José do Carmo Francisco

Da poesia, da oração, do amor e da morte
(texto lido recentemente em Madrid, na Casa da Galiza)

Os Estados existem com seus rituais, suas fronteiras e seus hinos mas as pessoas, sejam essas pessoas cidadãos ou súbditos, não se regem pela mesma norma.
Um exemplo: em Abril de 1897 disputou-se entre Madrid e Ávila o primeiro campeonato de Espanha de ciclismo de estrada, a prova que ficou conhecida como os «100 quilómetros de Ávila». Apesar de os favoritos serem oriundos de Réus, Valência e Torrijos, o vencedor foi José Bento Pessoa que veio com a sua bicicleta Raleigh duma cidade portuguesa chamada Figueira da Foz.
Outro exemplo: já em 1829 o pintor Bernardo López Piquer tinha registado em óleo sobre tela a figura de Maria Isabel de Bragança, portuguesa, mulher de Fernando VII, grande aficionada das Belas Artes e fundadora do Museu do Prado.
Serve este intróito para dizer que há aspectos na vida que fogem à rigidez das fronteiras sejam elas geográficas ou linguísticas. O Mundo é a nossa casa e embora haja nele cada vez mais ruído, mais indiferença e mais hostilidade, a poesia (tal como a oração) não desiste de se afirmar. O poeta (tal como o crente) junta de novo o que o silêncio, a distância ou o esquecimento (os outros nomes da morte) foram separando. O poema (tal como a oração) nasce de uma constatação infeliz porque o poeta sabe que o amor é sempre efémero enquanto a morte é sempre inevitável. Entre o precário do sentimento e o mais que certo destino do corpo, o poema é um grito de revolta contra a morte. Os primeiros poetas andavam de terra em terra e cantavam os seus poemas que eram apenas canções porque ainda não existia sequer a palavra literatura. Não precisavam de livros esses primitivos poetas tal como os crentes não precisam de mais nada para além das suas palavras ditas em voz baixa.
Num tempo que afirma o esplendor do ruído (basta entrar numa loja para sermos incomodados por uma impessoal música ambiente) a poesia (tal como a oração) reconduz a voz do ser humano ao que ela tem de mais puro, mais simples e mais fascinante – erguer com a fragilidade aparente da sua massa sonora uma barragem de amor contra a veloz e quotidiana opressão da morte. Nesta tarefa onde não há nem proporção nem harmonia, a poesia sabe (tal como a oração) que só o amor pode responder à morte. Mas é uma resposta sem volume nem quantificação. Porque para o amor não há medidas. Porque a única medida do amor é amar sem medida.

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