QUATRO POEMAS
DE ÁLVARO VALVERDE
Então, a morte
1
DE ÁLVARO VALVERDE
Então, a morte
1
Na cabeça, palavras amargas;
palavras dolorosas
pelo seu peso de morte.
Nos olhos, tristeza.
E de súbito, ali,
numa esquina apertada da terra,
algo te reconcilia com o tempo.
Uma árvore devolveu-te a esperança.
Com ela regressou essa verdade,
para o resto sempre precária,
com que se pode justificar até a vida.
Com a visão humilde de um marmeleiro.
2
Junto desta cama de hospital,
utilitária e branca, em que agora
descansa o corpo doente do meu pai,
neste mesmo sítio onde agora
eu mesmo estou sentado,
esteve um dia ele
velando o seu.
Recorda-mo às vezes, lá pela noite,
quando apagam as luzes do corredor
e se ouvem os passos silenciosos
do pessoal de vigia
e a tosse do vizinho e o gemido longínquo
de alguém que sofre alheio
no quarto do fundo.
Em voz baixa, conta outras noites de insónia
semelhantes a esta,
ainda que ele não fosse então
o sujeito passivo dos meus inábeis cuidados
e somente o representante dessa força
que sem dúvida tiramos da fraqueza
para poder estar à altura
de tão penoso acontecimento.
Entre duas luzes,
com a respiração forçada do oxigénio,
enquanto altera as doses no conta-gotas,
penso em mim por momentos
e, sem querer,
vejo-me a mim mesmo
estendido nesta cama,
e, ao meu lado, sentado, como eu,
na mesma cadeira,
um dos meus filhos segurando
com muita força a minha mão.
3
Na realidade, não sei
se vamos ao encontro da morte
ou se provimos já da sua certeza.
Não me recordo, de qualquer modo, alheio
à sua larga sombra sigilosa.
Ali estava, no escuro, na enfermaria,
ao fundo do corredor, na penumbra
daquele mesmo canto em que agora
estou encolhido contra o tempo.
Estava nas palavras sussurradas
e estava nos silêncios clamorosos
e nos olhos tristíssimos e húmidos
dos meus pais voltando da igreja
sem outras explicações para além das naturais.
Estava ali, sem dúvida,
e sempre estivera
fazendo-me a mesma companhia
e sei perfeitamente como cheira
e a formas que adopta e reconheço,
como se fossem minhas, as suas mentiras.
Por isso tenho dúvidas se vamos morrer
ou de uma vez por todas deixaremos
de estar já nesta vida mortos.
4
Tudo me leva a ti; assim, esta tarde
aberta ao céu azul que sucedeu
ao irado negrume da tormenta,
sob esta luz que, mais do que vespertina,
me parece ofuscante e matinal,
quando atravesso o vale
e volto a Jerte, sem conhecer a razão,
seguindo não sei bem que raro impulso,
curva a curva, bem sabes, leito acima,
até às mesmas nascentes da vida.
É tudo igual, porém também diferente,
e me remete para ti. E as cascatas,
e os talhões e o rio e as cerejeiras
parecem ser olhados pelos teus olhos
e através deles ainda me falas
e voltas a explicar-me o importante:
sentir-se aqui feliz e rodeado
de quanto qualquer homem necessita:
a luz, o campo, a árvore, a montanha,
coisas, talvez, vulgares ou anacrónicas
mas que nos confortam e nos salvam;
os seres e as forças desse mundo
solar onde vivias;
onde, para meu bem, comigo vives.
Álvaro Valverde (Plasencia, Espanha, 1959) é autor de livros de poesia (Las aguas detenidas; Una oculta razón; Ensayando círculos; Mecánica terrestre), de ficção (Las murallas del mundo e Alguién que no existe) e de relatos de viagem (recolhidos em Lejos de aqui) – sendo considerado em Espanha um dos poetas mais importantes da sua geração. Os poemas aqui traduzidos pertencem à sua colectânea mais recente, Desde fuera, editada em 2008 pela Tusquets Editores (Barcelona) na sua colecção “Nuevos textos sagrados”.