IN MEMORIAM

É este o meu poema mais recente. Estava neste momento a preparar-me para o enviar a Maria Gabriela Llansol. A morte surpreendeu-a. Surpreendeu-me. Perdemos uma das vozes mais discretas, mas mais significativas da literatura de língua portuguesa. Aqui fica o texto, em sua memória.


[Maria Gabriela Llansol]

a voz coloca a suspensão da frase
entre os sinais que qualificam um tempo sem memória.
ossos e palavras (a saliva e o alimento da estrutura)
derrubam o edifício. corpo ou figura –
rompe de um telhado repartido por vários cantos
da cidade. há homens sem voz, outros sem sombra
mas com flamas descobrindo o cabelo. a nudez da sala
permite o encontro – uma ponte
interrompida onde crescem figueiras
e outros fluidos corporais – sangue e
seiva, sangue e sémen cobrindo a boca
e algumas palavras sem tradução
na linguagem dos pássaros.

nenhuma palavra altera a consciência da metamorfose.
as rochas protegem-nos
da força das águas, mas não conseguem segurar
um corpo (uma figura?) cujos dentes
atravessam a carne e a madeira.

o anúncio divide a estranheza do horizonte.
o corpo escreve, mas nada regista sobre o corpo
que oferece. homem ou linha ininterrupta?
que cor a da serpente? a forma ilude
a cerração. o desejo destrói
essa figura – onde um corpo sem ossos
restaura os objectos e a memória.

6 comentários:

Anónimo disse...

Caro Ruy: depois do teu sms de ontem à noite apenas deixo aqui o meu nome e tu sabes porquê.
Joaquim Cardoso Dias

Ruy Ventura disse...

Obrigado, amigo!

Anónimo disse...

Toda a literatura é uma homenagem à literatura e este poema está ao nível da homenageada. Excelente. JCF

Anónimo disse...

Caro Ruy.
Não conheci Maria Gabriela, porém ao ler sua homenagem, penso que a intensidade e a qualidade dos encontros entres voces foram grandiosos.
abraços
afonso alves
mato grosso- brasil

Ruy Ventura disse...

Os meus encontros com Maria Gabriela Llansol foram sempre através da sua escrita. Afinal, são esses que realmente interessam.
Mas tanto quanto sei eram também uma óptima pessoa.

Anónimo disse...

Ruy: grata pelo envio do excelente poema. Maria Gabriela Llansol gostaria de o ter lido. Fica a homenagem.
Abraço da Soledade Martinho Costa