José do Carmo Francisco

«A Clarinha vinha de Santa Sofia a sorrir»

No passado dia 16-12-2007 o jornalista Adelino Gomes assinou na revista Pública uma curiosa reportagem que descreve o encontro de cinco «jovens» alunos, quarenta e cinco anos depois de terem sido colegas de turma na Escola Comercial e Industrial de Vila Franca de Xira. São eles Vidaúl Froes Ferreira, José Carlos Pereira Lilaia, Álvaro Monteiro Rodrigues Pato, Arnaldo da Silva Ribeiro e este vosso humilde cronista. O primeiro fundou o MRPP, o segundo fundou o PRD, o terceiro só conheceu o pai (Octávio Pato) aos nove anos de idade, o quarto era o prometido poeta da turma e, por último, este vosso cronista, que tinha algum jeito para estas coisas e deu o seu melhor: chegou a director de um jornal de (parede…) que se chamava Velas do Tejo.
Tudo isto, embora não pareça, tem a ver com a Estrada de Macadame. Desde logo quando fui para o Montijo em 1957, a minha rua (Sacadura Cabral) também era de macadame. Depois, quando fui para Vila Franca de Xira em 1961, o Bairro do Bom Retiro não tinha asfalto nos pavimentos mas sim macadame. Era por essa estrada de macadame que passava a Clara Pato. Ela vinha de Santa Sofia para o Largo do Serrado onde vivia o seu avô João Floriano Baptista Pato e a sua avó Maria da Conceição Rodrigues. E o seu primo Álvaro Monteiro Rodrigues Pato, meu colega de turma. Por artes mágicas dos meus amigos Ana e Joaquim (o Mundo é mesmo pequeno…) acabei por reencontrar em Janeiro de 2008 a Clara Pato que obviamente se lembrava de passar pelo Bairro do Bom Retiro, vinda de Santa Sofia, a caminho da casa do seu avô em Vila Franca de Xira. Ao mesmo tempo surgiu nas livrarias o volume «A história da PIDE» de Irene Pimentel, uma edição conjunta das editoras «Círculo de Leitores» e «Temas e Debates». Na página 392 lá está a referência à morte do pai da Clara, Carlos Pato. Vejamos: «Em 4 de Junho de 1950 morreu o jovem assalariado agrícola Alfredo Lima, assassinado por guardas da GNR em Alpiarça, no decorrer de uma greve por aumento das jornas. No mesmo mês morreu às mãos da PIDE Carlos Pato, do PCP, irmão de Octávio Pato. Segundo uma carta aberta publicada no Diário de Lisboa de 24 de Agosto de 1974, dizia-se que, detido em 28 de Maio de 1949, Carlos tinha morrido, aos 29 anos, na cadeia de Caxias, em 26 de Junho de 1950, de «um ataque cardíaco segundo o médico da cadeia.» Por seu turno, a mãe de Carlos Pato contou que, na primeira vez que visitara o filho, este dissera-lhe que o tinham torturado muito. Soubera-se depois que tinha estado 130 horas de «estátua» com os sapatos «todos rebentados devido a ter ficado muito inchado por causa das torturas». Carlos Pato morreu «em Caxias, na sala 7 do rés-do-chão onde estavam mais 14 presos» um dos quais contou posteriormente à família que, apesar de muitos detidos terem pedido assistência médica, esta não havia sido fornecida a tempo.»
A Clarinha tinha 8 meses quando prenderam o pai, o irmão João Carlos nasceu 5 meses depois de o pai ter sido preso ou seja depois de 28-5-1949. Carlos Pato veio a morrer em 26-6-1950. Além de todos os sonhos pessoais e colectivos em suspenso ele deixou um pequeno livro de contos nas mãos de Alves Redol que o editou em 26-6-1951. É de facto espantosa a ligeireza de muita gente que anda pelos cargos políticos (autárquicos e não só) de hoje que se atreve a comparar a ASAE com a PIDE. É uma gente que não sabe nada de nada mas tem os microfones à frente do nariz. [...]


«Carlos Pato,
um desses homens que traz o futuro no coração»

Preso em 28 de Maio de 1949, Carlos Pato veio a morrer na cadeia de Caxias em 26 de Junho de 1950, deixando órfãos dois filhos pequeninos, Maria Clara e João Carlos. O menino nascido em 4-12-1949 nunca foi sequer visto pelo pai. Este é o fio da meada da crónica anterior, quando recordei a memória da Clarinha a passar na estrada de macadame do Bairro do Bom Retiro, entre Santa Sofia e o Largo do Serrado. Consegui a fotocópia do livro Alguns Contos de Carlos Pato editado em 1974. O prefácio de Alves Redol, escrito para a edição de 1951 e aqui reproduzido, refere-se ao malogrado escritor nestes termos: «Compreensivo e digno, amoroso e forte, aberto às melhores promessas dos nossos dias, sensível à dor alheia, rebelde para as injustiças e bom, sempre bom, com esse sorriso tão suave que era a imagem de ti próprio, que era o reflexo dum coração onde não cabia o ódio nem a cobardia». O livro contém apenas três contos como que a dar a ideia de que o autor, na sua brevíssima vida, ainda teve tempo de escrever uma história para cada uma das divisões do Ribatejo: Charneca, Lezíria e Bairro. O primeiro («Ao receber a jorna») tem como heroína Maria Alexandrina, trabalhadora rural que levas duas filhas para o campo: «A uma afagava-lhe o rosto e amamentava-a para lhe abafar o choro; à outra dava-lhe parte da sua ração.» Depois de uma semana de trabalho chega o dia de receber a jorna: «Uma cantou para que o tempo passasse; as outras ouviram, caladas.» A fala do patrão não engana sobre o sistema cultural falsamente cristão que regia a vida dos portugueses e onde não havia espaço para creches ou infantários: «olhem que lá no campo, ganham três mil e quinhentos e vocês, aqui no norte, quase ao pé de casa, alambazam-se com quatro mérreis.» O segundo conto («Valados») mostra que o campo não é só paisagem («Terra de campo, onde se desvanecem ilusões e se sepultam energias; o Tejo bom quando traz pão, mau quando o leva e não o dá») mas também lugar de luta: «Quando Riacho e os camaradas começaram a compreender a vida, uma união intrínseca os ligou para sempre. Foi assim que edificaram uma base com que lutam contra os homens e contra o Tejo traiçoeiro.» A falta de assistência médica é o drama em gente desta história. O terceiro conto («Graxas») fala de um grupo de miúdos que brinca no Tejo: «As roupas estavam escondidas e à guarda do Chico não viesse o Cabo do Mar e os surprezasse a tomar banho. Os corpos nus a galgarem para dentro da água como uma enfiada de rãs que de repente notasse gente.» Nesse grupo de engraxadores nem todos sonham com o campo; o Chico quer outro destino: «Quando for homem vou para a fábrica trabalhar com o meu pai. Hei-de usar fato de ganga e fumar superior.» Divididos entre o trabalho e o desporto, entre a Estação da CP e a aberta no Tejo onde nadam, eles são um elo na corrida de estafetas por um mundo melhor: «Têm uma mágoa profunda a residir no íntimo, como uma coisa enorme que faz parte dos seus órgãos – são os lamentos e as lutas dos seus parentes. Lamentos e lutas que se vieram depositar, juntos, nos corpos esguios dos graxas que trabalham e brincam no passeio da estação e na aberta do Lamas.» Também sonham e perguntam entre si («Quando virá o dia que a gente muda a vida?») para logo um deles responder: «Não vem longe, Chico!» Entre os apitos das fábricas e as palavras dos capatazes, o seu futuro vai ser rogar trabalho sem condições, até um dia. Estes três contos de 1949 são uma dolorosa descoberta hoje em 2008: Carlos Pato poderia ter sido um grande escritor. Há na tessitura dos seus contos a ampla respiração dum talento criador, um domínio perfeito da língua. A sua morte por enfarte depois de muitos dias de tortura é mais um crime da PIDE que, sem consciência, alguns pobres diabos da política hoje comparam à ASAE.

(Textos publicados no jornal Gazeta das Caldas)

2 comentários:

Anónimo disse...

Comparam-na à Pide por cinismo e por interesse. Eles bem sabem que a ASAE, apesar do autoritarismo que o criado de Bruxelas nela faz residir, pois gostava de ter e tudo tem feito para ter, um tribunal do gosto, disfarçando-se com o pretexto da saúde (enquanto destrói os hospitais e o serviço nacional de saúde), nada tem a ver com a Pide.
A Pide era um organismo criminoso, a ASAE apenas é um instrumento para constranger. Quando fecha tascas onde há ratos e baratas e comida podre faz bem. Quando exorbita e fecha empresas sumariamente,faz mal embora sirva os intuitos do "chefe da banda".
Mas esses políticos hipócritas falam em Pide a este propósito. Deviam ter vergonha, porque foram aqueles de quem eles são herdeiros que a inventaram.
Corra-se com esses políticos e também com o criado de Bruxelas.

Flinger

ruialme disse...

Considero uma das afirmações do 1º parágrafo de uma tremenda injustiça. Resumir o sucesso de um Poeta justamente premiado e cronista de alta qualidade, apenas a director de jornal de parede...
hehehe

Eis dois textos exemplares do talento de JCF; a partir daquilo q muitos podem considerar apenas trivialidades, coloca o leitor a remoer nos pormenores, afinal não tão insignificantes como isso.