José do Carmo Francisco

Padre Abel Varzim
– Uma memória viva que não é totalmente «pura»


Nasci em Santa Catarina (Caldas da Rainha) no ano de 1951 e vim morar para Lisboa em 1966 para a freguesia de Santa Catarina. O pároco era o Padre Rocha que dava sempre uma galinha ao aluno mais assíduo da catequese. Não tinha grandes dotes oratórios e por isso muitos dos seus fiéis «atraiçoavam» a paróquia e iam à missa da igreja da Encarnação para ouvir o Padre Oliveiros. Eu tinha quinze anos e naturalmente lá ia com os meus pais ouvir as histórias do Padre Oliveiros que punha muita gente a chorar com as vidas dos santos mas nunca falava dos assuntos que verdadeiramente faziam chorar as pessoas: a guerra colonial e as perseguições políticas da PIDE. Estávamos em 1966, eu tinha acabado o Curso Geral do Comércio com boas notas e, por isso, tinha começado logo a trabalhar num Banco. Mas em Vila Franca de Xira, onde tinha vivido desde 1961 a 1966, eu tinha pertencido à Pré-JOC que era impulsionada pelo senhor Vladimiro, o entusiasta da JOC que se deslocava numa bicicleta de três rodas e falava muito do fundador da JOC (monsenhor Cardjan) e do Padre Abel Varzim. As nossas reuniões começavam sempre com uma oração lembrando o exemplo do fundador da JOC.

Só muito tempo depois é que descobri as memórias, por interpostas pessoas, do Padre Abel Varzim no Bairro Alto. Bastou algum convívio com os vizinhos aqui da freguesia para ficar a saber que eram dois os grandes campos da preocupação do Padre Abel Varzim enquanto pároco: as prostitutas e os rapazes. Tentou dar às raparigas da vida uma nova vida levando-as para a Amadora onde aprendiam a costurar. O Mário Correia que foi muitos anos presidente da Assembleia de Freguesia da Encarnação é uma testemunha viva desse trabalho que o Padre Abel Varzim desenvolveu aqui.
O Mário Correia fazia parte de um grupo de rapazes, eram seis, que iam à missa do meio-dia mas não se queriam integrar em nenhum grupo: nem Escuteiros, nem Acção Católicas nem JOC, nem JEC. Percebendo o que se passava, o Padre Abel Varzim abordou o grupo e levou os rapazes para a sacristia onde falaram à vontade. Acabaram por fundar um movimento paroquial que foi uma escola de vida para todos. Passados cinquenta anos todos recordam os teatros e os jogos de futebol que o Padre Abel Varzim organizava para os seus rapazes.
Num tempo cinzento e fechado, num espaço bafiento e cheio de sombras, o Padre Abel Varzim tudo fez para iluminar caminhos. Fazendo o essencial: informando. Num país dominado pela Censura informar era (em si) um heroísmo. Por isso mesmo a PIDE o veio incomodar em 1959 por causa de uma carta a Salazar na qual ele e alguns católicos denunciavam a brutalidade da PIDE. O ditador endossou a carta à mesma PIDE que veio incomodar aqueles que tinham denunciado as suas brutalidades. O Padre Abel Varzim já não estava na paróquia desde 1957 mas continuava activo.
A morte em 1964 veio interromper uma trajectória de intervenção mas a sua memória continua a ser venerada por todos os que tiveram o privilégio de acompanharem a sua acção em prol da justiça social. Mesma aqueles que, como eu, apenas o conheceram numa memória transmitida e não totalmente pura. Mas atenção: é uma memória que não é pura porque foi diluída e alterada pelo afecto daqueles que com ele privaram em directo.

1 comentário:

Luis Eme disse...

As memórias nunca são puras... são boas ou más.

A do padre Abel Varzim é boa, tal como o texto do José Francisco.