Gama" a Amadeu Baptista e o lançamento do livro galardoado, O Bosque Cintilante, decorreram no sábado passado em Azeitão, com assinalável dignidade. Aqui ficam as palavras que proferi na ocasião:


Poderia proferir – em nome do júri do Prémio Nacional de Poesia “Sebastião da Gama” – palavras de circunstância. No entanto, nem o poeta premiado – Amadeu Baptista –, nem a memória do autor de Serra-Mãe (e do outro grande vulto poético da Arrábida, Frei Agostinho da Cruz), nem a assistência o merecem. Palavras de circunstância diria se viesse afirmar ter sido muito difícil e demorado escolher entre os cento e trinta e um originais o merecedor do galardão. Tal informação não corresponderia, contudo, à verdade. Sentados à mesa, depois de aturada leitura de todas as colectâneas submetidas à apreciação dos jurados, em poucos minutos sobressaiu uma decisão unânime. Vergílio Alberto Vieira, José do Carmo Francisco e o subscritor destas frases não tiveram dúvidas quando verificaram que o livro intitulado O Bosque Cintilante (a que fora atribuído o número 24) era um incontestável ponto luminoso. A luz emanada do título correspondia (e corresponde) plenamente à eminência poética. Não fazíamos ideia do ser carnal que se ocultava por detrás do pseudónimo “Paganini”. (Lembrei na altura Ruy Belo, para quem a Poesia é feita de poemas e não de poetas...) Tínhamos no entanto inteira convicção de que a justiça estava do seu lado.
Amadeu Baptista – nome descoberto depois da abertura do envelope lacrado – não era desconhecido de nenhum de nós (nem deveria sê-lo de qualquer olhar clarividente sobre a poesia portuguesa contemporânea). Autor de dezassete livros de poemas e de uma excelente antologia pessoal recentemente publicada, vem rasgando desde 1982 uma das mais importantes vias de circulação sanguínea desse corpo (por vezes paradoxal) que é a literatura em língua portuguesa do nosso tempo. Não precisa dos meus elogios (a qualidade de quanto escreve e/ou publica vale por si), mas há verdades que devem ser repetidas, para que não percamos de vista, na selva de alheamento que envolve o mundo cultural e social que nos foi dado viver, os focos luminosos (aqueles que têm brilho próprio) – e os saibamos distinguir desses espelhos enganadores que apenas reflectem a luz alheia, nada produzindo de válido, mas conseguindo ainda assim ofuscar e desorientar quem tenta encontrar o seu caminho. É preciso sermos, como refere Cristo no Evangelho segundo Tomé, “puros como as pombas e astutos como serpentes”.
Num “país de poetas” que não lê os poetas, como escreveu um dia Alexandre O’ Neill, é urgente separar o ouro do latão dourado ou de outros metais sem nobreza que, mais cedo ou mais tarde, revelam o seu verdete ou a sua ferrugem. Versejar e escrever poesia não são a mesma coisa. A Poesia revela, desvela, ilumina, transfigura, religa, desencanta o Universo. Os versejadores (mesmo os mais hábeis ou bem relacionados) apenas mutilam, ocultam, obscurecem ou conspurcam a realidade tangível ou intangível que nos envolve.
Bem mais que a expressão do inefável / seja a expressão do amor a poesia”, afirma Amadeu Baptista num poema seu. Sebastião da Gama diria que “o segredo é amar”, porque “a nobreza da Poesia [...] está [...] [em] se procurar e se encontrar em todos os lugares em que se está”. Quem escreve precisa, no entanto, como referiu Agostinho da Silva num livro sobre Giacomo Leopardi, “que o meio de algum modo [lhe] favoreça a tarefa”. Estimulá-lo com um prémio é uma boa maneira de o fazer (porque o poeta, ser humano como todos os outros, também come, também se veste, também necessita de um tecto ou de viajar...), desde que esse prémio traga consigo não apenas a compensação monetária, mas sobretudo uma alavanca que faça avançar com maior força a leitura da matéria escrita.
A tarefa cabe a cada um de nós. Parece que ouço, neste momento final das minhas palavras, algo de semelhante a uma frase de Renoir sobre a pintura (desta vez sobre a poesia): “Se os poetas só podem ajudar a Poesia escrevendo-a o melhor que podem, aqueles que não sabem ou não conseguem levar a cabo essa tarefa, têm apenas uma coisa a fazer: leiam poemas, comprem livros de poesia, façam-na chegar a todos os cantos, sirvam-na com humildade e nunca, mas nunca, se sirvam dela.

Azeitão, 19/5/2007

FEIRAS E FESTIVAIS

Sei o que valem as "feiras medievais" e os "festivais", "islâmicos" ou de outra índole, que pululam por Portugal e, talvez, por outras partes. São, sobretudo, invenções políticas e económicas que visam atrair o carcanhol turístico, meios de revitalização de comunidades que caminham muitas vezes para a desertificação social e humana. Têm muito pouco a ver com o entendimento histórico - são, podemos dizer, meios de ocultação da História, na medida em que fazem passar como verdades mentiras ou cenários que nunca corresponderam à realidade. Não passa por aí a compreensão do passado, por essas visões paradisíacas que tapam o sol com a peneira, mas que, no entanto, só enganam os tolos ou os distraídos.
Vêm estas considerações a propósito de uma feira que decorrerá numa vila do Baixo Alentejo. Chamam-lhe "festival islâmico", porque pretende relembrar o passado muçulmano da localidade. Tudo bem para o turismo e para os rendimentos da população; os seres humanos precisam de comer. Tudo mal para verdade histórica, que se vê mutilada em muitos dos cenários propostos.
Reviver o passado só vale a pena quando se mostram as luzes e as sombras. Mostrar estrategicamente apenas as luzes (algumas de duvidosa luminosidade) é mergulhar a História num ácido selectivo e manipulador.
Pergunto apenas: quantos dos participantes ou dos organizadores do "festival" gostariam de viver sob uma teocracia islâmica? Muito poucos, certamente...

José do Carmo Francisco


D. Afonso IV
de Bernardo Vasconcelos e Sousa

D. Afonso IV nasceu em 1291, subiu ao trono em 1325 e veio a morrer em 1357, depois de um reinado de trinta e dois anos. Pois apesar da duração do seu reinado, trata-se de um dos reis menos conhecidos da primeira dinastia. De um modo geral fala-se deste rei a propósito da morte de Inês de Castro ou do seu cognome de «O bravo», palavra que na Idade Média tinha um significado diferente do que tem hoje. Este livro acompanha a sua vida preenchida e agitada. Enquanto jovem pegou em armas contra o seu próprio pai e manteve uma guerra civil entre 1319-1324 mas depois de instalado no trono desenvolveu uma política de reforço do poder do rei impondo-se contra bispos, nobre e municípios. Ao lado de outro Afonso (Afonso XI de Castela) este rei português travou em 30 de Outubro de 1340 a decisiva batalha do Salado, pequeno rio do mesmo nome na região de Tarifa e nas proximidades de Gibraltar. Embora não se conheça em pormenor a evolução da batalha é bem possível que Afonso IV tenha derrotado o exército granadino enquanto o seu genro e sobrinho terá desbaratado as topas vindas do Norte de África. Esta retumbante vitória do Salado revestiu-se de grande significado militar e teve um enorme impacto na cristandade ocidental. A ameaça de uma investida muçulmana na Europa a partir de Península ficava ultrapassada. Um dos aspectos mais curiosos da sua vida tem a ver com o facto de na juventude ter lutado contra seu pai D. Dinis mas acabou por enfrentar o seu filho D. Pedro, revoltado e querendo vingar a morte de Inês de Castro.

(Editora – Círculo de Leitores, Capa – F. Rochinha Diogo)
FANATISMOS E COBARDIAS
(Oz & Reverte)


"Sentido de humor, a capacidade de imaginar o outro, a capacidade de reconhecer a capacidade peninsular que existe em cada um de nós, pode pelo menos constituir uma defesa parcial contra o gene fanático que todos temos dentro de nós." A proposta é de Amos Oz que, sem maniqueísmos, consegue manter-se, funâmbulo, na linha de fronteira entre a cegueira terrorista palestiniana e o entrincheiramento judeu.

*

A entrevista de Arturo Pérez-Reverte ao Público de 20 de Abril é um raro documento de frontalidade e lucidez perante o nosso tempo. Nada a que não estejam habituados os leitores das suas crónicas poderosas, mas ainda assim esta entrevista é algo de assinalável no meio da cobardia politicamente correcta que está a dar cabo do Ocidente europeu. Quanto mais nos baixamos (nomeadamente perante o terrorismo de todas as proveniências, social e armado), mais o traseiro nos aparece... E é bom que pessoas como o romancista espanhol, ouvidas, digam que o rei vai nu.
"Merecíamos ser invadidos", afirma. É verdade! Mas sofreriam nessa altura os crápulas que, conscientemente, hoje tudo justificam? Duvido.

DOUTRINA CRISTÃ

segundo Agostinho da Silva





"Existe um Deus que é o conjunto de tudo quanto apercebemos no Universo. Tudo o que existe contém Deus, Deus contém tudo o que existe. Pode-se, sem blasfémia, considerar o aspecto imanente ou o aspecto transcendente de Deus; pode-se, sem blasfémia, falar não de Deus mas apenas do Universo, com Espírito e Matéria, formando um todo indissolúvel. A doutrina de Deus, tal como a pôs Cristo, permite considerar todas as religiões como boas embora em graus diferentes, todos os homens como religiosos. Não poderá, portanto, fazer-se em nome de Deus qualquer perseguição: todo o homem é livre para examinar e escolher; a maior ou menor capacidade de exame e o resultado da escolha serão, em qualquer caso, a expressão do que ele é e do máximo a que pode chegar segundo as suas capacidades."


(Esta e outras reflexões aqui.)

A RECUSA DE GAMBETTA


Gambetta (então primeiro-ministro francês) justificou assim a Renoir a sua recusa de um projecto de mural para o novo edifício da Câmara Municipal de Paris:
"Mais vale ver a República viver com a má pintura do que vê-la morrer com uma grande arte..."
O político afirmava amar a pintura de Pierre-Auguste, ou pelo menos reconhecia a sua eminência. Os seus (contra)valores eram no entanto outros. Talvez por isso caiu da cadeira pouco tempo depois. Ao contrário do que pensava, a verdadeira Arte vai permanecendo (mesmo quando ocultada), enquanto os regimes e os governos cedem facilmente à erosão do tempo.
E os Gambetta de hoje? Na sua maioria, nem reconhecem nem amam a Arte. Mesmo quando parecem fazê-lo, continuam a preferir pomposos pilritos (que fazem vista sem incomodar ninguém), ignorando o trabalho destes no esboroamento dos políticos e dos regimes que os promovem.



(Na imagem: "Le Moulin de La Galette", de Renoir.)

miragem
[Montpellier-le-Vieux]



divido a garganta
entre a água e a terra.
o mapa levanta-nos.
a voz descobre na estrada
um fio de sangue
estreitando o continente,
um fio de ouro
correndo a meio da garganta,
no local exacto onde
uma palavra secciona
luz e o coração.

uma sílaba afasta-nos do mundo,
deste mundo.
as torres dissolvem
aquele húmus na atmosfera.
o arco divide a medula,
a rama dos carvalhos.

nada vislumbro neste poço.
a lua e o alimento desapareceram.
regresso ao âmago da terra.

Ponho a minha assinatura nesta opinião.

AMADEU BAPTISTA

lança novo livro


É hoje o lançamento do novo livro de Amadeu Baptista, recentemente galardoado com o Prémio Sebastião da Gama. Trata-se de uma antologia pessoal da sua poesia, intitulada Antecedentes Criminais, abarcando textos dados à estampa entre 1982 e 2007.
A apresentação, a cargo de Baptista-Bastos, decorrerá na FNAC Chiado, pelas 18h30.
José do Carmo Francisco

Fátima Murta –
Quando o poema se confunde com a oração


Desde sempre os poetas tiveram a coragem de chamar todas as coisas pelos seus nomes. Pois se a vida é tão breve e o amor tão incerto que outra oposição podemos fazer à morte além da criação de poemas, pequenos alicerces na grande casa da posteridade?
A posição do poeta é coincidente com a do crente. Ambos ajoelham em silêncio e ambos levantam do chão a palavra cansada para ligar de novo dois mundos separados pela distância, pelas sombras e pelo esquecimento.
Em «Consumatum Est» Fátima Murta afirma:
«Poderiam retirar-me tudo na vida menos a prece, a oração.»
A ligação entre a oração e o poema está no amor porque o amor é a única resposta à morte mesmo quando («Viola Delta III») não sabemos, ao certo, o que é o amor:
«Não sabemos o que é o amor mas, amor, amamos o que desconhecemos
E mesmo quando a morte tem a dimensão do espectáculo planetário transmitido em directo (11 de Setembro) ou do Holocausto de 1939/1945, é sempre possível cantar em poema «A última vítima de Auschwitz»:
«Apenas mais uma túlipa mais que seca a pele e o olhar. / Apenas mais uma mulher que um dia sonhou com um jardim. / Apenas mais uma mulher. / Já nada tem de seu.»
A única resposta ao sangue derramado dos timorenses é um poema a Santa António de Lisboa em «Santa Cruz de Timor»:
«António, meu Santo António de Dili, de Baucau, de Bobonaro / Meu Coronel Santo António alistado na milícia de Maria / Casa o Mar do Homem com o Mar da Mulher / e fica à espera que a nova bandeira da paz entre os homens / brilhe junto à gruta onde foi assassinado o primeiro filho de Timor!»
Mas o amor, tal como a poesia, não é fácil. Além de não saber o que é o amor, o poeta procura muitas vezes um amor que não encontra. Como em «Coisa talvez amada»:
«
Queria colher a rosa mais linda de Maio
Mas tu estavas tão longe dela e de mim
Fui eu para longe de ti e levei a rosa (...)
Não cheguei a oferecer a rosa mais linda de Maio.
Colhia-a a meio da tarde e havias partido pela manhã.
Tão cedo se deixam as rosas entardecer.
»
Federico Garcia Lorca foi morto mas venceu a morte e hoje o seu nome é vivo; ninguém sabe o nome dos seus carrascos. Vejamos essa memória em «Com perfume de limão»:
«
Dorme Federico dorme
dorme com as estrelas nos olhos de prata
Meu menino de presépio nascido do céu
sobre as nebulosas onde a água chora.
»
Agostinho da Silva, outro vencedor da morte, está presente nos textos de Fátima Murta:
«Ser criança também é uma arte muito difícil. Nem todas as crianças conseguem ser e permanecer crianças. Porque ser criança não é o mesmo que ter poucos anos de idade.»
Tanto nos poemas como nos textos narrativos de Fátima Murta surge um roteiro de fidelidade à ideia de não morrer. Em «Senhora do Carmo» do livro Palavra de Mãe, o poema é poema mas sem deixar de ser uma oração:
«
Assim eu viva contigo sempre a meu lado, estrela
Assim eu morra mergulhada no teu firmamento
e quando a escuridão me seduzir ao afago dela
me ouças gritar: Mãe, fica só mais um momento!
»
Se ficamos junto da mãe, da mãe do Céu, da mãe da vida, da mãe da alegria e do amor, então será possível o poema matar a morte. Também na canção «Senhora da Aparecida» há uma quadra que diz textualmente:
«
Você me apareceu
Quando eu menos esperava
O mar unido ao céu
Ao meu redor gritava
»
Se ficarmos junto da mãe, a oração que o poema também é, servira de ponte entre dois mundos. O do precário e o do eterno; o das lágrimas e o da alegria sem fim; o do efémero e o da posteridade. Dito de outra maneira: o dos Homens e o de Deus.
Os poemas, as canções e os textos narrativos de Fátima Murta comungam, praticam e proclama esta verdade tão antiga como o Mundo: «Só há uma medida para o amor que é amar sem medida.»

fotografia
[Carreiras]



não há semáforos à entrada da aldeia.
no entanto, o vermelho cai constantemente
sobretudo para aqueles que
querendo avançar
vêm de fora, sendo de dentro.

não há sequer uma passagem para peões
ou qualquer limite de velocidade
que justifique a sua presença.
existem, porém, semáforos invisíveis
que não obrigam a parar
mas conseguem que o automóvel
parta mais depressa.

por vezes sem cor, revelam dois ou três
rostos conhecidos (na terra), sentados
todo o dia na esplanada do café ou
(daqui por uns anos) debaixo de uma das árvores do largo
num albergue ou à porta da casa mortuária.

só o verde parece não existir
para aqueles cuja presença incomoda as pedras.
para esses, os semáforos têm apenas duas lâmpadas
uma amarela, outra vermelha.

não se vêem, mas existem
à entrada da aldeia – numa das curvas da estrada
depois do portão (sempre aberto) do cemitério.


*

dois poiais sempre ao redor. mas poderiam ser
dois cabos eléctricos a debruar a fachada da igreja
dois focos a escurecerem a torre ou apenas
duas placas com erros de ortografia.

assim se constrói uma aldeia.
mesmo quando existem roldanas
lembrando o embargo da construção.

a terra é a mesma. e se, em cinquenta anos, foi
cemitério, parque infantil, balneário público, junta
de freguesia e parque de estacionamento, a culpa
é apenas do terreno, instável, apesar da rocha.
a essência fica e o odor é o mesmo.
e não será uma trasladação em caixão de chumbo
que irá resolver o assunto.


*

das tascas nem uma sobrou.
a única que ainda se ergue
com portas há muito fechadas
será, com certeza, um quarto de cama
ou uma casa de banho privativa.

a rua nem sobe nem desce.
até os andores, em dia de procissão, preferem
agora estrada nova, num povo onde
as imagens têm reforma compulsiva
sem processo disciplinar nem culpa formada.

as bocas, essas, calam-se. como se as casas
e todas as palavras fossem clandestinas
não vão alguns ser como o santo
que, primeiro, se negou ao chibo da promessa
mas depois já corria atrás dele.

a alegria permanece, apesar das nuvens
e da cortiça (quase humana) que não sai
mesmo depois dos nove anos
correndo o risco de perder a serventia.

a alegria permanece. a vontade fica. regressa.
embora traçada a negro no rosto
daqueles cujo automóvel encontra
todos os dias (ou quase todos)
um sinal vermelho à entrada desta aldeia.

(para Maria Guadalupe Alexandre)


publicado também no Arquivo do Norte Alentejano

PORTUGAL

segundo UNAMUNO



"El pueblo portugués tiene, como el gallego, fama de ser un pueblo sufrido y resignado, que lo aguanta todo sin protestar más que pasivamente. Y, sin embargo, con pueblos tales hay que andarse con cuidado. La ira más terrible es la de los mansos."


"Portugal es hoy un purgatorio poblado de ánimas."


"La blandura, la meiguice portuguesa, no está sino en la superficie; rascadla, y encontraréis una violencia plebeya que llegará a asustaros."


"[...] el severo monumento [mosteiro de Alcobaça], desnudo, solitario, silencioso, recuerda, más que la independencia de la patria, la independencia del amor. Portugal, que como Inés, ha amado mucho y ha amado trágicamente bajo el yugo del Destino, no reinará también después de morir? La desgraciada amante, no es un símbolo prefigurativo, un augurio, de esta tierra linda, linda como Inés, víctima también de fatídicas pasiones?"


(in Por tierras de Portugal y de España, 1909)
DOIS LIVROS PODEROSOS

Leio, ao mesmo tempo, dois livros poderosos. Nas primeiras páginas, um que tem mudado tanta gente ao longo dos séculos: - Confissões, de Santo Agostinho. Quase no fim, outro que poderia ter mudado muita coisa na literatura de dentro e de fora, não tivesse sido censurado, tão mal lido e tão mal olhado em sete décadas: - Jogo da Cabra Cega, de José Régio.
Ao lado dos dois, Deus senta-se paciente...
De que lado, a ficção? Na memória travestida ou na memória desnudada?
A transformação produz justeza interior, reflectida no exterior que somos. Quer a aceitemos, quer não. Mas sairemos ilesos da leitura de livros como estes? Não creio.
José do Carmo Francisco


Entre a ausência e a memória

Estamos num quente fim de tarde no Café Peter de Lisboa entre uma sandes de atum e o inevitável gin tonic. Entre o pão que sabe a terra e o atum que sabe a mar. O gin tonic, esse é um convite a todas as viagens. Mesmo aquelas que se fazem sem sair da nossa mesa. Uma velha fragata recuperada aguarda os passageiros para uma volta pelo Mar da Palha. Parece que o nome deste estuário lhe vem das grandes inundações no Ribatejo no passado quando a corrente violenta trazia numerosos fardos de palha da Lezíria até Lisboa. Oiço, julgo que oiço, palavras, restos de palavras, sílabas, ditongos perdidos, pequenos sons da voz de Maria José. Misturam-se os dois tempos da ausência e da memória. E a mesa que parecia vazia surge povoada pelo tempo em que não havia distância nem silêncio. Todas as manhãs nesse tempo eram iluminadas pelos passos decididos de Maria José. Hoje, neste fim de tarde onde uma brisa teimosa procura empurrar o calor para o estuário do Tejo, despeço-me do Café Peter e passo de novo junto à fragata de cores garridas. De súbito vejo, julgo ver, o seu nome que mudou – em vez de Castro Júnior é agora Maria José. A voz de Maria José é um vento novo que empurra a velha fragata recuperada para uma travessia até ao outro lado do Mar da Palha. Eu sou apenas um pequeno ponto na grande multidão do Parque das Nações. Passam centenas de atletas urbanos a correr, outros pedalam vigorosamente em bicicletas caríssimas porque são leves como penas. Grupos de turistas multiplicam os flashes das fotografias de recordação. Entre a ausência e a memória de Maria José eu já não sou uma pessoa mas apenas um frágil e pequeno organismo sentimental.

AMADEU BAPTISTA


venceu o


com o livro

O Bosque Cintilante


O júri - constituído por Vergílio Alberto Vieira, José do Carmo Francisco e Ruy Ventura - atribuiu ainda menções honrosas a obras de António Sá (Grupo familiar - uma foto) e Jorge Reis-Sá (Cai a tarde).