DOIS POEMAS
DE INSTRUMENTOS DE SOPRO






criámos este mundo. e outro mundo ainda.
a voz e o sangue. este corpo a dançar na escuridão.
a sombra da cerejeira nesta tarde sem vento.

retiro, sem calor, o barro com que rebocámos a nossa alma.
assim, despida, a pedra esboroa-se.
somos apenas terra sem estrume que nos fertilize.
guardamos nos olhos a semente – e alguns grãos de areia
na alvenaria com que desenhámos esta ponte.

recriámos esse mundo. e outro mundo ainda.
os pilares rodeiam esta dança –
os mortos descendo ao centro da noite.

a água destrói o vinho e as videiras.
a janela guarda no poço uma língua estranha
que nesta face podemos decifrar.

destruímos este mundo. e outro mundo ainda.
amassámos sobre a eira a distância
com a fértil viagem ao poente.

a lama regenera a nossa sede. a água desfaz esses carvalhos
que um dia regressaram à nascente.

destruímos este mundo. e outro mundo ainda.
voz e sangue. corpo e dança.
na escuridão.







matéria



sangue ou tinta? nada substitui o corte
na paisagem. pedra ou tinta? não interessam
as formas nem as figuras dispostas no paramento
que rompe a linha das casas. os vitrais escondem

a passagem de um navio por entre os dedos.
não existem imagens que os olhos reconheçam.
na memória avultam movimentos mínimos –
lábios recebendo no negro esplendor

a torre inteira, arquitectura de sangue.
pedra ou sangue? esqueço o horizonte.
contemplo os vitrais. gritos explodem
como sinos num dia de nevoeiro.

ou tocarão os sinos como gritos nesta torre
que permanece sobre o livro?



*



sangue, tinta, pedra. a inexistência
sobre o espaço, substituindo a existência sobre a terra.
a pedra como símbolo do sangue – o sangue
como tinta, elevando na superfície
da carne outra torre feita de vulcões e de memória.

nada resiste contudo ao efémero das raízes.
a erosão e a humidade desfazem e apodrecem
o corpo, a torre, a paisagem.

os átomos subsistem. mas no fim dos tempos
ninguém poderá distinguir no deserto
a torre do corpo, o corpo da tinta e do papel
que um dia registaram a transfiguração

da pedra, do sangue – nas palavras.



In Instrumentos de Sopro, Águas Santas, 2010

1 comentário:

João Miguel Henriques disse...

:) Gostei muito, meu amigo. Um forte abraço por ocasião deste novo livro. Haverá lançamento?