QUATRO POEMAS
DE LUIS ARTURO GUICHARD
Contrários que se tocam
Estou do lado da névoa.
Primeiro, porque cai.
Sempre é menos pretencioso do que elevar-se.
Depois, porque faz truques de magia, como nas festas das crianças:
põe o lenço, oculta as coisas por momentos
e logo as deixa como estavam.
Faz com que os campos mais comuns
se convertam em bosques artúricos,
permite que o dedo escreva na vidraça.
É simples e não serve para nada.
Chega e parte por si mesma.
Estou do lado da névoa,
ainda que ganhem sempre os adoradores do fumo.
(in Nadie puede tocar la realidad, 2008)
Já não há caminhos
Só existiram caminhos
enquanto a terra foi plana.
Avançavam rectos, decididos,
senhores da realidade da linha,
sem se cruzarem antes de chegarem ao abismo
e caírem, ainda mais longos, em busca de outra terra.
Só nesse tempo existiram os viajantes,
os que tinham os olhos habituados
a um horizonte imóvel,
os que sabiam onde dormir apenas nessa noite,
os que não conheciam a debilidade do círculo
nem o consolo de voltarem ao ponto de partida
se iam caminhando perdidos.
Agora todos os caminhos têm indicações
e já não podemos perder-nos
a não ser dentro de nós mesmos.
(in Nadie puede tocar la realidad, 2008)
Os sinos do lugar onde nascemos
Estão sempre a tocar. Não os ouvimos
Mas nunca nos deixam. Medem
As badaladas que nos sobram com a precisão
Que só o pêndulo tem. Soam
Naquele lugar de casas brancas
Com longos passeios sem saída
Onde a mesma criança continua
A correr sem encontrar a saída
Com o mesmo olhar do velho
Que ensina ao menino um ponto para além
Do poente.
A despedida soa
Nos ouvidos como um pêndulo. Comecemos
A desempenhar o ofício de crer e de esperar.
Entre estas doze badaladas devem estar
Os sons verdadeiros.
(in Los Sonidos Verdaderos, 2000)
Serei matéria
… la bibliothèque était le point de réunion d’une secte pythagorienne…
JACQUES ROUBAUD – La bibliothèque de Warburg
A biblioteca tem quatro pisos:
Palavra, Imagem, Acção e Fundamento.
Ordenados os livros do banqueiro
como um exército disposto em círculo
o seu general é a oliveira plantada no pátio.
Os livros sabem que os persas nunca ganham.
Os livros sabem como se constrói a barca de Ulisses.
Os livros sabem qual é o caminho para cima e para baixo.
Por isso, os livros têm um escudo.
Por isso, os livros têm piedade dos seus donos mortos.
De súbito, recordo Simónides:
“
Sou um morto, e um morto é merda, e a merda é terra
e se sou terra, então não sou um morto: sou uma divindade.”
Todos os donos estão mortos.
São vaidade os seus nomes nas capas.
Um dia li o que um poeta dissera aos seus amigos:
“
Serei esse copo de água que estou bebendo.
Serei matéria.”
Não me comove a matéria, mesmo sabendo
que através dela pode haver uma saída,
nem a água, o que mais luz sobre a terra,
mas este “serei”, escrito por Quevedo
há quinhentos anos
e que não tem peso nem medida.
Todos temos um galo para Asclépio
já curados da vida.
E o livreiro a meu lado é todo
Metamorfosis.
Antes de entrar nesta biblioteca
eu não sabia que era pagão.
(in Nadie puede tocar la realidad, 2008)
LUIS ARTURO GUICHARD (Tuxtla Gutiérrez, Chiapas, México, 1973) é professor na Universidade de Salamanca, onde lecciona Filologia Clássica. É autor dos livros de poesia Los Sonidos Verdaderos (México, 2000) e Nadie puede tocar la realidad (Villanueva de la Serena, 2008). Para além de várias publicações científicas da sua especialidade, é ainda autor de Hacia el equilibrio. Lecturas de poesía española reciente (México, 2006). [Tradução de RV]