CILADA
Wilmar Silva
a
sayonara
flautas e agreste
flauta agreste I
esculpo minha boca dentro de teus ouvidos
onde ninfas e duendes cometem o sonho
trilham o caminho da vertigem e vivem
à beira da estrada comendo verde poeira
as cores sobradas da última festa campestre
bichos e lendas no ermo dos seres
o olhar de ceres rompendo o teu abandono
cansada de tanto cuidar dos campos
dos cereais e do gado que se perde
flauta agreste II
envergo meus olhos e desfolho os deuses
encontro na enchente o bico sibilar
de um pássaro vindo de muito longe
voando nesta primavera onde nascem
floradas tão ímpias que não me calam
pétalas que se arvoram ao encanto do sol
gasto meu tempo mirando esse pássaro
no crepúsculo onde fadas gelam no inverno
insones sôfregas e úmidas por mim
flauta agreste III
canto esta quimera como quem se despe
e desnudo alça a godiva da fantasia
deságuo meu corpo em busca do teu
febril e descalço meu faro é de lobo
e a floresta e a selva entre árvores a cilada
mesmo de longe é por ti que espero
anseio uma noite e verdejo entre ramagens
meu disfarce é virar camaleão o bicho delicado
e picar teu sexo com meus tentáculos
flauta agreste IV
disperso abelhas e marimbondos em nevoaças
um réptil de puro veneno para espantar
aquele que vier contigo cantar-me
levo um tigre atado em minha pele
para assustar esse cúmplice sempre notívago
que te persegue pelas noites adentro
desenho em minhas mãos o rumo das setas
que irão mirar o coração de teu amante
sim eu serei bálsamo e lanço os dardos
flauta agreste V
guardo agora a sombra da lua e do medo
nuvens que debruam olhos e cabelos
dissipo a legião de andarilhos que me caça
sou pássaro e as penas de safira e rubi
errante e de músculos viris risco
esse amor tão doentio que me estrangula
eu pinto os meus lábios de carmim
e esqueço o meu orquidáceo em tua língua
serei mais ou serei menos basta o ópio
flauta agreste VI
orvalho as maçãs maduradas de vermelho
e ofereço fálicas papoulas que matam
afoito em teu motim armo orgias e festim
deslumbrado por ti minha avícula é ave
em teu ermo o esboço é um bote de áspide
árido mas esperando que se umedeça
o clima que invento é mais do que ruminar
é uma matança é uma carnificina é uma vingança
onde medra o meu pânico todo vândalo
flauta agreste VII
varo entre eclipses os meus olhos de jade
escamas e cactos em minha boca o meu sexo
a oferenda eu perfaço e amarelo
de tanto mirar teu corpo primavera
teus músculos que suam vertem fisgam
teu quadril onde afogo minha insânia
tuas coxas que ventam em meus lábios e cílios
o susto a culminar em vindima a vigília
e todo ardor enseada de montanha
flauta agreste VIII
habito a mesma noite em que habitas
como o mesmo pasto que ruminas
mas sou todo insônia e amálgama de heras
desejo apenas adivinhar o que escondes
ouvir o modo como respiras e as pausas
que tanto me crispam de gelo e paixão
a noite onde dormimos tem uma constelação
ela orna teu semblante e recria em mim
esse medo visceral de me entregar
flauta agreste IX
levo árvores flutuadas sobre cerrados
para o fundo da memória onde guarneço
divindades e a fome e a sede por ti
não esta fome cotidiana de cada ser vivo
mas a fome que é pranto rito fixação
fome de amor fome de carne fome de meter
a tua boca quando vergasta sons
é uma cadência que me iça doidivanamente
misturado a terra careço de adubo
flauta agreste X
arrumo mil disfarces à beira do instante
inverto o gume da ventania
mas o que seria o instante que anseio
o talhe de teu corpo que me doura
sim eu furto as palavras eu fuço as cores
e falo apenas no sangue que me escorre
meu disfarce é o simples ato de colorir
teu baile tão longe de ficar em mim
eu me ofereço após a incidental floração
flauta agreste XI
floresço na selva noturna que me espanta
onde aninham serpentes e estrelas
floresço prisioneiro em ti e os girassóis
são objetos servidos de adorno e pasto
mais do que florescer esse poema
floresço meu sexo no meio da chuva
no ápice da tempestade brenha e escuro
onde empunho armas de fogo e visgo
esse cúmplice a desbravar os descaminhos
flauta agreste XII
anoiteço e uivos dentro dos ouvidos
onde as corujas delatam os invasores
as axilas plenas de suor calor e deserto
rasgam-me a pele até o incêndio
caço teu corpo misturado de verdes coágulos
e receio não alçá-lo antes do amanhecer
emendarei os meu dedos aos teus
e calarei teus gemidos com os meus gestos
a noite é um segredo e estás dentro dele
flauta agreste XIII
durmo povoado de imagens que me escapam
sobre essa relva onde passeiam insetos
também sonho lamber os teus meandros
tuas coxas de outono quase orfeu
sonho deter tua ânsia tão estranha
e balbuciar nos ouvidos o que me consome
eu ávido caminhante dilacero o meu sangue
e desenho um oásis no céu
que purifique os meus pulsos de lâminas
flauta agreste XIV
vivo por ti o floral devaneio do vento
sopram teus quadris cedros quadrantes
como águias no espaço imitam sombras
revelo em tua direção alvo e flecha
e todos os ritmos que hajam em setas
junto a ti esse impávido minotauro de abril
aborígene e andrógino alado e condor
minha boca tem marfim e tem azul
eu ensurdeço teus ganidos até o clímax
flauta agreste XV
azulo por inteiro as ancas vindas de ti
os músculos que escondem meus semens
eu gralha a foragir agonia e agouro
azulo os cabelos a dourar este pássaro
não somente a miragem mas o que houver
falo por mim o que jamais diriam
canto a junção entre bambus e flautas
sísmico e fixo devoro eu narciso em eros
e todo o afogamento será ausência e mar
flauta agreste XVI
amadureço o verdor que brota dos dedos
uníssonos caminheiros de vertigens e ilhas
sulcam a direção de uma messe
vértebras fisgam meu olhar de falcão
virilhas derretidas de pêlos e suor
eu sigo a vertente das cabras e longe
uma camponesa atravessa ladeiras
o vadio está desnudo e mais uma vez afoga
em ti o pênis a verdejar até a raiz
flauta agreste XVII
ouço as batidas que aceleram e sobram
no domínio agreste a desmantelar o hímem
retido pelo aluvião e varado a muque
não somente a forma de miná-lo e ferí-lo
mas esdrúxulas disformas alinharam neles
ouço falos que me açoitam nesse outono
quebro as folhas coladas em meu ventre
e endoideço a lembrança da água no umbigo
eu vejo o mapa sem plexo e sou fatigado
flauta agreste XVIII
domino as retinas e flexos flautins
nu e ávido com o meu arco e flecha
espanto-me entre árvores as aves de rapina
armo a cilada e por completo o que falta
salto como tigre os laços de seiva e sangue
eis que esparge em meu sexo um oceano
ele eriçado vem escampar-me como fera
de tocaia ruge e arma o bote
sobe em meus ombros e vira amazonas
flauta agreste XIX
atravesso fauna e flora antes do inverno
o sol entre as folhas vara as montanhas
e inunda o córrego com o seu fulgor
descubro sargaços que me enleiam à água
e arremedo a dança que salta do verde
vívidos comemos nácares vivemos em tríade
a essência em nós é um laço ou cipó
nascidos da terra somos nós a passarada
e o amante assassinado também sou eu
flauta agreste XX
escondo em ânforas a paisagem das papoulas
e o que vislumbro é sempre emboscada
andarilhos do mato somos os herdeiros
e remoemos os cabelos vindos dos jasmins
sim içamos os pêlos até emergi-los na água
remoemos a alcatéia que foge pela lonjura
eu guardo em mim a derradeira cilada
fisgarei os olhos que me seguem afoitos
e prestes ao orgasmo o meu pênis é todo seu
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