O poema como aventura etnográfica

Eduardo Jorge

Desde os remotos tempos míticos até a contemporaneidade, o poema está entrecruzado por diversas travessias. Travessias estas repletas de aventura, repletas de saber. Passando por diversas épocas e civilizações, o poema, ao seu modo, sobrevive e se transforma, garantindo, inclusive, um estatuto de documento na sua dimensão mais material. Daí um fato questionável do poema ser lido como objeto não apenas em um contexto após as vanguardas históricas, tendo em vista que esta já seria sua condição de existência. Se o poema nos fala de um lugar distante, o mais contemporâneo dos poetas ainda guarda uma dimensão ritual e performática com a palavra. O poema, mesmo inserido em um ambiente digital, guarda o ritmo, o canto e chama a atenção para outros usos da palavra, deslocando-a de sua invisibilidade no mundo informacional, que traz em seu conteúdo o sentido da mensagem. Ainda foi e é, a partir do poema, que diversos escritores, críticos e tradutores realizaram mapeamentos de diversas estirpes, pondo em prática um ofício de cartógrafo, localizando e deslocando diversas poéticas ao redor do mundo. Poética aqui tomada em seu étimo, isto é, seu fazer. Alguns destes fazeres podem ser conferidos em diversas antologias, reunião de escritores ou poetas agrupados por um traço geracional, comunitário ou afirmação em alguma minoria étnica. Frente a isto, um projeto parece interessante para pensar esta questão, sobretudo geracional das antologias. E neste projeto um subtítulo a princípio inquieta: “contraantologia”. Esta “contraantologia”, grafada assim mesmo, chama-se Portuguesia. Organizada pelo poeta e editor Wilmar Silva, Portuguesia parece questionar uma positividade de antologias que operam em um recorte que marca uma linearidade da historiografia literária. Neste aspecto, Portuguesia parece ser um objeto atravessado por uma prática etnográfica, na qual a viagem foi matéria-prima para o organizador que mapeou estas poéticas in loco. O livro comporta 101 poetas agrupados no fato de escreverem em língua portuguesa, em torno do Brasil (o recorte do projeto toca alguns poetas de Minas Gerais), Portugal, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, Goa, Macau e Galícia.

Choque interno
No livro existe outra inquietação, afinal o poema fala mais alto. Os poemas de cada autor estão distribuídos de maneira randômica, praticamente aleatória, mas com o objetivo de concentrar uma leitura no poema, onde no rodapé da página encontra-se um pequeno código que dará a localização do autor em um índice remissivo contido no final da publicação. Encartado no livro, um DVD faz o papel inverso, com o registro das leituras dos participantes do Portuguesia apresentando os poetas por seus respectivos nomes e países. A presença de um DVD com tais registros de leitura aponta para um passo do projeto que reforça seu trabalho etnográfico com a dicção de cada poeta, isto é, saindo da dimensão da palavra impressa que este choque interno da própria língua portuguesa torna-se evidente. Portanto, o traço justificável que une os poetas neste livro – a língua portuguesa – é frágil e a qualquer momento pode ganhar outros contornos. é com esta “antropologia de uma poética” que Wilmar Silva parece ter iniciado um projeto que possivelmente se desdobrará como acontece com os primeiros resultados de uma expedição etnográfica, que geram índices para novas buscas, novas viagens. Nesta diversidade na qual se insere Portuguesia, o poema traça o seu caminho, porque os desafios para articular novos projetos que desmontem o que já está dado como forma fixa armam novas questões estéticas e políticas para se pensar o fenômeno literário.

Eduardo Jorge é mestre em estudos literários pela UFMG. Organizou o livro de ensaios Areia, animal, arquivo e alcachofra.
fonte: Estado de Minas 07 novembro 2009 caderno Pensar jornal Estado de Minas Belo Horizonte MG Brasil

2 comentários:

Anónimo disse...

O Wilmar Silva não para, que coisa! Ele merece os parabens...

Leo Lobos disse...

Mis saludos y abrazo desde Santiago de CHILE, felicitaciones por este trabjo maravilloso y mis felicitaciones al poeta WILMAR SILVA

desde el sur de América

Leo Lobos