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MUSIL E O FUTURO

Cheguei ao fim das cerca de duas mil páginas da versão francesa d' O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. Surge-me, agora, a mesma pergunta que costuma surgir sempre que termino obras com a importância desta: terei coragem de relê-la num destes dias que me faltam viver? Será possível repetir uma iniciação? Seja como for, acompanhar-me-á no futuro, mesmo quando dela restarem apenas alguns fragmentos, indistinguíveis de tantos outros que se vêm acumulando na memória.
Pareço às vezes um coleccionador, mas desejo apenas conhecer (no sentido mais inteiro da palavra) os alicerces da casa onde habito cultural e espiritualmente. E esses alicerces chamam-se Odisseia, Ilíada, Eneida, Divina Comédia, Em busca do tempo perdido, Metamorfoses, O Homem sem Qualidades, D. Quixote de la Mancha...
Que se seguirá? Vários caminhos se estendem à minha frente: Rayuela, de Cortázar, em tradução portuguesa; 2666, de Bolaño, no original... muitos outros. Qual seguirei? Não sei ainda.

NUMA ENCRUZILHADA DA PENÍNSULA
(publicado em tradução castelhana no nº 15 da revista Imagen de Extremadura)

Para quem chega de Jerez de los Caballeros – onde avulta, nas palavras do poeta Nicolau Saião, “uma torre singular” no meio da “serena alvura” dessa terra geradora de uma “comoção inexplicável” –, Fregenal de la Sierra apresenta-se como sucessora natural na viagem, com a sua herança também fenícia, romana, islâmica e templária. Muito próxima da mais raiana das localidades portuguesas – Barrancos – e a pouquíssima distância dos limites administrativos que separam a Extremadura da Andaluzia, a sua localização no mapa configura-a enquanto encruzilhada e, encruzilhada sendo, como ponto de encontro de povos e de culturas. Do outro lado, Aracena e a sua serra têm uma função semelhante (tanto mais que, num curto tempo da Idade Média, chegou a ser governada por um rei português). Barrancos, Fregenal e Aracena parecem ser, aliás, os vértices de um triângulo que, aos mais atentos, permite entender muito do que estrutura e argamassa a identidade raiana.
Os livros e outras fontes de informação dizem-nos que, entre os filhos mais ilustres de Fregenal de la Sierra, se conta o pintor Eugenio Hermoso. Se o artista de Badajoz que tanto aprecio – Luis de Morales, el divino – apresenta nas suas tábuas ora a doçura do olhar e dos gestos humanos ora a “alucinatória imagem da carne” (na expressão de Antonio Sáez, meu companheiro de crónicas raianas), as telas do autor serrano – que podemos apreciar nomeadamente num museu da cidade do Guadiana – mostram talvez melhor quanto nos atrai nessas terras: a inteireza da paisagem e dos rostos, a alegria ora expansiva ora recatada, a serenidade de um território peculiar, pleno de vegetação, resistente como os seus habitantes.
O melhor meio para chegar ao conhecimento das centenas de milhares de hectares que se estendem entre as duas localidades será, creio, o da caminhada. Não há melhor maneira de nos embebermos da paisagem e do povoamento de uma parcela do mundo – isto se não pudermos aproveitar a melhor de todas, a daqueles que deixam tudo para habitá-la, talvez para sempre. Pela serra de Aracena – mas também pelo território de Fregenal – são muitos os caminhos pedestres (assinalados ou por assinalar) que permitem ao viajante a convivência com o espaço. A pé – mas também a cavalo ou de bicicleta – é possível descobrir cumes e vales, bosques e clareiras, aldeias e campos, culturas e matagais, arquitectura popular e construções eruditas. De carro também, mas o gosto nunca será o mesmo… Pelas veredas ou pelas estradas, será sempre possível fazer paragens e alimentarmo-nos não só da contemplação visual, mas também – porque nem só do espírito vive o Homem… - dos deliciosos produtos que reforçam o corpo e estimulam o paladar, como os queijos, os derivados do porco preto, os cogumelos cozinhados com sabedoria, etc..
Por entre um património natural riquíssimo, entremeando azinheiras, sobreiros e castanheiros, há muito para ver nesta encruzilhada da Península. Desde os vestígios mais remotos à importante rede de fortificações andaluzes e templárias, passando por um impressionante conjunto de construções religiosas ou por múltiplas edificações vernaculares igualmente interessantes, na sua rudeza e simplicidade, temos ingredientes para muitos dias de encontro.
Se começarmos pela praça maior de Fregenal e nos demorarmos no seu castelo, nos seus conventos e igrejas (entre as quais destaco a muito concorrida ermida dos Remédios) e nas suas casas nobres, passando, já em Aracena, à visitação da sua fortaleza (com sedimentos islâmicos, portugueses e castelhanos), dos seus templos mudéjares ou de um conjunto de esculturas ao ar livre, terminando com uma descida ao interior do mundo, ao apreciarmos com tempo o esplendor das estalactites e das estalagmites da Gruta das Maravilhas – veremos muito, mas teremos sempre observado muito pouco.
Todo este território encostado a Portugal é muito mais rico física e culturalmente, tem muito mais a oferecer ao viajante, para nele existir, viver e conviver. A orografia favorece a multiplicação de expectativas e o mistério. E, se em Fregenal de la Sierra, uma “Casa do Sangue” nos recorda os horrores de que é capaz o ser humano, será sempre possível recuperar o ânimo e a esperança visitando o Convento de la Paz, na mesma localidade, ou bebendo em qualquer fonte da água oferecida pela Serra de Aracena.
FRUTOS DA ÁRVORE MEDITERRÂNICA


Permitam-me que inicie esta viagem recorrendo à minha memória e saindo um pouco da faixa de território que constitui a Raia. Escrever sobre a gastronomia desse espaço não é para mim possível sem que ao meu pensamento venham lembranças gustativas cujo valor é indissociável dalguns contactos humanos, paisagísticos e arquitectónicos havidos em toda a Extremadura de Espanha. Embora o eixo desta crónica e das suas antecessoras seja sempre a identidade raiana, penso que ela nunca será devidamente compreendida sem se relacionar com a paisagem e o povoamento de outros milhares de quilómetros quadrados que a rodeiam e sem termos sempre em mente que tudo se passa no âmbito de uma cultura e de uma civilização sedimentar com raízes mediterrânicas.
Como esquecer, falando deste tema, uma morcela assada comida à sombra do mosteiro de Guadalupe, as excelentes migas saboreadas sob as arcadas de Plasencia, o arroz de lebre que (em Zorita ou Logrosán) me deu forças para continuar uma viagem, o doce de amora que adoçou um encontro de poetas ocorrido em Yuste, as alcachofras a tortilha e o gaspacho degustados nas proximidades da catedral de Badajoz, o licor de bolota que nunca deixa a minha garrafeira, a reconfortante torrada à moda extremenha – com alho esfregado, tomate e finas tiras de presunto – comida na casa de um poeta muito amigo? Não seria possível. Tal como não é possível olvidar alguns produtos que trago para minha casa sempre que posso deslocar-me às agrestes mais fortes paisagens da Extremadura. São sabores que ficam, inesquecíveis, sabedorias que nos foi dado conhecer pelo paladar e que, mais do que quaisquer outras facetas do verdadeiro corpo desta parcela da Península Ibérica, se tornam logo irrepetíveis, imateriais.
Não sou de coleccionar nomes de restaurantes. Posso assegurar-vos de que a nenhuma das experiências gustativas antes enumeradas consigo juntar o nome comercial do estabelecimento onde tiveram lugar. Esse hábito, hoje muito em voga, cheira-me sempre (na melhor das hipóteses) à colagem infantil de cromos numa caderneta ou (na pior) ao exibicionismo turístico daquela gente que tanto gosta de mostrar t-shirts compradas (ou não) em Cuba, no Brasil ou nas Canárias. Há no entanto espaços que não podem ser esquecidos, ao aliarem sabor e saber. Lembro o “Palacio de Arteaga”, em Olivença, onde tradição toma ares renovados. Recordo com particular veemência o quanto se come e bebe bem naquele espaço histórico das terras de Alcántara, “El Convento”, instalado no cenóbio de San Pedro de Majarretes, onde viveu essoutro Pedro, santo monge franciscano que um dia aportou ao mosteiro da Serra da Arrábida, vizinho da minha casa.
Mais do que tudo, tenho sempre presentes – ao lembrar-me da gastronomia raiana, extremenha ou alentejana – os ingredientes a que as mãos e o cérebro de muitos homens e mulheres souberam dar sabedoria e arquitectura no gosto: sobretudo o azeite, o vinho e o pão, mas também as peças de caça, o bezerro, o cabrito e o borrego, o porco (bravo ou manso), as aves de capoeira, algum peixe do rio, o leite e o mel, as frutas de horta ou silvestres, os legumes nascidos de uma terra exigente e sequiosa… Com estes elementos se confecciona tudo ou quase tudo na raia que nos une.
Se falássemos de música, poderíamos dizer que temos alguns temas básicos e muitíssimas variações. O arroz de coelho, as migas e o gaspacho, por exemplo, na minha aldeia de Carreiras são feitos de outro modo… mas já o “cachafrito” tem uma grande semelhança com algum borrego frito comido em terras da Extremadura. Valerá a pena repetir? Estamos tão próximos que nem a gastronomia nos separa. Mediterrânicos de um e de outro lado, embora hoje ponhamos no prato uma enorme variedade de receitas, aprendemos todos a mesma lição milenar, somos todos frutos da mesma árvore genealógica.

(Publicado em castelhano na revista Imagen de Extremadura)

A MAIS RAIANA DAS VILAS PORTUGUESAS
(texto publicado em espanhol no nº. 13 da revista Imagen de Extremadura)

Muito pouco conhecem os portugueses da vila de Barrancos, uma das mais remotas do território nacional, sede de concelho apenas com uma única freguesia. A maior parte de nós recorda esse pequeno pedaço de Portugal apenas pelos touros de morte e pelos excelentes enchidos de porco preto, associados a vagos ecos de um português diferente que por lá se fala.
Durante anos e anos o conhecimento foi mesmo mais restrito, limitando-se à acesa polémica entre os chamados “defensores dos direitos dos animais” e a população local, tendo como centro a realização anual de corridas de touros em que o animal morria, contrariando o estabelecido na lei portuguesa. Era já uma tradição lusa assistir na televisão ao folclore das forças policiais tentando impedir sem sucesso o acontecimento festivo, aos garridos e (por vezes) descabelados protestos dos protectores dos bichos e ao manguito contumaz dos barranquenhos que – depois de muita resistência – lá conseguiram que a Assembleia da República do seu país consagrasse no Diário do Governo a sua excepção cultural. Fizeram bem os políticos? Fizeram mal? Matar os touros no meio da arena em vez de abatê-los no matadouro será pior ou melhor? Cada um responda na sua consciência.
Cessada a refrega, resta aos portugueses mais distraídos, como lembrança de Barrancos, o sabor dos seus chouriços – delicioso como o de poucos. Reconheçamos que é injusto. A pequena vila com escassos milhares de habitantes merece que a lembrem de uma forma mais poliédrica. Nomeadamente como a mais raiana de todas as vilas portuguesas. Ao seu lado talvez, apenas, a cidade de Miranda do Douro, com o seu mirandês descendente do leonês, agora também língua oficial com direito a ensino público.
Em Barrancos, aos touros de morte e a uma ligação umbilical com os seus vizinhos espanhóis, associa-se um falar em que se misturam marcas do português falado no Baixo Alentejo com as do castelhano falado para além da fronteira. Estudado com sabedoria (embora com limitações) pelo investigador José Leite de Vasconcellos no seu livro Filologia Barranquenha, editado postumamente em 1955, não pode considerar-se – segundo afirma Luís Filipe Lindley Cintra – um dialecto autónomo, mas é ainda assim uma das mais concretas manifestações da cultura raiana (tecido muito matizado, no qual os séculos e os homens que os povoaram foram entrançando fios diversos, com cores diferentes, mas complementares e (hoje) indissociáveis).
Será a peculiar – e polémica – tauromaquia barranquenha outra coisa para além de uma das faces dessa manta colorida, feita de muitos tecidos recortados e recompostos? Se a praça onde decorre o espectáculo, edificada no efémero com barrotes de madeira no largo principal da vila, faz lembrar aquelas onde decorrem por esse Alentejo fora as “ferras” ou “touradas à vara larga”, a largada das reses e a sua lide a pé lembram algumas das mais conhecidas tradições de Espanha. Quer apreciemos ou não o ritual sangrento, traz-nos à memória raízes muitíssimo antigas, milenares, de uma época em que não existiam nem “Alentejo” nem “Extremadura”, mas havia uma cultura agrária com touros e deuses ctónicos que era preciso vencer para afirmar a força da humanidade, uma cultura cujos vestígios correm hoje o sério risco de desaparecer enquanto manifestações autênticas.
Por muitos motivos (uns positivos, outros nem tanto) podemos afirmar que essa cunha portuguesa em território extremenho, vigiada pelo abandonado castelo de Noudar e protegida por uma santa com resplendor à castelhana, não é nem de Portugal nem de Espanha. Apenas uma das eminências desse território peninsular agreste mas misterioso chamado “Raia”.
PERSISTÊNCIA NA METAMORFOSE

Só em Maio de 1773 se publicou em Portugal uma lei que extinguiu a segregação entre “cristãos velhos” e “cristãos novos”. Mas foi preciso esperar até 1822 para se ver atirada para o arquivo dos horrores da História essa instituição de manipulação política e social do religioso chamada Santo Ofício. O sinistro tribunal (já existente em Espanha desde 1478) fora autorizado por Roma em 1547, mas a perseguição pelo poder real dos judeus iniciara-se décadas antes, com especial vigor a partir do seu baptismo forçado, decretado por lei de D. Manuel I datada de 1497, no seguimento das imposições decorrentes do seu casamento com uma filha dos Reis Católicos.
Com a expulsão dos judeus de Castela, ordenada em 1492, todo o território português se transformara em campo de incontáveis multidões de refugiados, as quais – num primeiro momento – fixaram residência provisória nos terrenos limítrofes de muitas vilas e cidades da raia. Nem todos permaneceram, mas muitos foram aqueles que acabaram por se agarrar às terras de Trás-os-Montes, da Beira e do Alentejo – engrossando a população hebraica que já aí habitava, cuja presença comprovada por achados arqueológicos se pode remontar aos últimos séculos do Império Romano (embora existam indícios linguísticos e documentais que nos poderão levar a épocas anteriores).
As judiarias da raia portuguesa, tal como chegaram ao nosso tempo, são fruto de um palimpsesto arquitectónico e cultural. Com origem medieval – talvez nos tempos em que se iniciara a segregação de judeus e muçulmanos – apresentam uma identidade sedimentar. Se até ao século XIV judeus e cristãos viviam no mesmo espaço – embora os seguidores da Lei de Moisés tivessem as suas comunas, com espaços sociais e de culto próprios – a partir desse momento vêem-se obrigados a envergar vestuário distintivo e a viver em ruas separadas, fechadas por portas. As leis nem sempre eram cumpridas ou feitas cumprir, mas existiam. Pequenos comerciantes e/ou artífices, foram os fundadores de uma estrutura habitacional ligeiramente distinta, reconhecível pela existência de edifícios com duas portas: uma estreita (a de morada) e outra larga (a da oficina). Na ombreira do lado direito era colocada a “mezuzah”, pequeno rolo com uma oração ritual (de que hoje sobram rasgos na pedra). Existiriam ainda, em todas as comunidades com mais de dez membros, constituídas enquanto comunas, a sinagoga e a escola.
Foi tudo arrasado com a conversão forçada em finais do século XV? Nem por isso. As sinagogas transformaram-se em habitações (como a pequena casa de oração de Castelo de Vide) ou em igrejas cristãs (a de Portalegre passou a “igreja de São Lourencinho”). As “ruas da Judiaria”, sendo as mesmas, mudaram de nome (primeiro exemplo dessa lamentável mania de apagar a memória toponímica), passando a ser “ruas novas”. Continuaram a demolir-se casas e a construir-se casas novas. O rasgo vertical nas ombreiras transformou-se numa cruz. Nos lintéis passaram a surgir, com abundância estranha, símbolos cristãos – não fizessem o diabo inquisitorial e a inveja das suas (e muitas vezes fizeram…). Esta metamorfose levou, até, à edificação na entrada de Castelo de Vide de uma capela a Vicente Ferrer, o pregador espanhol do século XV que marca presença também numa fonte pouco distante da “Rua Nova” portalegrense.
São raras as vilas e cidades da raia portuguesa que não preservam a memória arquitectónica e/ou toponímica da sua antiga judiaria. Entre todas, é Castelo de Vide aquela que melhor transpira essa presença ancestral. O bairro que desce da fortaleza até à inigualável Fonte da Vila impressiona pela quantidade de portais góticos e renascentistas, pelas ruas íngremes, com recantos secretos, pelo olhar das suas gentes que – ainda há pouco tempo – continuavam a rezar, com os habitantes de uma aldeia próxima (Carreiras), orações judaicas ligeiramente cristianizadas, persistindo em costumes que não negam a sua origem.
A Civilização muda, mas a Cultura tende a persistir. Provam-no muitas judiarias. Prova-o a Cultura de muitos homens e mulheres da raia portuguesa.


Publicado em tradução na revista La imagen de Extremadura, nº 12, disponível aqui.
NÃO HÁ LUGAR NA HOSPEDARIA

"Não havia lugar na hospedaria". De entre todas as frases que constroem a narrativa da Natividade é esta uma das que mais me impressiona. Mais do que uma imagem de pobreza, de ausência de abrigo, esta afirmação ecoa no meu cérebro como desencantada constatação da rejeição da digna humanidade de Jesus.
Hoje vivemos um Natal sem Natividade e sem Menino, envelhecido nas barbas brancas de um velho com barriga de fartura - empanturrado talvez pela "água suja" açucarada do refrigerante que trajou Nicolau de vermelho e lhe retirou o nome e o papel de servo de Cristo. Ausenta-se dele não só a pobreza de Jesus, mas até a sua imagem (envolvida nas notas de banco do comércio ou em papéis de embrulho), numa reverência aos deuses do neo-paganismo dominante (o Dinheiro, o Consumo, a Indiferença, o Relativismo, o Sucesso, etc.). Vivemos, assim, num mundo em que a verdade da frase registada no Evangelho se tornou evidente.
Como há cerca de dois mil anos, não há hospedaria que acolha muitos dos seres humanos que habitam neste planeta Terra. É fácil lembrarmo-nos dos impressionantes números da miséria extrema que revestem alguns países dominados por sanguessugas que, por vezes, até assumem as vestes da "democracia" para melhor se perpetuarem no poder e cometerem os seus crimes. Mais difícil é lembrarmo-nos daqueles que, ao nosso lado, não encontram lugar nas hospedarias da dignidade. E não são apenas quantos povoam as arcadas e os recantos do relento deste país, deitados em caixas de papelão. São também, por exemplo, as crianças que não encontram lugar nos infantários públicos, os jovens altamente qualificados que não têm emprego nem esperança de trabalhar no seu Portugal, os cidadãos dignos que se vêem espezinhados por dirigentes políticos económicos ou sociais levianos e/ou corruptos ou por um sistema de justiça em erosão, aqueles que perdem o seu emprego, os que vêem o seu sustento reduzido pela ganância bancária, os idosos que não têm que olhe por eles, sendo excluídos dos lares por causa das suas doenças ou por não terem dinheiro suficiente que compre a abertura de vagas.

*

Há pouco mais de um ano Rosária foi uma dessas excluídas que, todos os dias em Portugal, não têm lugar na hospedaria. Residente no concelho de Portalegre e doente de Alzheimer, quando a sua família se viu impossibilitada de cuidar dela durante alguns dias, ouviu em quase todos os lares da sua região a mesma resposta. Como se fosse uma pestífera, a sua doença provocou sempre a mesma recusa. Apenas o director do Lar de São Domingos dos Fortios lhe mostrou alguma luz na sua atitude sincera e sensível, apesar das dificuldades de espaço da instituição que dirige.
Felizmente a solidariedade aldeã resolveu as coisas de outro modo.
Ainda não há um mês, Deus, em definitivo, cessou por completo o seu sofrimento, as suas dificuldades e as da sua família.
Há sempre seres humanos que nos fazem acreditar na Humanidade e não descrer completamente deste mundo. No exemplo apontado, vemos o director de um lar, a vizinha solidária (D. Armandina) e até o médico (Dr. Serpa Soares) que, na hora da morte de Rosária, soube vencer os muros da burocracia cega do Estado e da insensibilidade de colegas seus.
Esta história poderá ser de proveito e exemplo, aclarando a consciência. Hoje, como há dois mil anos, há gente que é posta na rua porque não há lugar na hospedaria. Mas há sempre estrelas que guiam, grutas que na pobreza se abrem para acolher os excluídos deste mundo em que vivemos, pastores que oferecem o pouco que têm. Façamos parte deste segundo grupo - e concretizemos, com o nosso contributo, uma verdadeira comemoração da Natividade de Jesus de Nazaré.

O OURO DO TEJO

Não existem fronteiras nas duas margens de um rio. Existem margens. Margens só – e água pelo meio. Podemos encontrar símbolos e colá-los à matéria – mas esta continuará sendo apenas o que é e sempre foi: rocha e terra rasgadas e esculpidas por uma corrente.
Todos os rios são, assim, internacionais, mesmo quando sulcam um só país. Internacionais porque sem nacionalidade (ou com todas as nacionalidades). Por mais que os Homens desejem o contrário, nas suas águas não se espelham línguas nem dialectos – e muito menos bandeiras ou linhas administrativas. A sua gramática é outra. Mesmo quando os seres humanos os transformaram em fronteiras, ditas (erradamente) “naturais”.
Creio que tudo isto entenderam os criadores do Parque Natural do Tejo Internacional. Não é possível separar o que a geografia une. Não se trata apenas de uma questão cultural. Os pontos de contacto e de continuidade são imensos – mas ainda assim insuficientes para o estabelecimento de pontes invisíveis e indissolúveis. A água não separa, une. As margens são metades de um mundo que a corrente bravia, precedida por fortes movimentos tectónicos, afastou, mas não separou. Não por acaso, quando um rei português do século XII doou aos Templários a enorme “herdade de Açafa”, soube incluir nela territórios de ambas as margens do Tejo, tanto do sul da actual Beira Baixa, quanto do norte do Alentejo e do que seriam terras de Cedillo, Herrera e Valencia de Alcántara.
A paisagem é a mesma, sulcada pela espinha dorsal do ocidente peninsular, um Tejo hoje amansado pelas barragens que tentam canalizar toda a sua energia (tradicionalmente temível) para as necessidades humanas. Quem se digne subir a um dos miradouros do termo de Herrera (Negrales, vg.), verá de um e de outro lado das águas uma sucessão de montes agrestes, em que o cinzento-acastanhado das rochas se mistura com a vegetação resistente às inclemências do Verão e do Inverno, à escassa pluviosidade, aos devastadores incêndios que por vezes a atacam. Sobreiros, azinheiras, oliveiras, em simbiose com uma infinidade de espécies integráveis na flora de tipo mediterrânico, podem ser olhadas como indícios de uma abundante fauna – também ela adaptada aos rigores do clima e da geografia.
Entre os habitantes que o tempo colocou nestas partes – ou que a ela aportaram subindo o Tejo, provenientes da Fenícia ou doutras partes –, não podemos deixar de realçar uma população humana que, sendo escassa, merece a nossa admiração pela sua capacidade de resistência ao meio e, até, às investidas de quantos procuraram diminuí-la ao longo de séculos ou milénios. Houve sempre barcas a ligar a sua dispersão. Foi essa necessidade de intensificar o contacto que, na época romana, levou estes povos a construírem uma das mais impressionantes obras da engenharia, a ponte de Alcántara, que – segundo consta numa lápide – existirá “enquanto o mundo durar” (crendo nós que a frase se referirá mais ao contacto entre Homens e menos às pedras talhadas que um dia se dispuseram em ponte).
Andar pelas terras de Herrera e de Cedillo é encontrar costumes, cultos e monumentos que reproduzem, surpreendentemente (ou não), os existentes noutras margens do Tejo. Os monumentos megalíticos (as antas de Bodegas, Cerro de la Caldera, Sesmo, etc.) não podem ser entendidos, como viu Jorge de Oliveira, sem uma visão de conjunto que abarque os seus congéneres portugueses. Não se podem compreender rituais cíclicos como a “hoguera del gallo”, “enfariñar” ou o “jueves de compadres”, sem conhecermos o que acontece do outro lado da fronteira. O mesmo acontece com o culto de São Sebastião em terras de Herrera, tão ligado na “Açafa” às ordens militares.
As margens do rio Tejo foram até há poucas décadas locais de exploração de ouro. Já em épocas muito antigas assim era. Hoje o ouro é outro. Está à nossa espera – na água, na terra, nas rochas, na flora e na fauna, nos seres humanos (e na sua memória) que convivem e conviveram com tudo isto. Saibamos nós descobrir e trabalhar, em filigrana espiritual, todo este minério – produzindo riqueza, uma riqueza sempre interior.

(Artigo publicado, em versão castelhana, tal como os dois anteriores de temática raiana, na revista Imagen de Extremadura, publicada em Mérida.)

TRANSFIGURAÇÃO PELA LIBERDADE
(in Imagen de Extremadura, nº 9)

Numa região autónoma de Espanha, como a Extremadura, que não vem construindo a sua identidade a partir da alteridade, mas – como refere Alonso de la Torre – “basándose en una madura y serena revalorización de señas, hábitos y tradiciones que marcan la historia y el presente sin empujar a la ciudadanía al desprecio de lo ajeno para autoafirmarse a partir de lo propio”, a Cultura, nas suas múltiplas dimensões, será sempre sinal de liberdade e de largueza de horizontes. Centro da transformação da Existência em Vida, a actividade espiritual concretizada em actividade cultural será sintoma de um crescimento que, podendo passar por uma ou várias etapas civilizacionais (antropológicas, sociológicas ou políticas), se tornará sempre, caso seja sólido, numa manifestação de modernidade.
O Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo (MEIAC), sediado em Badajoz, pode considerar-se um indício e uma metáfora do desenvolvimento a acontecer na Extremadura espanhola. Seria apenas um armazém de obras de arte se à sua fundação e construção não tivessem presidido princípios filosóficos que se concretizaram numa arquitectura. Os quadros e as esculturas viajam, mudam de lugar – mas os edifícios ficam enquanto memória no espaço. E na cidade do Guadiana – com o castelo muçulmano, com a intrigante catedral de São João Baptista, com a memória do grande pintor Luis de Morales, el divino – essa construção marcará, creio, o futuro, como já marca o presente. Constitui, mesmo, um díptico com o Museo de Arte Romano, em Mérida – este na assunção dos alicerces de uma civilização, aquele no sublinhar de uma modernidade artística, contemporânea, assumidamente livre na capacidade de oferecer ao visitante uma infinita multiplicação de sentidos.
Palimpsesto da História, o MEIAC parece querer assumir o cume de uma subida civilizacional. Se do antigo baluarte do século XVIII (o Fuerte de Pardaleras) pouco mais existe do que uma memória, da anterior Prisión Preventiva y Correccional de Badajoz (de meados dos anos ’50 da centúria passada) há marcas de construção que, de propósito, foram mantidas pelo arquitecto José Antonio Gálea, autor de um projecto que soube ser, ao mesmo tempo, funcionalidade e obra de arte. À guerra sucedeu a prisão; com a inauguração do museu em 1995 a autonomia extremenha soube inverter esse funesto destino do espaço, transfigurando-o e tornando-o fonte de liberdade. Convenhamos que foi uma aposta acertada, um sinal civilizacional dado a uma região e, dessa região, a todo o múltiplo espaço em que se projecta. Fosse eu ecologista e utilizaria os termos “reciclagem” e “reutilização”; adepto como sou de terminologias que transcendam a existência, prefiro a transfiguração, conforme com qualquer demanda artística que se queira séria.
O grande Fernando Pessoa escreveu que devemos amar o nosso quintal não por ser nosso, mas porque é uma parcela do mundo e nele existe. Assim entenderam os promotores do MEIAC. Não se limitaram a uma (legítima) valorização das suas idiossincrasias regionais ou locais. Quiseram juntar às qualidades extremenhas a largueza das da Ibéria e das de toda uma América, por onde se estenderam, desde o século XVI, os falantes das suas várias línguas. Tentaram assim redimir os excessos da conquista – e conseguiram-no.
Se os espaços abertos e ajardinados, a largueza da fenestração, a transfiguração do edificado se apresentam como indícios de uma região que abre os braços ao vizinho Portugal e a todo o mundo hispânico e latino-americano, apresentando-lhes a sua modernidade que nada rejeita de uma positiva contemporaneidade cosmopolita, não deixam de ser simultaneamente metáforas do que no interior das naves de exposição pode ser contemplado e digerido. Tanto na colecção permanente quanto nas exposições temporárias (seja qual for o nosso gosto ou a nossa reacção perante as obras de arte), temos de reconhecer que um princípio a tudo preside: o da liberdade.
No fundo, bem no fundo, todos sabemos que nenhum desenvolvimento se concretizará sem a interacção entre os três vértices de um triângulo: Liberdade – Contemporaneidade – Cosmopolitismo. O MEIAC está em Badajoz para prová-lo.
De um lado terra, do outro lado terra



Desde que o Homem é Homem (ser pensante com capacidades de conceptualização abstracta) que a água foi erigida enquanto mediador simbólico entre os habitantes animados da Terra. E entre todos os meios aquáticos que rodeiam e cruzam essa “mão do mundo” que é a Península Ibérica (como referiu, se não estou em erro, Miguel de Unamuno), logo muito cedo o rio Guadiana – em conjunto com outras artérias que irrigam com o seu sangue a por vezes seca carne hispânica – se constituiu enquanto ponte maternal entre os povos das suas margens ou entre os habitantes do “mare clausum” mediterrânico, os das margens da imensidão atlântica e os do interior da plataforma continental. Só muito mais tarde o grande rio do Sul – “Anas”, “Odiana” ou “Guadiana”, conforme as épocas – foi obrigado a assumir o papel de fronteira entre países que as guerras e as políticas reais e/ou senhoriais dividiram. Não era esse o seu papel. Logo que pôde, inundou as suas margens, submergiu as linhas que só os mapas recordam, diluiu as divisões que separavam os dedos de uma mão que, afinal, com os seus diferentes estatutos e funções, têm como finalidade a reunião (porque só apertada a mão revela toda a sua força).
Tudo isto conheceram sempre os seres humanos que povoaram, ao longo de milénios, as duas margens do Guadiana. No fundo, bem no fundo, os habitantes de Monsaraz, Mourão, Juromenha, Olivença, São Bento da Contenda, Villanueva del Fresno, Cheles, Alconchel ou Villareal (herdeiros de muitos lugares da Lusitânia romana e visigótica e do reino rebelde de Badajoz) souberam sempre que viviam num território unido pela Cultura e pela Geografia. Os contrabandistas dos dois lados tinham consciência, com Miguel Torga, de que de um e de outro lado havia somente terra, de que numa margem e na outra margem existia apenas gente...
Olivença, por exemplo, mudou de mãos há perto de duzentos anos, com todo o seu território municipal. Na prática, apesar de pontes derrubadas e de línguas mescladas, a fronteira não se transportou, deixou somente de existir. Há mapas que o assinalam… Mudou a administração política de uma parte da província de Entre Tejo e Odiana, mas teriam mudado as pessoas e a sua genealogia familiar e cultural, os edifícios e a sua arquitectura, o relevo e a sua orografia? Estas questões fazem hoje, talvez, pouco sentido, quando estamos nos braços duma União Europeia que acabou com os postos aduaneiros e unificou a trocas comerciais. A língua portuguesa floresce do lado extremenho – e ainda bem. Como escreveu um dia o filósofo Agostinho da Silva, quanto mundo seremos quando um dia soubermos instituir uma Comunidade dos Povos de Língua Ibéricas…
O território de Olivença – antigo concelho português que não deixou de o ser, pelo menos na alma, apesar de administrado por representantes de Madrid – está do outro lado do Guadiana, do outro lado do lago artificial chamado “Barragem do Alqueva”. Atravessar as diversas pontes que reduzem a distância entre as duas margens será sempre encontrar uma identidade material depurada. Em nenhuma outra parcela do território peninsular fará talvez tanto sentido a palavra “saudade”. A viagem tem um poder analgésico. Encontramo-nos na fortaleza de Alconchel, nas muralhas e nas torres oliventinas do castelo templário do tempo do rei trovador D. Dinis, no manuelino da igreja de Santa Maria Madalena, no interior barroco da Misericórdia, feito de talha e azulejos com paralelos noutras partes lusas. Visitar o Museu Etnográfico é compreender que dois séculos fizeram muito pouco pela divisão de povos duplos um do outro. A separação – metaforizada durante muito tempo na derrubada “Ponte da Ajuda” – acentuou a saudade, mas não destruiu a identidade, que dispensa separações artificiais do território.
Mais do que visitar mentalmente a memória contida no topónimo “Contienda” – palimpsesto de lutas, de escaramuças, de mortes, de vidas destruídas e sempre reconstruídas – é preciso caminhar em peregrinação até Cheles, onde o fim de mais uma guerra ibérica (a guerra da restauração da independência, que se seguiu à revolta de 1 de Dezembro de 1640 contra o domínio filipino) levou à construção de uma ermida consagrada ao Cristo da Paz, como acto de acção de graças. A paz está agora consolidada – e todos a solidificaremos se nos adentrarmos por um território onde nos veremos sempre, como num espelho múltiplo. Não terá sido, talvez, por acaso que até o martírio cívico de um dos heróis da luta anti-salazarista (Humberto Delgado) foi ocorrer precisamente numa dessas terras onde a fronteira nos une, numa pequena parcela do campo que rodeia Villanueva del Fresno.
Nesta parte da bacia hidrográfica do Guadiana, empresada pelos portugueses para sua subsistência, a água veio cumprir a sua função primordial de elemento simbólico e material de ligação. Submersas as fronteiras, a barragem parece traduzir materialmente uma palavra árabe pouco lembrada, “aldjusûr”. Não apenas açude (“as-sudd”) ou ponte (“al-kantarâ”), mas uma síntese das duas, conserva na sua semântica uma metáfora híbrida: se, por um lado, alarga o poder fertilizador das águas, por outro serve de elemento de ligação entre terras e seres. Assim será sempre a viagem entre as duas partes da raia. Fertilizará que tiver abertura para empreendê-la, para além das estritas necessidades materiais do comércio. Ligará um território humano que no fundo, bem no fundo, nunca deveria ter sido divido.

(Publicado recentemente no nº 8 da revista Imagén de Extremadura, editada em Mérida.)

AUGUSTO RAÍNHO
ou a angústia de representar

O acto de fotografar nasce como analgésico contra a angústia da perda. Tal como, noutros tempos, a pintura ou a escultura e, mais tarde, o cinema (fotografia em movimento). Pouco fiados nas capacidades de retenção da nossa memória cerebral, tentamos encontrar outros meios de preservação da realidade, verbais ou nem tanto. Desencantados, talvez, com o carácter escorregadio das palavras, deixamo-nos seduzir pela imagem, que nos garante, à partida, como a música, uma maior universalidade, em maiores e melhores hipóteses de conservação e de transmissão ao futuro.
Enganamo-nos... Ícone ou metáfora, signo ou alegoria (mesmo involuntários), a fotografia submete-se às regras da representação. Como a escrita, tentando resolver uma angústia, será sempre fonte e núcleo de outra angústia tangente. Queremos repetir por meios mecânicos ou electrónicos uma existência passada - sabendo de antemão que ela nos será devolvida apenas como fragmento, como relíquia ou como fantasma. Já Roland Barthes, num dos seus melhores livros (quiçá mesmo o melhor, A Câmara Clara) o afirmou...
Para fugir a esta angústia representativa (na fotografia, como em qualquer outra forma de expressão verbal ou não-verbal), parece só existir uma saída: a destruição da mimésis, concretizada na transfiguração da realidade, na criação de realidades alternativas. Nasce então a Arte.

Olhar e Abraçar Castelo de Vide, livro de fotografias de Augusto Raínho, debruçado sobre a terra em que nasceu, revela tudo isto que vimos sugerindo. Se, por um lado, responde ao nobre dever de conservação da memória comunitária (festividades, rostos, hábitos, paisagens, dramas até...), por outro manifesta consciência de que o registo, mesmo fotográfico, é sempre parcialmente inviável.
Ao contemplarmos as imagens (belíssimas, sem excepção), guardamos no cérebro uma soma de pontos luminosos, centrais ou excêntricos às realidades representadas e conservadas. Mas, como informa o título do álbum, não devemos contentar-nos com essas visões. Devemos sentir, com o autor (os sentimentos são aí mediadores privilegiados entre o "leitor" e a "obra lida"), o abraço apertado dado ao real humano e físico representados. Há olhos que nos interpelam, ocultações que nos inquietam, movimentos que nos franqueiam entrada para outros universos, angústias que nos confrontam.
Angústia outra é a de Augusto Raínho quando, subrepticiamente, manifesta que nem os olhares nem os abraços o satisfazem. Por isso - para além do registo e da interpretação de Castelo de Vide e dos seus habitantes - teve necessidade de utilizar a câmara e os elementos disponíveis para apresentar uma imagem modificada da realidade, introduzindo-lhe a sua subjectividade (quase filosófica) para a tornar obra de Arte.
Terá resolvido a angústia inerente à impossível representação/reprodução do mundo? Nunca os analgésicos ou os anestésicos fizeram desaparecer uma dor. Por isso, os artistas não param de escrever, de compor, de pintar, de fotografar - em busca de uma serenidade que nunca alcançarão, mas de que necessitam como pão para a boca.

(Olhar e Abraçar Castelo de Vide, de Augusto Raínho, ed. Fundação Nossa Senhora da Esperança, 2007)

Tempo do Advento


Fui buscar a minha filha ao infantário. Havia, por todos os espaços, enfeites de Natal. Fitei paredes e recantos. Barbas e mais barbas, árvores fingidas – mas do eixo e justificação da festa da Natividade, nem sombras. Do Menino Jesus, que tanto agradaria aos petizes (um entre iguais, pensariam...), nem vestígios. À entrada da sala da Sofia vi um conjunto de anjos, cada um com o nome de uma criança. Foi fraca compensação.
O cenário repete-se um pouco por todo o lado. Deus Menino é sinal de escândalo. A sua pobreza, fonte de fortaleza, não se encaixa na sociedade de consumo, onde todos somos vítimas de um anti-Cristo chamado “Economia”, que nos quer fracos e alienados. É preciso esconder (manipular, ridicularizar até) essa frágil criança que (se) tornou Deus presente. A ameaça é muito perigosa para o comércio do mundo.
Entrei em casa irritado. Tentei esbater esse mau sentimento com a leitura de um livro do poeta congolês Alain Mabanckou, Tant que les arbres s’ enracineront dans la terre. As suas palavras vieram no entanto ao encontro do que não me saía da cabeça. Traduzo: “eis que veio o tempo dos risos hipócritas / o tempo da mediocridade servida com todos os molhos / o tempo em que o homem já não descende do macaco / mas a ele retorna / o tempo dos vendedores ambulantes de quimeras / o tempo dos aprendizes de feiticeiro // eis que veio o reino dos homens vestidos de mentira / os novos Sísifos transportando o rancor / como insectos apocalípticos / condenados a rebolar trampa até à margem seguinte”. O bálsamo deste poeta vem da natureza (“eis contudo a montanha altiva / orgulhosa da sua altura // eis a montanha da alma / silenciosa guardiã da imensidade // eis a montanha que se cala há séculos / deseja apenas uma nesga de céu azul / erva sempre verde / orvalho matinal / um rebanho a pastar nas suas cercanias / pássaros de todas as espécies / a cantar”). As imagens de despojamento seduziram-me – sobretudo essa “montanha da alma”, tão ligada à espiritualidade de São João da Cruz – mas não me satisfizeram completamente.


*


Dia santo. Conforme a tradição recebida dos antepassados serranos, pus-me a preparar o presépio. Não tinha musgos, nem me dispus a comprá-los na florista. Os musgos precisam de pedras – e as que existem nesta minha colina de exílio não prestam para o seu crescimento. Reciclei a caixa dum brinquedo, oferecido à Sofia no dia do seu baptizado, para montar o altar doméstico ao Deus Menino. Peguei em cavacos de azinho e ramos de sobreira para criar um cenário plausível. (Cheira a Serra de São Mamede... Anestesia a distância...) Dispus as peças, este ano de marfinite, bonitas mas sem arte, resistentes contudo aos possíveis avanços de uma bebé activa (as de barro ficaram a espreitar no móvel). Terminado o trabalho, dei por mim reconciliado. Pelo menos aqui tentamos que as coisas sejam de outra maneira.
Folheando livros na biblioteca, veio ao meu encontro um velho conhecido, Antonio Colinas. Involuntariamente quase, pus-me a traduzir um poema seu que – talvez sem querer – me desejou um tempo do Advento tranquilo. Com a mesma intenção aqui deixo. Desejo-vos dias felizes “Com o Deus escondido”:
Uma mulher e um homem ardem no seu silêncio. / Que faze-mos tu e eu / aqui, nesta penumbra? // Tu escutas o meu silêncio / e eu escuto o teu, / e até parece que esquecemos / essoutro silêncio deste lugar sagrado / pelo qual estamos aqui, em princípio, / sem sequer sabermos para quê. / Talvez seja por esta ignorância, / pela qual decidimos ir cerrando os lábios, / e cerramos os olhos como se / nada nos importassem as nossas vidas e o mundo. // Uma mulher e um homem ardem no seu silêncio, / buscam no seu interior / o que não encontram fora: / o escondido deus, o deus desconhecido, / esse ser, ou esse espírito ou silêncio, / que se cala mais do que ninguém há muitos séculos? / Ou fala-nos oscilando na chama do altar? // E, no entanto, há entre tu e eu / uma gozosa atmosfera, / pois algo vem e vai entre os nossos corpos, / da tua mente para a minha mente, / dos teus olhos fechados para os meus olhos fechados, / do teu silêncio para o meu silêncio. // Talvez o que flui de maneira tão doce / seja essoutro silêncio / do deus desconhecido que se esconde, / mas que, por vezes (é certo!), nos envolve / como fogo, pois vai e vem como música, / recorda-nos e prova-nos / que estar contigo aqui, / que viver é, simplesmente, um milagre.

ENCONTRO

Não existe ser humano que não recorde um encontro feliz, porque inesperado. Numa das minhas deambulações bibliófilas pelos alfarrabistas da capital, tive há uns tempos um desses momentos. Esperaria encontrar de tudo ou toda a gente naquele espaço discreto, como que enxertado numa das mais belas ruas de Lisboa. Menos ele.
Enquanto, entre as mãos, limpava o pó acumulado sobre a capa do volume cinzento, com moldura azul e vermelha, era já grande a minha satisfação. Tinha a manhã ganha, pois há muito procurava aquela célula quase esquecida de um amigo que guardo no peito. Comecei então a folhear as 72 páginas desse discreto livro de poemas intitulado Cio, publicado por Carlos Garcia de Castro em 1955.
A surpresa do encontro (encontrar o livro de um autor, há muito procurado, é encontrá-lo a ele, embora sem o calor do abraço muscular...) não ficaria por aqui. Ao levantar a capa, li com emoção uma dedicatória:
Ao / Manuel d’ Assunção, com o / abraço da melhor amizade e admi- / ração, oferece o / Carlos Garcia de Castro / Lx. Março. 1956
Era-me conhecida a amizade que ligou o poeta portalegrense ao grande pintor surrealista e abstraccionista D’ Assumpção. Saíram da pena do autor d’ Os Lagóias e os Estrangeiros algumas das melhores páginas que até hoje se escreveram sobre o artista, considerações e reflexões que foram aos alicerces da sua obra e da sua personalidade artística. Bastará lermos os textos publicados em catálogos, em revistas ou no Fanal d’ O Distrito de Portalegre (nº 1, 19/05/2000). A “amizade” e a “admiração” por D’ Assumpção, manifestadas na dedicatória, eram sinceras, portanto. Quem conhece Carlos Garcia de Castro (homem de qualidade, frontal e vertical em todas as horas), outra coisa não esperaria.
A chegada à minha repartida biblioteca deste exemplar do Cio foi, portanto, fonte de emoção. Juntei num único objecto a presença de um poeta que admiro como escritor e como ser humano à de um pintor cuja obra faz parte das minhas referências artísticas. Há dias e encontros felizes...
Carlos Garcia de Castro considera hoje que este seu primeiro livro é sobretudo “um documento poético que não tem nada de particular, (...) resultante de uma envolvência de gostos, para aquela época em que [foi] educado, ilustrando o tempo dos dois primeiros anos da faculdade” (assim o declarou em entrevista ao suplemento Fanal, de 22/2/2002). Sendo, na verdade, um produto poético digno (em que, no entanto, vemos apenas florescer a intensidade verbal que caracteriza a obra do poeta), revela no seu todo uma poesia que ainda se lê com interesse, situada, já naquele tempo, a anos-luz dos pilritos dados a lume por certos versejadores. Revelador é, por exemplo, o poema “Deslumbramento” (reflexão surrealizante sobre “O Último Bailado”, de D´Assumpção, obra então exposta no Café Plátano portalegrense, hoje no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian):
Uma colcha fria, / de mil pedrarias indiferentes, / o livro impávido da noite, / onde crepita o nada das aragens / e o roçagar das ramagens / a estremecerem cetim. // [...] // Nós temos a Certeza e a Visão - / duma absoluta-relativa dó: / um astro-rei no céu, / e as barbas dum gigante numa árvore-anã! // E casas, montes, rios e valados, / e sonhos, alegrias, sofrimentos - / a dor! as brumas e o sol, / místicos abraços criminosos... // [...] // Ternos, duvidosos, dualistas, / os deuses que nós somos: / fica revibrante a vida que retemos, / e damos ao que é bruto / o mito que abrangemos sem o ter. [...]
Nisto tudo, há uma memória artística e humana que acalenta. Um acto de amizade (um livro oferecido por um amigo, onde um poema reflecte sobre a obra do amigo a quem é dedicado) torna-se presença material. Como escreve Garcia de Castro, “Do que mais custa sermos só memória / são os afectos dela então esquecidos / que só a morte leva para os deixar, / sem nunca mais quem morre os ter consigo”. Que a memória permaneça, digna, desta ou doutra forma.

ANTÓNIO SALVADO

Podemos depor a favor de um escritor por interesse, por gratidão, por amizade ou por justiça. Há quem louve um escritor porque está interessado no seu apoio (editorial, social, etc.). Há quem o elogie porque lhe deve favores ou sente ser sua obrigação de amigo escrever ditirambos. Há, ainda, quem deponha de forma positiva porque acha justo fazê-lo – sem esperar nada em troca, apenas porque o seu depoimento se impõe não como dever pessoal, mas como dever cívico de testemunho.
É uma questão de justiça escrever este depoimento sobre António Salvado, ainda que sejam palavras curtas e despretensiosas. Conheço-o há mais de dez anos (sem nunca nos termos encontrado fisicamente) – tempo breve, é certo, mas para mim suficiente no aquilatar da sua qualidade como poeta, como tradutor, como ensaísta, como divulgador de Cultura e – sobretudo – como ser humano. Poderia registar aqui a minha leitura da sua poesia, alicerçada – em parte – na investigação/transfiguração do classicismo, levada a cabo por uma geração com raízes no 2º Modernismo e fertilizada por alguns dos princípios defendidos por revistas tão ecuménicas quanto Árvore e Távola Redonda. Outros o farão melhor do que eu. Poderia ainda referir-me com demora ao papel de António Salvado como organizador de antologias, como director de revistas culturais (lembro os despretensiosos, mas importantes, cadernos Sirgo) e como importante tradutor e divulgador em Portugal de vários autores de língua castelhana (Claudio Rodríguez ou Ricardo Paseyro, por exemplo). Prefiro contudo recordar a postura cívica do autor de Jardim do Paço, vertical e intransigente na defesa da Justiça e da rectidão.
Há um episódio que, para mim, exemplifica bem a craveira da sua figura cívica e literária. Quando há alguns anos um semanário nacional publicou uma reportagem sobre a face humana de José Régio, foram reproduzidas algumas declarações que punham em causa a boa memória desse homem exemplar que foi o autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos. Pois, nessa altura, António Salvado foi dos primeiros a alertar para a necessidade de um desagravo público à figura do escritor e, assim, assinou comigo e com mais onze escritores um texto que, depois, foi divulgado por vários órgãos de imprensa. Mas não ficou por aqui. Quando, em Portalegre, Nicolau Saião, João Garção e o autor destas linhas foram alvo de ataques pessoais – porque ousaram contestar quem pusera em causa Reis Pereira, como professor –, desde a primeira hora o poeta albicastrense se pôs ao seu lado, apoiando-os e dispondo-se até a testemunhar em tribunal, caso fosse necessário. Durante os longos anos do processo que conduziu à condenação de quem escrevera os textos que nos difamaram, sempre António Salvado (com vários escritores e personalidades, nomeadamente José do Carmo Francisco, Carlos Garcia de Castro, Henrique Madeira e Matilde Rosa Araújo) se interessou pelo caso e pela mágoa dos ofendidos – ao contrário de outros cujo apoio era uma obrigação ética, mas cobarde ou interesseiramente borregaram. Salvado, não. Nunca regateou uma palavra amiga, nunca escondeu a sua indignação, nunca tentou branquear atitudes e – sobretudo – nunca desmentiu a sua postura cívica de Homem vertical.
Para alguns, esta atitude valerá pouco. Será até considerada marginal quando se olha para um escritor que nos vem inundando (no melhor sentido da palavra) com a sua poesia. Para mim representa muito, pois sou daqueles que – apesar de acreditarem que a Poesia não se escreve com bons sentimentos – continuam a pensar que a Ética e a Literatura devem ser duas faces da mesma moeda.
BAIRRISTAS E FORASTEIROS

Lembro-me como se fosse hoje. Corria o ano de 92. Escrevia eu no Notícias de Elvas. Num debate promovido por este jornal, fôra convidado um moderador qualificado. Feita a introdução necessária ao tema, logo um cavalheiro se levantou da assistência, pedindo a palavra. Quando todos esperávamos uma intervenção suscitadora, o dito cidadão pronunciou: “Com tanta gente boa que há em Elvas, logo havia de vir um gajo de fora dizer das suas!” Assim mesmo. Com a delicadeza de um elefante numa loja de loiça (perdoem-me os paquidermes...).
Há gente assim. Não olham para a qualidade dos seres humanos, para a sua experiência e verticalidade (que consideram, quiçá, incómodas), para as suas capacidades ou para os seus atributos – mas apenas para a certidão de nascimento (verdadeira ou suposta) que, tanto quanto sabemos, não constitui atestado fiável nem de inteligência nem de competência. Certo bairrismo tem destas coisas: há gente que prefere vinho carrascão, só porque nasceu dumas vides enfezadas lá da terra, e rejeita um néctar divino, só porque a cepa rebentou em território que não consegue alcançar com a vista. Esquecem quase sempre um princípio universal: podemos nascer em qualquer canto, até num comboio ou numa avioneta; a “pátria”, contudo, é um assunto do coração, crescendo da adesão espiritual a um lugar, tantas vezes diferente daquele em que lançámos o primeiro grito.
O bairrismo vale a pena quando defende com abertura de espírito e frontalidade crítica as mais profundas aspirações duma colectividade (o seu verdadeiro desenvolvimento mental, cultural, cívico e económico). É manifestação espúria duma sociedade fechada e ignorante sempre que revela uma bacoca miopia, embebida em estupidez, quando defende o indefensável, quando promove a mediocridade local só porque é local, quando recusa a crítica legítima, quando é veículo de reprodução social na promoção do imobilismo e, frequentemente, do caciquismo nas suas expressões mais perigosas e/ou descaradas.

Exemplos contrários também existem. Há habitantes de aldeias, de vilas, de cidades e de países que vão dando bordoada na qualidade dos seus naturais, mesmo que seja notória e reconhecida fora de portas (sobretudo quando esses naturais vêm das camadas desfavorecidas, pois ameaçam a pirâmide social) – mas não hesitam em bajular quem venha de fora, mesmo que seja um burlão ou um vigarista, ou apenas um chico-esperto que habilmente manipula a hospitalidade local.
Por isto e por muito mais escrevo sem hesitações: nem forasteiros nem indígenas. Melhor dizendo: para nada nos deve interessar o bilhete de identidade de uma cidadã ou de um cidadão, desde que mostre verticalidade, qualidade e competência; igual desprezo devemos votar à naturalidade de quem se apresenta na sua mediocridade. Prezemos quanto de bom nasça nas nossas terras, mas com o mesmo amor acarinhemos os frutos saborosos vindos do resto do mundo. Com Marco Aurélio, defendo que “pouco importa viver aqui ou ali se em toda a parte tivermos a ideia que este mundo é uma cidade”. Ninguém vive plenamente sem raízes e sem uma profunda religação ao espaço que ocupa no mundo e à sua memória integral (positiva ou negativa). Mas não deixo de concordar com Pascal: “Não é do espaço que eu devo esperar a minha dignidade, mas do acerto do meu pensamento. (...) pelo espaço, o universo abarca-me e submerge-me como um ponto. Pelo pensamento, abarco-o eu.

DINIS MACHADO

O autor de O que diz Molero faz hoje setenta e sete anos, no mesmo dia em que se comemoram os trinta anos dessa obra única na literatura contemporânea de língua portuguesa. “Estrada do Alicerce” regista a admiração pelo autor e pelas suas obras reproduzindo um texto publicado originalmente num suplemento cultural editado em Portalegre, misto de crónica, ensaio e poesia.


SEIS QUADROS
DE UMA EXPOSIÇÃO

Quadro número um

(Passa uma bola por cima da minha cabeça, na direcção do mar. É uma bola cor de canário, cai na massa verde. Um octogenário saudável, que está a molhar os calções e a chapinhar a barriga, de cócoras, mete a manápula debaixo da esfera rutilante, vira-se para a praia, dá dois passos, atira a bola ao ar – e catapumba, um disparo com a esquerda que nem o Puskas, o Tostão, o Teixeira Gasogénio, ou o Araújo, com o pé de dentro. A rutilante esfera sobe, cai a pique na rocha, numa saliência e falece: pfff. Os donos da bola, aí uns doze, e os seus apoiantes, aí uns trinta – que são aqueles que dão um chutinho de passagem, quando vão molhar os pés – ficam a olhar para aquela desgraça amarela, que foi uma bola. Um dos donos da antiga bola, e agora apenas uma tripa miserável, diz: “O velho rebentou a bola. Lixou-nos o domingo”.)

Quadro número dois

Este parêntesis inicial pretende dizer exactamente o que parece. Pode-se achar que é mais do que estúpido andarem uns gaforinos de várias idades e extracções, a darem pontapés numa bola com desatino incompreensível. Mas isso seria simplificar o que não é simples. Talvez não haja nada tão disparatadamente lúdico como o futebol. Disparatadamente?

Quadro número três
Podia acrescentar garantias de qualidade, de gente com arcaboiço, miolos estruturados, primores palavrosos, além de outras habilidades e funduras, desde o Lins do Rego ao Camus, sem esquecer os portugueses que praticam, ou praticaram, o futebol de pé, ou de tecla, com o afã de pagar, ou de ver os outros jogar. Talvez eu não ande longe da verdade se disser que me saiu um dia um drible (eu, jogador de meia tigela) a fazer-me igual ao Bobby Charlton, como às vezes escrevo umas letras que nem (mas passa-me depressa) o Fedor Dostoiewsky.
A grande euforia de qualquer arte espontânea (chamemos-lhe assim por razões de abertura) como o futebol, é que está a fazer-se no momento, ainda não é a sinfonia, o guacho, o livro, o filme, a peça que se fez a seu tempo. É efémero como o bailado, decide-se no apuro e na linguagem do corpo, mas tem uma carga quase infinita de rumos imprevisíveis e ocasionais. A Margot Fonteyn, de um modo geral não falhava o movimento – mas o Eusébio, às vezes, a dois metros da rede, chutava sobre a barra. Impossivelmente. O futebol é impreciso e inesperado, cheio de mortalidade – embora já seja, hoje, também espectáculo de rever, cassete eterna, golo que nunca mais se apaga, de mostrar aos amigos e perdurar na memória. A televisão trata disso.

Quadro número quatro
Gostaria de não se petulante ou maniente (como se diz em conversa de rua) ao sugerir que o jogador sem adjectivos, não desmontável, com os pés voltados para todo o lado, a sujeitar os adversários e a bola à sua qualidade inconsciente, é tão difícil de explicar como outros mistérios: a luz de Rembrandt, por exemplo. E já não é tecnicamente saber como se faz – mas sim o fenómeno surpreendente de ter sido feito. O Zubieta que eu vi, o Bauer que eu não vi (mas contaram-me); os grandes patrões como o Obdúlio Varela, que eu também não vi, ou o Passos, ou o Humberto Coelho, que eu vi; os golos do Jesus Correia, sem ângulo, da linha final; a maneira como o Arsénio ou o Vasques nasciam na área; os pés de fazer tudo do Hernani e do Jaime Graça; o Matateu, que tinha o contorno, a deambulação e o solto do tigre; os jogadores mananciais, a respirar futebol por todos os poros e articulações, mesmo em tardes funestas, de tudo sair mal: o Germano, por exemplo, que saiu da doença pulmonar para o esplendor, magnético, a chamar a bola e a dar a bola, completo e arrastado, de uma lentidão perfeita. E os tiros do Travassos, a quarenta metros, com a bola a entrar (depois do arco e do silvo que fazia) ao canto, sempre. E o guarda-redes a colaborar com o seu voo eterno, atrasado e fotogênico. Os técnicos da bola sabem: os guarda-redes chegam sempre lá, mas, às vezes, a bola já passou.
(Os guarda-redes: os calmiças, com as suas tenazes: o Carlos Gomes, o Eizaguirre, o Banks e, dizem, o Yachine. E os pequenos felinos, a cuspir nas mãos, a sair do risco como quem lhe pisa o rabo: a Azevedo ou o Bento, para ficarmos entre nós.)
A verdade é que a inclinação súbita, autoplagiada, como o Garrincha saía pela direita, não vem no manual do soccer. Por isso o respectivo back não encontrava leitura. Nem o Pelé, a tabelar a bola nas pernas dos defesas. Nem o jeito e o balanço do Zarra, do Águas ou do Ian Rush a meter a testa com batimento e técnicas diferentes. O cheiro, a adivinhação e o timing são o jogador. Yazalde estava de costas – e voltava-se para fazer o golo: o golo já ia quase feito na maneira de rodar o corpo, o pé e a bola, tinham encontro marcado – o futebol tem essa triunfante fatalidade.

Quadro número cinco
(E eu: uns toques na bola, que é musculante e medicinal, e atrasa a doença, desde que não seja atropelamento. Na praia: uma tarde estive a chutar à baliza do Dores, com as toalhas a fazer de postes. Não sou o Di Stefano, como um amigo que tenho que faz umas borradelas, não é o Goya. Mas ninguém é Di Stefano. E ninguém é Goya. A não serem eles.)

Quadro número seis
E ainda ficam por escrever linhas pertinentes sobre a sociologia do futebol que, hoje, tem que ver com tudo – e não passa ao lado seja do que for. Nem falei das máquinas: a Hungria, o Real Madrid, o Benfica ou o Liverpool, o futebol de motor.
Amigos meus, dados a amassar o bolo ácido da escrita, têm um fraco por este título: “A angústia do guarda-redes antes do ‘penalty’”. Existe.
O que esta frase tem de símbolo e de signo, o jogo de ideias e de suores frios que faz circular, nem sequer comento. Fica para colóquio.

(in Fanal, nº 26, 19.07.2002; foto de Augusto Cabrita)