NÃO HÁ LUGAR NA HOSPEDARIA

"Não havia lugar na hospedaria". De entre todas as frases que constroem a narrativa da Natividade é esta uma das que mais me impressiona. Mais do que uma imagem de pobreza, de ausência de abrigo, esta afirmação ecoa no meu cérebro como desencantada constatação da rejeição da digna humanidade de Jesus.
Hoje vivemos um Natal sem Natividade e sem Menino, envelhecido nas barbas brancas de um velho com barriga de fartura - empanturrado talvez pela "água suja" açucarada do refrigerante que trajou Nicolau de vermelho e lhe retirou o nome e o papel de servo de Cristo. Ausenta-se dele não só a pobreza de Jesus, mas até a sua imagem (envolvida nas notas de banco do comércio ou em papéis de embrulho), numa reverência aos deuses do neo-paganismo dominante (o Dinheiro, o Consumo, a Indiferença, o Relativismo, o Sucesso, etc.). Vivemos, assim, num mundo em que a verdade da frase registada no Evangelho se tornou evidente.
Como há cerca de dois mil anos, não há hospedaria que acolha muitos dos seres humanos que habitam neste planeta Terra. É fácil lembrarmo-nos dos impressionantes números da miséria extrema que revestem alguns países dominados por sanguessugas que, por vezes, até assumem as vestes da "democracia" para melhor se perpetuarem no poder e cometerem os seus crimes. Mais difícil é lembrarmo-nos daqueles que, ao nosso lado, não encontram lugar nas hospedarias da dignidade. E não são apenas quantos povoam as arcadas e os recantos do relento deste país, deitados em caixas de papelão. São também, por exemplo, as crianças que não encontram lugar nos infantários públicos, os jovens altamente qualificados que não têm emprego nem esperança de trabalhar no seu Portugal, os cidadãos dignos que se vêem espezinhados por dirigentes políticos económicos ou sociais levianos e/ou corruptos ou por um sistema de justiça em erosão, aqueles que perdem o seu emprego, os que vêem o seu sustento reduzido pela ganância bancária, os idosos que não têm que olhe por eles, sendo excluídos dos lares por causa das suas doenças ou por não terem dinheiro suficiente que compre a abertura de vagas.

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Há pouco mais de um ano Rosária foi uma dessas excluídas que, todos os dias em Portugal, não têm lugar na hospedaria. Residente no concelho de Portalegre e doente de Alzheimer, quando a sua família se viu impossibilitada de cuidar dela durante alguns dias, ouviu em quase todos os lares da sua região a mesma resposta. Como se fosse uma pestífera, a sua doença provocou sempre a mesma recusa. Apenas o director do Lar de São Domingos dos Fortios lhe mostrou alguma luz na sua atitude sincera e sensível, apesar das dificuldades de espaço da instituição que dirige.
Felizmente a solidariedade aldeã resolveu as coisas de outro modo.
Ainda não há um mês, Deus, em definitivo, cessou por completo o seu sofrimento, as suas dificuldades e as da sua família.
Há sempre seres humanos que nos fazem acreditar na Humanidade e não descrer completamente deste mundo. No exemplo apontado, vemos o director de um lar, a vizinha solidária (D. Armandina) e até o médico (Dr. Serpa Soares) que, na hora da morte de Rosária, soube vencer os muros da burocracia cega do Estado e da insensibilidade de colegas seus.
Esta história poderá ser de proveito e exemplo, aclarando a consciência. Hoje, como há dois mil anos, há gente que é posta na rua porque não há lugar na hospedaria. Mas há sempre estrelas que guiam, grutas que na pobreza se abrem para acolher os excluídos deste mundo em que vivemos, pastores que oferecem o pouco que têm. Façamos parte deste segundo grupo - e concretizemos, com o nosso contributo, uma verdadeira comemoração da Natividade de Jesus de Nazaré.

1 comentário:

Anónimo disse...

Belíssimo texto, repassado de justa indignação.
É importante que você, Ruy Ventura, multiplique textos de desafronta, a par da poesia e da prosa diversa. É mesmo muito importante. Porque os tais tentam remeter os blogues para o lugar cómodo da "arte", preferivelmente de cócoras. E se a poesia é cada vez mais necessária, visto que depois dos "auschwits" é que ela mais o é, um dos constitutivos dela é a iluminação da sociedade.
Através de textos verdadeiros e íntegros que ponham as tripas ao léu à rataria.
Nunca as mãos lhe doam.

Mário Morgado