Nicolau Saião

CONTRA OS PACTOS DE OMERTÁ, CORAGEM E BOM SENSO

«É mais fácil contratar gangsters do que ir a tribunal», declarou Marinho Pinto, Bastonário da Ordem dos Advogados (dos jornais)

O Bastonário Marinho Pinto, a meu ver, possui duas características de verdadeiro homem de bem - coragem e bom senso.
Vou explicitar, ainda que sucintamente e com vossa licença, estas duas afirmações:
- coragem porque num universo social em que certos membros de topo do Sistema Judicial se julgam acima de qualquer crítica (recorde-se o verdadeiro "pacto de omertá", para que MP não desse certas opiniões em público, referido pelo sindicalista líder dos magistrados) o Bastonário tem a lucidez para perceber o estado de revolta e de indignação que vai nos cidadãos, em função da desqualificação ética, do desleixo e da incapacidade do Sistema Judicial em corresponder a uma Justiça equânime.
Bom senso, porque num quadro destes o verdadeiro bom-senso não é calar, não é ser "politicamente correcto" ou ceder a corporativismos, não ser cínico ou oportunista para manter uma aparente bonomia - e sim dizer a verdade doa a quem doer, pois os direitos dos cidadãos estão acima dos interesses duma clique que se apoderou dos cinzentos corredores dos Tribunais.
A nudez forte da verdade é que é legítima, não o manto diáfano e aparentemente manso da fantasia.
Pois, na verdade, e como já se tem afirmado em textos apropriados, "O Sistema Judicial é o cancro que está a destruir a Democracia portuguesa".
Ou o que resta dela.

in PORTUGAL DIÁRIO

Álvaro Valverde

fala sobre o seu mais recente livro...
e não só.
(Brevemente publicaremos aqui poemas de AV traduzidos para português.)
José do Carmo Francisco

Os labirintos do esquecimento
(para uma leitura de De sombras y sombreros olvidados)


Os poemas deste livro de Marta López Vilar que recebeu o Prémio Blas de Otero de Poesia oscilam a sua respiração poética entre a Arte e a Natureza.
Alguns poemas denunciam no seu articulado um convívio permanente com a literatura. Por exemplo: «Como siempre, se acostumbra la luz / hasta muy tarde. / También yo, que espero tu voz / com el dolor cumplido / y un poema de Montale / Nel fumo / a punto de decirme donde estás.»
Entre a vida chamada «real» e a vida povoada por símbolos, imagens e metáforas, o poema testemunha uma expectativa: «Hace tiempo que abandonamos / la pátria de los símbolos / Ni noches ni poemas. / Sólo el olvido / y la certeza de que no estarás / al otro lado de la cama.»
Depois do encontro vem o esquecimento em «El después»: «Entre tu y yo la vida se ha perdido
O segundo capítulo instala os poemas na Natureza. Vejamos «Los motivos de la aurora»: «Como si hubiera tenido tu cuerpo / acorralado entre la espuma / deambula la luz. / Puedo escribir sus pasos / sus cuchillos, hogueras, caracolas…»
Mas instala não só os poemas mas também os protagonistas como em «Víctimas de la aurora»: «?Qué esperamos tú y yo / en esta esquina helada de la aurora? / Todos los encuentros ya llegaran / Ahora, palomas muertas y las palabras / contemplando todos nuestros cuerpos.» Subtilmente a autora liga as duas realidades (Arte e Natureza) num poema: «Es la aurora quien nos observa com los cien / ojos de Argos, quien recorre / uno a uno tus cuerpos fatigados y dormidos / tu brillo constelado entre la cama / Dentro de ti se despierta un cauce / de olvido y de memoria / del que yo bebería cada amanecer / si no durmieras.» Refiro subtilmente porque a autora conjuga com toda a naturalidade uma realidade geográfica («aurora») com um valor cultural que radica na mitologia grega («Argos») e no seu conhecimento.
De novo a Arte surge num conjunto de poemas a partir de motivos poéticos (Carles Riba, Jorge Luís Borges, Lizardi e Stratos Marino/Georgios Seferis) e a Natureza a partir de memórias de cidades como Granada e Atenas. A primeira porque é uma cidade repleta «de fuentes y de flores»; a segunda porque há cidades necessárias para apagar a obscuridade: «Al igual de los dioses, hay ciudades necesarias / para borrar lo oscuro / la tiniebla poderosa de la palabra rota / o esse no querer despertar outra vez / de la caverna del olvido y de la muerte.»
Um dos problemas que se colocam à escrita (e à leitura) dos poemas de alguém que domina a história e a teoria da literatura, os conceitos e os meios de tradução poéticas de várias línguas, é o perigo real de haver um excesso de cultura, um luxo verbal, uma certa ostentação. Os poemas deste livro desviam-se convictamente desse perigo. Bastam pequenas citações de um poema para se perceber a capacidade da autora para surpreender os leitores com versos inesperados, insólitos e felizes.
Vejamos quatro curtas citações de um poema intitulado «Apuntes sobre tema de Noviembre»:
«Qué lluvia, qué amor de paraguas tan extraño
Cruzo la madrugada com nosotros dentro
Para que nunca nos salvara.
»

«Recuerdo que no estabas o que nunca habías llegado

«Noviembre. Tú buscabas la muerte como quien explica
la llegada de un tren vacio desde la lejanía del invierno


«Morir o vivir / forman parte de la misma mentira. /
Cada dolor tiene su ángel hermoso / custodiando los cuchillos


Entre o precário ostensivo do Amor e o inevitável misterioso da Morte, o poema de Marta López Vilar lembra que só se pode olhar para o esquecimento com prudência quando caminhamos nos seus enormes labirintos.
Vejamos o poema «Las sombras y los olvidos»:
«Ni el amor ni la muerte a ti me une / solo la desolación de marcharnos / sin cordura hacia el olvido / yo no regresar nunca y no saber / qué hemos vivido ni com quién

(Editora: Ediciones Amargord, Capa: René Magritte, Foto: Luiz Pablo Nuñez, Prefácio: José Cereijo)
DiVersos 14

Saiu o número 14 da DiVersos, revista de poesia e de tradução. Lançado na passada quinta-feira na Livraria Italiana (Rua do Salitre, Lisboa), com intervenções do coordenador (José Carlos Marques), de Gonçalo M. Tavares e dos poetas Francesca Tini Brunozzi e Tiziano Fratus. Inteligente e oportuna a apresentação do autor de Investigações. Novalis - com penetração pelos domínios da relação entre a poesia e a violência, com relevo dado à capacidade purificadora da poesia, que não teme agarrar em palavras "sujas" ou "porcas" para lhes dar novo brilho num texto transfigurador.
A presente edição destaca quatro poetas italianos da nova geração, integrados no grupo Torino Poesia: para além dos presentes na sessão de divulgação, Valentina Diana e um muitíssimo interessante Luca Ragagnin. Para além deles, temos traduções de autores estrangeiros (Alain Grandbois, Alfredo Pérez Alencart, Antonio Colinas, Gonzalo Navaza, Robert Penn Warren e Vera Pavlova) e originais de alguns portugueses (Amadeu Baptista, Francisco Vinhas, Jorge Vilhena Mesquita, Maria Azenha, Norberto do Vale Cardoso e Sónia Oliveira).
De Renato Suttana, poeta brasileiro nascido em 1966, a revista oferece-nos uma belíssima série de sonetos intitulada "Frutos". A ela pertence o texto que aqui divulgamos:

II

Maçãs: não vos cantei como devia,
quando, lento de espera e pensamento,
me dispersei entre os sinais do dia,
a procurar um rastro no amplo vento.

Não me aqueci ao sol que em vós havia,
nem de ser vosso espelho tive o intento,
bastando-me a penumbra da porfia
e o jogo sem sentido do momento.

Indiferente ao que de vós o imenso
incêndio do verão testemunhava,
sobre o meu olho pávido suspenso,

busquei na sombra a sombra em que se dava
a comédia imprecisa do que penso,
onde o meu sonho em neutro se inflamava.
Nicolau Saião (texto)
João Ribeirinho Leal (fotos)


ROSTOS PARA UM MUNDO


Desde há milénios que o Homem, sem cessar, pergunta aos arcanos maiores: quem somos, donde viemos, para onde vamos? Porque se o princípio do Mundo foi ruído e tempestade, a seguir começou a ser interrogação e memória. E o Homem no afã de reconhecer o seu rosto busca-se através das Idades.Qual o rosto do Homem? Qual o rosto humilde ou senhoril pelo qual o Homem se pode reconhecer? A História do Mundo, na verdade, é a história da procura – umas vezes desesperada, outras vezes esperançosa – com que o Homem ergue o signo da sua presença completa.


O espelho da Humanidade é o viver quotidiano. Mas por dentro do quotidiano há imagens cuja origem urge determinar. Pois só assim se compreenderá o mistério que todo o momento, todo o minuto, seja de trabalho ou de festa, de contentamento ou de melancolia, transporta consigo.


Homem significa permanência. A criança, o velho, o adolescente, são sinais erguidos na vasta correnteza da vida. A paisagem é ou pode ser uma habitação esparsa, não contida, propagando-se no mundo como o vozear da multidão – ou a serenidade de alguém que está só. Os detalhes também são permanência: por eles nos guiamos para reconhecer o segredo da existência. E por isso se diz que tudo conta, assim como numa vida humana nenhum minuto se desbaratou. Porque na vida humana tudo o que se cria se transforma.


O rosto do mundo está por vezes repleto de amargura. Devemos saber que se a vida tem uma parte de abnegação, o peso dos sacrifícios não deve contudo manchar os múltiplos vértices com que o Homem pontua a sua caminhada. Por isso devemos perguntar-nos: aparentemente semelhantes, as notas da sinfonia vital diferenciam-se por que timbre? Se nos sentimos distantes do conhecimento que se procura, da realidade que se quer atingir, é necessário ter a coragem de nos interrogarmos conscientemente, de conscientemente interrogarmos o mundo que nos cerca e em que nos inserimos.


A vida, a morte, o medo, a alegria, o sofrimento. Temas maiores para o verdadeiro rosto do Homem, para o autêntico rosto do Mundo. O Mundo e o Homem são realidades absolutamente ligadas, mesmo quando tal parece não se verificar. O que os liga é o génio de uns poucos, o talento de mais alguns, a interessada solidariedade de muitos mais. É importante que pouco a pouco esta corrente desenvolva a sua robustez através do que de mais nobre, mais harmonioso se criou através dos séculos.O passado, quer o queiramos ou não, liga-se ao futuro pelo presente. Em qualquer lugar da Terra foi assim. As imagens menos nítidas, mais arbitrárias em aparência tornam-se compreensíveis se a elas ligarmos o sinal do Homem, o seu rosto luminoso. Porque o Mundo existe. E o Homem existe. E existe a Terra, o firmamento, tudo o que está ou pode vir a estar ao alcance do nosso deslumbramento.


Que mundo amanhã?



Nota – A propósito, ou sublinhando, a exposição “Cem Rostos do Alentejo”, que esteve patente em Gáfete (distrito de Portalegre) é da autoria do Prof. João Ribeirinho Leal. São rostos daquela localidade do Alentejo profundo – mas podiam ser, creio, de uma irmã e semelhante de qualquer outra parte.


A totalidade dos rostos pode ser visitada aqui.

A leitura de José do Carmo Francisco de...


Gloria victis
de Carlos Garcia de Castro


Sexto livro do poeta que se estreou em 1955 com Cio, é irónico o subtítulo: «Não-poemas». Não-poemas (nesse sentido) eram também os poemas de Cesário Verde que foi o grande mestre de Álvaro de Campos e de todos nós.
O ponto de partida é a idade cronológica do poeta: «A minha idade é já de senador. / Classicamente quer dizer sou velho». Essa idade é inserida no espaço da casa: «Quando à noitinha vou ao nosso quarto / de algumas vezes sou eu quem abre a cama.» Mas também no espaço da cidade: «Escrever é vício, amar é condição. / Não é com versos que se prega um prego / nem é com versos que o amor se faz. / Fico sentado no canto da cozinha. / Vou lá para dentro, aqui não faço nada.» E também na memória do Liceu: «Tínhamos medo de pensar com arte / e em quase nada a vida se aprendia. / Bastava uma janela mais acesa / para a noite logo ser uma aventura.» Essa memória choca com a realidade de hoje: «Sei lá quem foi Romeu e Julieta! / O que é que interessa se eu não sei quem são? / Fico marado à noite, eu quero é bares / o mais são gajas a fazer linguado / por tanto tempo que se deixam vir. / Mas não me fico só por marmeladas. / A gente ter um sonho? Não percebo. / A gente sonha mas é quando dorme.»
Entre o precário do amor («Os netos são pavor ou são saudade») e o inevitável da morte («Não me convinha se morresse agora») fica a memória: «O que mais custa é sermos só memória / (Poetas há que abusam da palavra) / Porque a memória, para vocês lembrança / é coisa meramente cerebral / que tem neurónios, linfas e sinapses / sem mais qualquer valia na esclerose. / É mais confusa do que persistente.»
Um belo livro de poemas dum poeta que por ironia os designa como «Não-poemas».

Amadeu Baptista revisita Lisboa


Depois de inúmeras apresentações pelo norte do país, o poeta Amadeu Baptista — nascido no Porto — regressa a Lisboa [cidade onde também viveu, em pleno Bairro Alto] para duas sessões de apresentação dos seus 3 últimos livros de poesia editados na Cosmorama: O Bosque Cintilante [Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, 2007], Sobre as Imagens [Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica, 2008] e Poemas de Caravaggio [Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, 2007].
As sessões terão lugar na Fábrica Braço de Prata [quarta-feira 24 de Setembro, pelas 20h.] e na Fnac do Chiado [quinta-feira 25 de Setembro, pelas 18h.30].
DOIS POEMAS PERDIDOS
DE NICOLAU SAIÃO

E

DUAS FOTOS RECORDADAS
DE M. ALMEIDA E SOUSA



ÁFRICA, FEVEREIRO DE 70


Entre mim e as janelas há o rio e as árvores
e milhões de anos feitos para a gazela e a marabunta.

Dionísio teria percorrido a savana e a montanha
quando ainda não havia rastos de camião
nem o mar sepultava pensamentos e memórias
entre um olhar e um silencio.
Serena era a madrugada, subitamente despertando
um vôo de coruja sobre os ombros de quem velava
- pastor e aguadeiro -
homem que na terra colocava a semente do tempo
ou do milho fremente para os sonhos e os minutos.

Algures, junto a uma parede devastada
onde a cal cristalizara a inocencia e a perfídia
as abelhas eram a equivalencia perfeita
do universo gerando a carne negra e branca
que dos livros guardara a misericórdia e o temor
de anos e anos a vir.

Há um grande e perpétuo rumor que faz pensar
em Orion e no Cruzeiro do Sul
mesmo quando o sol ainda risca a figura
incontusa dos sete pontos cardeais.

Qual o fulgor
que viaja entre oriente e ocidente
- os campos do mamute e da zebra primaveril -
mesmo quando a época das gramíneas refloresce
entre lua e penumbra?

Na terra
marco os dedos e os vestígios
de avós e bisavós
mas o contorno das palavras que escrevo e que despertam
as sombras do passado e do futuro
hei-de lembrá-las sempre
impolutas sobre o rio, sobre as casas, sobre os homens

que vi e que inventei.








PALAVRAS

Há palavras que nunca ninguém pronunciará.
Palavras de esquecimento, emocionadas palavras.
Palavras de mistério, apenas entrevistas
pairando entre a figueira e o computador
Palavras assombradas, iluminadas, nocturnas
palavras incontusas, breves, imarcescíveis.
Palavras encontradas num súbito combóio
palavras navegando no coração da chuva.
A palavra memória para a infância das estrelas.
A palavra planície, a palavra mamute.
Uma chaminé-palavra no alfabeto oculto
para a morte saudosa de todas as designações.
E também as palavras de todos os hemisférios afundados.
A palavra solstício e a palavra suicídio
e todas as palavras em que a sombra encontrou
o inquieto horizonte de uma ânfora de oiro.
A palavra das cidades vazias, dos espigões erguidos
pelos olhos do medo
as palavras de todos e as palavras sem ninguém.
O abeto-palavra, gelado e milimétrico
invadindo os espelhos nos mais escondidos quartos.
O salto, o golpe a palavra absoluta.
Uma palavra simples como uma boina basca
subtil como um navio, límpida como um rato
uma palavra desvendada e solene como um leito.
O natural do escuro, palavra negra e sangrenta.
A palavra completa
dos muros transfigurados



ou da casa doente abandonada aos chacais.
A palavra do peixe
do animal
do homem

a palavra habitante de todos os séculos martirizados.






Nota - Os poemas supra deste poeta apátrida de origem portuguesa foram recentemente encontrados por José Soares da Veiga numa gravação do programa radiofónico “Mapa de Viagens”. Aqui se dão a lume colmatando o extravio de 18 anos.



de Nuno Matos Duarte
POESIA ITALIANA EM LISBOA

Na sequência da apresentação das Edições Torino Poesia em Paris (La Libreria), Amesterdão (Libreria Bonardi), Lugano (Postate), é agora a vez de Lisboa, no dia 18 de Setembro, quinta-feira, às 18:30.
Com a colaboração da livraria italiana em Lisboa (Libritalia, Rua do Salitre, 166, junto ao Instituto Italiano, www.libritalia.pt), a DiVersos - Poesia e Tradução (série publicada por Edições Sempre-em-Pé, www.sempreempe.pt) convida a assistir à apresentação da nova poesia de Turim e do Piemonte (www.torinopoesia.org). Libritalia é a anfitriã da apresentação desta nova poesia de Turim e Piemonte.
A introdução será feita pelo escritor Gonçalo M. Tavares. Estarão presentes os poetas Tiziano Fratus e Francesca Tini Brunozzi, e alguns dos tradutores.
Nessa ocasião o editor apresenta o novo número (n.º 14) da DiVersos, no qual estão incluídas (além de outros poetas traduzidos de outras línguas e originais de poetas em português), quatro vozes da poesia turinense: Francesca Tini Brunozzi (com tradução de Letizia Russo e colaboração de José Carlos Marques), Luca Ragagnin (com tradução de Carlos Leite), Tiziano Fratus (com tradução de Teresa Bento) e Valentina Diana (com tradução de José Lima). Será feita leitura de alguns poemas na língua original e em tradução.

Dois livros de Carlos Garcia de Castro

Carlos Garcia de Castro publicou recentemente um ensaio que merece toda a nossa atenção. Vindo a lume no nº. 15 d’ A Cidade, embora – como título indica, “José Régio e os rapazes do meu tempo” – se debruce sobre a recepção do autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos e da sua obra entre a juventude alto-alentejana dos anos ’40-’50 do século XX, constitui um amplo friso da mentalidade de uma região e de uma cidade que José Maria dos Reis Pereira, tendo nela vivido várias décadas, “topou [nos seus] atavismos”.
Quase uma década depois de Rato do Campo (1998), fazendo tríptico com esse artigo, editou o poeta d’ Os Lagóias e os Estrangeiros dois livros de poesia: no Brasil, pela Editorial Escrituras, de São Paulo, na sua colecção “Ponte Velha”, uma antologia denominada Fora de portas, com selecção e organização de Floriano Martins; em Portugal, nas Edições Sempre-em-Pé (ligadas à importante revista DiVersos), a colectânea Gloria Victis. Embora consciente dos mecanismos que produzem em Portugal, e noutras partes, a notoriedade pública dos autores de literatura, parece-me que estes dois livros são passos significativos na certificação da importância da obra de Garcia de Castro que – apesar de produzida e divulgada a partir de um espaço ultraperiférico (Portalegre, “cidade amada, mas também claramente divisada enquanto lugar onde, eivada de pequenos sevandijas e suaves infâmias, Virtude é ter esperteza […]”, num “cenário que muitos não querem nem podem ver e que outros, os mais espertos e perigosos, muito bem vêem mas buscam ocultar ao geral dos cidadãos que habitam naquela que é uma das mais belas das cidades alentejanas e portuguesas, mas onde certas coisas não estão nada salubres eticamente”, como afirma Nicolau Saião num atento e esclarecedor prefácio de Fora de portas) – se apresenta com estrutura e carnação que lhe garantem uma voz própria, inconfundível.
A antologia publicada no Brasil, numa prestigiada editora, é uma excelente introdução à sua poesia. A selecção de poemas feita pelo poeta Floriano Martins consegue relevar os pontos mais luminosos de uma obra que se vem solidificando desde um primeiro livro (Cio), editado ainda em 1955. A ausência de fontes bibliográficas – sendo estranha como opção editorial – consegue, descontextualizando os poemas, mostrar esse movimento de sedimentação e progressão, sugerindo ao leitor quanto há de coerente na produção de um autor com mais de cinquenta anos de Poesia. Entre os textos aí vindos a lume, apresenta-se com uma força assinalável o conjunto de poemas (inéditos?) sobre vários elementos materiais (“vegetais”, “peles e couros”, “metais”, “madeira” e “têxteis” – pp. 59 a 67), ajudando-nos a compreender toda a sua poética que, partindo do concreto da existência (mas sabendo que “nem concreto nem abstracto são propriamente poesia” (V. Nemésio)), o interpreta e transfigura.
Um dos paradigmas críticos que mais dominou (ou domina) o meio literário português, sobretudo o académico, é o do afastamento entre a produção literária de um autor e a sua biografia. Válida em vários aspectos, mas errada e cega noutros, esta postura perante os vários géneros da Arte verbal afasta das suas abordagens um conjunto apreciável de textos (poéticos e de outra índole) que, não sendo propriamente autobiográficos (na medida em que lhes falta um pacto nesse sentido entre o leitor e o autor), não dispensam na sua estrutura semântica algumas dimensões que só serão completamente entendidas quando confrontadas com o percurso existencial de quem as produziu. Em Gloria victis (“não-poemas”, numa leitura sui generis de Alberto Caeiro e/ou de Nicanor Parra, dessacralizando a poesia, e valorizando-a, ao colocá-la no mesmo patamar das outras actividades humanas) dificilmente conseguiremos esquecer o ser empírico existente por detrás do ser textual. Num impressionismo que nos mostra a realidade interior e exterior, própria ou envolvente, e o pensamento de um protagonista que não hesita desnudar-se na sua fragilidade biológica e etária, lemos uma espécie de diário reflexivo em verso branco, decassilábico, a trazer-nos à memória as narrativas greco-romanas, vertidas num estilo melodioso, mas nunca etéreo. Poesia do quotidiano? Também. Mas a anos, a séculos-luz do neo-naturalismo charro que por aí abunda entre alguma malta nova e outra menos nova que o gostaria de ser. Para isto confirmarmos, bastará lermos e relermos o mais comovente poema do livro: “Há mais de cinquenta anos – para o Chambel” (pp. 27-34).