MEMÓRIA D' ALVA
Contributos para uma biografia
da igreja matriz de Aljezur


Terminei há poucos dias o meu mais recente livro, um estudo sobre a história da igreja matriz de Aljezur. Aqui ficam as primeiras linhas da introdução:


Os edifícios são como as pessoas. Todos têm biografia. Sendo o prolongamento das mãos humanas que lhes deram forma e dos corpos que neles existiram e viveram, transportam nos seus materiais de construção a recordação do seu nascimento, do seu crescimento, das suas vicissitudes e, até, da sua morte. Mesmo quando se resumem a escassos vestígios arqueológicos, a relíquias guardadas ou reutilizadas noutros lugares ou à lembrança difusa registada nos documentos escritos ou na oralidade colectiva.


Sendo como pessoas – ou parcelas inalienáveis dessa Pessoa que é uma comunidade quase sempre milenar – possuem ainda uma genealogia e um código genético. Não existem gerações espontâneas. Se a matéria de uma casa, de uma igreja ou de um castelo surgiu de novo – numa parcela do espaço antes ocupada apenas pelo crescimento das espécies vegetais e pelo povoamento da fauna –, trouxe sempre consigo um património que orientou a génese. Nesse código genético vindo do passado estarão decerto as estratégias e as técnicas inerentes à selecção e ocupação do território, a espiritualidade das formas, a sabedoria com que se distinguiram e trabalharam os materiais, a religação desse microcosmos ao macrocosmos universal, a religiosidade que presidiu a escolhas e afirmações, a experiência que definiu funcionalidades, os diálogos inevitáveis entre a paisagem e o povoamento.


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Tendo partido do registo histórico da construção da “igreja nova” de Nossa Senhora d’ Alva, entre 1795 e 1809, este trabalho que apresento nunca poderia prescindir de um conhecimento minimamente aprofundado do que fora a existência material do templo antecedente, arruinado em 1755. Mesmo assim, sendo embora cómodo iniciá-lo com a narrativa da edificação de um primitivo espaço cultual no século XIII, não seria aceitável que se relegasse para as calendas gregas uma leitura integrada do elemento religioso que justificara a existência qualquer dos edifícios – a veneração de Nossa Senhora d’ Alva –, possuindo toda uma envolvência mítica e onomástica que o revestiam de interesse e até de alguma estranheza.

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DA OSTENTAÇÃO


Pessoa - longe da imortalidade que hoje ninguém lhe nega - escreveu mais ou menos isto (cito de memória): "Tenho feito passar como meus vários poemas de autores famosos; todos lhe torcem o nariz. Tenho feito passar como de autores conhecidos poemas escritos por mim; são elogiadíssimos."


Só saberemos avaliar devidamente o valor da obra de um autor - separando-a da fama (justa ou injusta) de quem a criou - quando os livros forem publicados sob anonimato. Certa gente ostenta gostos literários como quem exibe sapatos de marca (mesmo que não prestem).


A autora deste livro - Maria do Carmo Vieira - deveria receber a homenagem de todos os portugueses que ainda amam a sua dignidade cultural. A sua denúncia da situação do ensino da Língua Materna - fomentada por técnicos do absurdo que vêm consagrando o império da facilidade para melhor acabar com a democracia verdadeira em Portugal - deveria ser de leitura obrigatória. Por lá se encontra, até, uma senhora escritora que - antes de ser comissária de um tal Plano Nacional de Leitura e ministra da Educação - era radicalmente contra quaisquer listas com sugestões literárias... logo abdicando das suas convicções quando alguns rectângulos de papel-moeda lhe foram postos na mão. O cenário é aterrador. Mas vale a pena o tempo ganho na sua leitura.
INSTRUMENTOS EM LISBOA



A apresentação de Instrumentos de Sopro ontem, 1 de Junho, em Lisboa, foi (quanto a mim) muito interessante. Não pelo "pretexto", mas pelo "texto" que fez nascer. Tanto quanto a minha memória alcança, nunca numa sessão nascida de um livro meu se dialogou tanto e tão profundamente sobre a Arte, a Poesia e a Poética.
O pintor e poeta Fernando Aguiar apresentou uma leitura simples, mas atenta, do livro - realçando dois dos seus pilares: a memória e a visualidade. 
No que respeita às minhas palavras, fiz questão de realçar que esta colectânea representa destruindo a representação, narra demolindo a narração (como acontece, aliás, noutros livros meus).
Lembrando A Capital, de Eça de Queirós, sublinhei a sua actualidade como crónica do meio literário português do nosso tempo, onde pontificam Romas e mais Romas que vão obrigando tantos Curvelos à desistência. No momento em que vivemos, a vitalidade artística precisa contudo de quem lhes resista e vá persistindo num caminho doloroso e paciente, contra-cultural. Explicando o significado do título Instrumentos de Sopro (expressão de matérias e anti-matérias que insuflam/insuflaram vida na existência), manifestei a minha convicção na existência de dois campeonatos, inconciliáveis, na produção artística contemporânea: de um lado, o campeonato da notoriedade pública; do outro, aquele que é jogado por quantos tentam servir a Arte, humildemente (isto é, ligados à húmus, à fertilidade), sem esperarem prebendas nem passeios pagos.
No seguimento dessas intervenções, estabeleceu-se um período de debate muito participado, no qual intervieram nomeadamente José Carlos Marques (editor do livro), Levi Condinho, Manuel Herculano (da Associação Sebastião da Gama), Joaquim Cardoso Dias e Rui Almeida, para além dos supracitados. Questionou-se a estética contemporânea, sobretudo o seu anacronismo e sua miopia histórica, que todos os dias afirma inventar a roda, quando ela já foi inventada há tantos milénios. Abordou-se ainda a importância da poesia experimental e do seu contributo para o refrescamento da poesia portuguesa - que tanto necessita de ser posta em causa, ou seja, que tanto precisa da incerteza, para não continuar a fazer a tal roda quadrada.

(Como apontamento final, gostaria de agradecer a gentiliza da gerência do ginásio Body Plaza, que criou todas as condições para um acontecimento digno. Agradeço ainda ao poeta Joaquim Cardoso Dias a captação de imagens para memória futura.)