DOIS POEMAS PERDIDOS
DE NICOLAU SAIÃO

E

DUAS FOTOS RECORDADAS
DE M. ALMEIDA E SOUSA



ÁFRICA, FEVEREIRO DE 70


Entre mim e as janelas há o rio e as árvores
e milhões de anos feitos para a gazela e a marabunta.

Dionísio teria percorrido a savana e a montanha
quando ainda não havia rastos de camião
nem o mar sepultava pensamentos e memórias
entre um olhar e um silencio.
Serena era a madrugada, subitamente despertando
um vôo de coruja sobre os ombros de quem velava
- pastor e aguadeiro -
homem que na terra colocava a semente do tempo
ou do milho fremente para os sonhos e os minutos.

Algures, junto a uma parede devastada
onde a cal cristalizara a inocencia e a perfídia
as abelhas eram a equivalencia perfeita
do universo gerando a carne negra e branca
que dos livros guardara a misericórdia e o temor
de anos e anos a vir.

Há um grande e perpétuo rumor que faz pensar
em Orion e no Cruzeiro do Sul
mesmo quando o sol ainda risca a figura
incontusa dos sete pontos cardeais.

Qual o fulgor
que viaja entre oriente e ocidente
- os campos do mamute e da zebra primaveril -
mesmo quando a época das gramíneas refloresce
entre lua e penumbra?

Na terra
marco os dedos e os vestígios
de avós e bisavós
mas o contorno das palavras que escrevo e que despertam
as sombras do passado e do futuro
hei-de lembrá-las sempre
impolutas sobre o rio, sobre as casas, sobre os homens

que vi e que inventei.








PALAVRAS

Há palavras que nunca ninguém pronunciará.
Palavras de esquecimento, emocionadas palavras.
Palavras de mistério, apenas entrevistas
pairando entre a figueira e o computador
Palavras assombradas, iluminadas, nocturnas
palavras incontusas, breves, imarcescíveis.
Palavras encontradas num súbito combóio
palavras navegando no coração da chuva.
A palavra memória para a infância das estrelas.
A palavra planície, a palavra mamute.
Uma chaminé-palavra no alfabeto oculto
para a morte saudosa de todas as designações.
E também as palavras de todos os hemisférios afundados.
A palavra solstício e a palavra suicídio
e todas as palavras em que a sombra encontrou
o inquieto horizonte de uma ânfora de oiro.
A palavra das cidades vazias, dos espigões erguidos
pelos olhos do medo
as palavras de todos e as palavras sem ninguém.
O abeto-palavra, gelado e milimétrico
invadindo os espelhos nos mais escondidos quartos.
O salto, o golpe a palavra absoluta.
Uma palavra simples como uma boina basca
subtil como um navio, límpida como um rato
uma palavra desvendada e solene como um leito.
O natural do escuro, palavra negra e sangrenta.
A palavra completa
dos muros transfigurados



ou da casa doente abandonada aos chacais.
A palavra do peixe
do animal
do homem

a palavra habitante de todos os séculos martirizados.






Nota - Os poemas supra deste poeta apátrida de origem portuguesa foram recentemente encontrados por José Soares da Veiga numa gravação do programa radiofónico “Mapa de Viagens”. Aqui se dão a lume colmatando o extravio de 18 anos.

Sem comentários: