Mostrar mensagens com a etiqueta Aurélio Porto. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Aurélio Porto. Mostrar todas as mensagens


FLOR DE UM DIA


Aurélio Porto, nascido em 1945, reúne na colectânea Flor de Um Dia, com os seus 28 livros ou plaquetes, ou secções, ou capítulos, cerca de cinco décadas de poesia inédita, ou, quando não, quase confidencial. Esses escritos iniciam-se por volta de 1961 e chegam a 2005-2006, tendo sido finalmente editados em 2009, depois de algumas peripécias editoriais sem importância.
Os temas são os mais comuns e os mais permanentes, a alegria, a tristeza, o amor, a morte, e sobretudo a vida, a viagem no espaço e no tempo e a viagem fora deles, mas também alguns mais invulgares, o sentimento da natureza e da destruição dela, a dimensão cósmica, humana e desumana, a mentira da guerra e a impotência da paz, a solidão e a multidão, a fraternidade, a amizade, mas também a catástrofe e a barbárie. Neles se entrelançam poesia e filosofia, numa meditação do mundo que é também maravilhamento dele e inquietude pela destruição da sua beleza.
As linguagens presentes no volume são todas de hoje, mas vão desde as antigas, o terceto, o soneto, a elegia, a canção, o epigrama, a quadra popular, a outras mais recentes, o verso livre, poemas curtos, e alguns mais longos de uma estrofe única, a multiplicidade combinatória de poemas curtíssimos, tercetos, dísticos, inscrições.



Pireu


A lava edificada, ainda em erupção,
avança até ao cais, e os navios como casas também caiadas
ocultam o que poderia ser o mar.
Agora uma nesga vê-se.
Mais logo, ao entardecer, ouviremos os cânticos dos popes.
E será então a hora em que o marinheiro descansará
no repouso pacificador dos cabarés muito sujos por fora
(por dentro como serão?),
identificando-se com o exotismo das mulatas
ou com elas se sentindo em casa.
Mas que pode o sedentário saber do homem de pernas bambas
de tanto contemplar os astros?
Agora o sol ofusca tudo, o cimento e a cal enjoam,
e vem de súbito a gana da noite pretíssima e azul
apenas iluminada pelo cruzeiro
e pelo peixe-voador faiscando.


http://www.sempreempe.pt/

Aurélio Porto


Dois poemas



(um quase haiku)

Cristovam, mastigadores do mundo
somos, e de tuas glicínias.
Doce flor na saliva, passado menino.

1983


A uma cadela

Enquanto vives,
Diana, e teus olhos do teu mais profundo sono
jamais me perdem e vigilantes
ao menor gesto meu se sobressaltam,
enquanto o sopro que não há te atravessa inteira
e te mantém a nosso lado,
na poeira e no vento, e no sol o xisto
abrindo,
digo-te agora que o teu sopro é o meu sopro,
e enquanto imóveis na memória
frescas glicínias tombam sob o calor de agosto
sob a sombra tombam onde Farrusco
o cão dormindo outro cão lembra
esse que Cristovam amou onde outras glicínias engrinaldam
esse menino só
lembrança,
digo-te enquanto vives a alegria a dor
do coração compassivo,
a ferida funda rasgada e o golpe
à faca o corpo já morto e agoniza,
digo-te aí o lugar único
onde o coração repousa,
e quando tuas orelhas ao longe se erguem
ao curto silvo que o vento traz,
não há,
Diana,
outra alegria.

1988


in Flor de um Dia
no prelo