RESPONSABILIDADE, INTEGRAÇÃO E CIDADANIA



Sou professor há quinze anos. Nesta década e meia, circunstâncias voluntárias e involuntárias foram diversificando a minha experiência. Tendo começado o percurso numa escola rural de Trás-os-Montes, logo em 1996 fui colocado numa localidade problemática do concelho de Almada. Desde essa data – tirando três anos em que trabalhei como docente numa instituição de Ensino Superior – toda a minha carreira tem decorrido na Península de Setúbal, tendo a meu cargo turmas heterogéneas, dentro das quais se incluíram alunos em risco de exclusão social, vários caminhando para a marginalidade ou mesmo para uma vida envolvida pela actividade criminosa.

Como a maioria dos docentes deste país, durante os quatro anos que durou a minha formação inicial, fui alvo de uma autêntica lavagem cerebral. Os autores da barrela – psicólogos, sociólogos, metodólogos e pedagogos bem intencionados, mas com pouca experiência prática – tentaram convencer-me da inocência de todas as crianças, pré-adolescentes e adolescentes, de que o sistema educativo se deve submeter às “necessidades” e “características” do aluno, de que a aprendizagem deve ser lúdica e brincalhona, de que os valores e o conhecimento são relativos, etc., etc., etc..

Só quando entrei no sistema como professor me apercebi de que a ladainha não correspondia apenas a teorias ultrapassadas pregadas por gente ingénua e pouco responsável. Comecei a ter consciência de que tudo aquilo era a pregação oficiosa da doutrina defendida pelos burocratas que governavam e governam o Ministério da Educação – na sua maioria rapaziada nova quando ocorreu o 25 de Abril, isto é, cidadãos cuja melhor reacção ao cinzentismo da Instrução Pública salazarista foi a da importação de filosofias educativas que, nos seus locais de nascimento, já haviam sido colocadas nas prateleiras empoeiradas da História da Educação. Entrei no Sistema Educativo português, confesso, com a vista enublada por toda esta lavagem. Mas, como é bom de ver, cirros e nimbos foram-se dissipando, à medida que a realidade do quotidiano escolar se foi sobrepondo às teorias paradisíacas em que fora mergulhado. A experiência obrigou-me a produzir uma síntese entre um olhar realista sobre o processo de ensino-aprendizagem e a doutrina oficial ou oficiosa defendida por pessoas que nunca lidaram de perto (ou não quiseram lidar) com uma turma.

Nessa altura tomei ainda contacto com outra dimensão da educação: a relação das famílias com a aprendizagem das suas crianças. Tudo me foi dado observar: pais interessadíssimos e saudáveis no seu relacionamento com a escola, com os professores e com os seus filhos; gente humilde que se dedicava aos filhos, apesar de dificuldades sociais, culturais ou económicas; cidadãos conscientes de que educar implica disciplina, rigor, responsabilidade e exigência; encarregados de educação sobranceiros que abominavam qualquer esforço imposto aos seus filhos; familiares que nos levavam a canonizar os filhos; figuras repugnantes que – se Portugal fosse um país justo – há muito teriam os seus filhos entregues a famílias de acolhimento.

Ao longo de quinze anos de serviço, infelizmente, vi também crescer a promoção da irresponsabilidade e da impunidade entre os alunos. Tomei consciência de quanto o sistema protege os prevaricadores e desprotege as vítimas de insultos, de chantagens, de agressões físicas. (Sei do que falo, pois durante vários anos trabalhei voluntariamente com turmas de Currículo Alternativo, com rapazes e raparigas à beira da marginalidade.) Assisti à irresponsabilidade promovida por alguns colegas ingénuos ou medrosos, pelas direcções de muitas escolas que achincalham os seus professores, caucionando a pequena e grande indisciplina de alunos sem motivação intrínseca e com muita preguiça, desautorizando-os quando desculpabilizam comportamentos graves, recusando a merecida acção disciplinar, por simples incúria ou miopia ou para que as estatísticas não sejam maculadas.

“Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém”. As palavras de São Paulo sublinham que a assunção da cidadania requer uma escolha consciente. A sociedade, através da escola, deve integrar todos os seus membros. Mas os seus membros também devem integrar-se, respeitando a liberdade dos seus semelhantes e as regras mínimas de convivência, assumindo com responsabilidade todos os seus actos e as reacções que possam suscitar. Não é possível instruir sem que a educação esteja consolidada. Não é possível educar enquanto a recusa de integração nas estruturas micro e macrossociais não tiver consequências exemplares.

Esta observação com quinze anos tem reforçado a minha convicção de que o relativismo militante, mesmo que se chame “multiculturalismo”, nunca trará bons frutos nem à instrução nem à educação das nossas crianças. Se é impossível o exercício da cidadania sem integração social, essa integração nunca acontecerá sem uma ética de responsabilidade e de exigência. O percurso (perigoso) do sistema educativo português tem sido, quanto a mim, o inverso. Estamos contudo a tempo de mudar a direcção. Se o não fizermos, corremos o risco de mergulhar as nossas escolas num clima de insustentável violência física e psicológica, em que a aprendizagem será de todo impossível. Não sou de todo catastrofista. Estou apenas convicto de que, na ausência de um quadro estável de valores (entre os quais deverão estar o esforço, a responsabilidade, o livre arbítrio, o usufruto da crítica fundamentada, a promoção do conhecimento esclarecido), nunca existirá uma justa democracia. Tudo permitir é também autorizar a tirania e a barbárie.

(Publicado no número 42 da revista Transformar, Janeiro/Junho 2010)
http://www.forumavarzim.org.pt/site/index.php?option=com_content&view=section&id=4&Itemid=30

1 comentário:

Luis Eme disse...

sim senhor, gostei muito de ler.

especialmente como pai de duas crianças, com 5 e 12 anos...

e infelizmente é assim, cola-se o mundo com teorias, como se elas tivessem algum poder, perante a realidade, Ruy...