CILADA
Wilmar Silva
a
sayonara
flautas e agreste
flauta agreste I
esculpo minha boca dentro de teus ouvidos
onde ninfas e duendes cometem o sonho
trilham o caminho da vertigem e vivem
à beira da estrada comendo verde poeira
as cores sobradas da última festa campestre
bichos e lendas no ermo dos seres
o olhar de ceres rompendo o teu abandono
cansada de tanto cuidar dos campos
dos cereais e do gado que se perde
flauta agreste II
envergo meus olhos e desfolho os deuses
encontro na enchente o bico sibilar
de um pássaro vindo de muito longe
voando nesta primavera onde nascem
floradas tão ímpias que não me calam
pétalas que se arvoram ao encanto do sol
gasto meu tempo mirando esse pássaro
no crepúsculo onde fadas gelam no inverno
insones sôfregas e úmidas por mim
flauta agreste III
canto esta quimera como quem se despe
e desnudo alça a godiva da fantasia
deságuo meu corpo em busca do teu
febril e descalço meu faro é de lobo
e a floresta e a selva entre árvores a cilada
mesmo de longe é por ti que espero
anseio uma noite e verdejo entre ramagens
meu disfarce é virar camaleão o bicho delicado
e picar teu sexo com meus tentáculos
flauta agreste IV
disperso abelhas e marimbondos em nevoaças
um réptil de puro veneno para espantar
aquele que vier contigo cantar-me
levo um tigre atado em minha pele
para assustar esse cúmplice sempre notívago
que te persegue pelas noites adentro
desenho em minhas mãos o rumo das setas
que irão mirar o coração de teu amante
sim eu serei bálsamo e lanço os dardos
flauta agreste V
guardo agora a sombra da lua e do medo
nuvens que debruam olhos e cabelos
dissipo a legião de andarilhos que me caça
sou pássaro e as penas de safira e rubi
errante e de músculos viris risco
esse amor tão doentio que me estrangula
eu pinto os meus lábios de carmim
e esqueço o meu orquidáceo em tua língua
serei mais ou serei menos basta o ópio
flauta agreste VI
orvalho as maçãs maduradas de vermelho
e ofereço fálicas papoulas que matam
afoito em teu motim armo orgias e festim
deslumbrado por ti minha avícula é ave
em teu ermo o esboço é um bote de áspide
árido mas esperando que se umedeça
o clima que invento é mais do que ruminar
é uma matança é uma carnificina é uma vingança
onde medra o meu pânico todo vândalo
flauta agreste VII
varo entre eclipses os meus olhos de jade
escamas e cactos em minha boca o meu sexo
a oferenda eu perfaço e amarelo
de tanto mirar teu corpo primavera
teus músculos que suam vertem fisgam
teu quadril onde afogo minha insânia
tuas coxas que ventam em meus lábios e cílios
o susto a culminar em vindima a vigília
e todo ardor enseada de montanha
flauta agreste VIII
habito a mesma noite em que habitas
como o mesmo pasto que ruminas
mas sou todo insônia e amálgama de heras
desejo apenas adivinhar o que escondes
ouvir o modo como respiras e as pausas
que tanto me crispam de gelo e paixão
a noite onde dormimos tem uma constelação
ela orna teu semblante e recria em mim
esse medo visceral de me entregar
flauta agreste IX
levo árvores flutuadas sobre cerrados
para o fundo da memória onde guarneço
divindades e a fome e a sede por ti
não esta fome cotidiana de cada ser vivo
mas a fome que é pranto rito fixação
fome de amor fome de carne fome de meter
a tua boca quando vergasta sons
é uma cadência que me iça doidivanamente
misturado a terra careço de adubo
flauta agreste X
arrumo mil disfarces à beira do instante
inverto o gume da ventania
mas o que seria o instante que anseio
o talhe de teu corpo que me doura
sim eu furto as palavras eu fuço as cores
e falo apenas no sangue que me escorre
meu disfarce é o simples ato de colorir
teu baile tão longe de ficar em mim
eu me ofereço após a incidental floração
flauta agreste XI
floresço na selva noturna que me espanta
onde aninham serpentes e estrelas
floresço prisioneiro em ti e os girassóis
são objetos servidos de adorno e pasto
mais do que florescer esse poema
floresço meu sexo no meio da chuva
no ápice da tempestade brenha e escuro
onde empunho armas de fogo e visgo
esse cúmplice a desbravar os descaminhos
flauta agreste XII
anoiteço e uivos dentro dos ouvidos
onde as corujas delatam os invasores
as axilas plenas de suor calor e deserto
rasgam-me a pele até o incêndio
caço teu corpo misturado de verdes coágulos
e receio não alçá-lo antes do amanhecer
emendarei os meu dedos aos teus
e calarei teus gemidos com os meus gestos
a noite é um segredo e estás dentro dele
flauta agreste XIII
durmo povoado de imagens que me escapam
sobre essa relva onde passeiam insetos
também sonho lamber os teus meandros
tuas coxas de outono quase orfeu
sonho deter tua ânsia tão estranha
e balbuciar nos ouvidos o que me consome
eu ávido caminhante dilacero o meu sangue
e desenho um oásis no céu
que purifique os meus pulsos de lâminas
flauta agreste XIV
vivo por ti o floral devaneio do vento
sopram teus quadris cedros quadrantes
como águias no espaço imitam sombras
revelo em tua direção alvo e flecha
e todos os ritmos que hajam em setas
junto a ti esse impávido minotauro de abril
aborígene e andrógino alado e condor
minha boca tem marfim e tem azul
eu ensurdeço teus ganidos até o clímax
flauta agreste XV
azulo por inteiro as ancas vindas de ti
os músculos que escondem meus semens
eu gralha a foragir agonia e agouro
azulo os cabelos a dourar este pássaro
não somente a miragem mas o que houver
falo por mim o que jamais diriam
canto a junção entre bambus e flautas
sísmico e fixo devoro eu narciso em eros
e todo o afogamento será ausência e mar
flauta agreste XVI
amadureço o verdor que brota dos dedos
uníssonos caminheiros de vertigens e ilhas
sulcam a direção de uma messe
vértebras fisgam meu olhar de falcão
virilhas derretidas de pêlos e suor
eu sigo a vertente das cabras e longe
uma camponesa atravessa ladeiras
o vadio está desnudo e mais uma vez afoga
em ti o pênis a verdejar até a raiz
flauta agreste XVII
ouço as batidas que aceleram e sobram
no domínio agreste a desmantelar o hímem
retido pelo aluvião e varado a muque
não somente a forma de miná-lo e ferí-lo
mas esdrúxulas disformas alinharam neles
ouço falos que me açoitam nesse outono
quebro as folhas coladas em meu ventre
e endoideço a lembrança da água no umbigo
eu vejo o mapa sem plexo e sou fatigado
flauta agreste XVIII
domino as retinas e flexos flautins
nu e ávido com o meu arco e flecha
espanto-me entre árvores as aves de rapina
armo a cilada e por completo o que falta
salto como tigre os laços de seiva e sangue
eis que esparge em meu sexo um oceano
ele eriçado vem escampar-me como fera
de tocaia ruge e arma o bote
sobe em meus ombros e vira amazonas
flauta agreste XIX
atravesso fauna e flora antes do inverno
o sol entre as folhas vara as montanhas
e inunda o córrego com o seu fulgor
descubro sargaços que me enleiam à água
e arremedo a dança que salta do verde
vívidos comemos nácares vivemos em tríade
a essência em nós é um laço ou cipó
nascidos da terra somos nós a passarada
e o amante assassinado também sou eu
flauta agreste XX
escondo em ânforas a paisagem das papoulas
e o que vislumbro é sempre emboscada
andarilhos do mato somos os herdeiros
e remoemos os cabelos vindos dos jasmins
sim içamos os pêlos até emergi-los na água
remoemos a alcatéia que foge pela lonjura
eu guardo em mim a derradeira cilada
fisgarei os olhos que me seguem afoitos
e prestes ao orgasmo o meu pênis é todo seu
A LUMINOSIDADE ESTRANHA
DA POESIA DE C. RONALD
"Tendo começado a publicar sua obra nos anos 70 do século passado, é possível que C. Ronald ainda não tenha encontrado o seu público leitor. E não tanto porque essa obra, difícil e reservada em muitos sentidos, pouco acolhedora aos primeiros contatos, mas ao mesmo tempo portadora de uma luminosidade estranha que se oferece de modo aparentemente generoso àqueles que se aventuram a um convívio mais íntimo, esteja ela mesma fechada ao contato. Ocorre que esse modo reservado de ser aponta para alguma instância que nela surge como fundamental, devendo-se admitir que a reserva é ali, também, uma convocação.
[...]"
C. Ronald e a sua poesia já mereciam um ensaio como este, assinado por Renato Suttana.
OS SETE EPÍGONOS DE TEBAS
de José Carlos Barros
“[…] as mulheres dos montes / viravam os estrados / para o lado de dentro / dos teatros / […]”
“Em vez dos panos nos bastidores: a narrativa – / […] / a libertar-se da âncora genealógica / pela destruição do livro / dos exemplos. […]”
“[…] mudava / os parágrafos / e depois procurava no forno do povo / ou no tanque do largo / ou na lenha de bétula arrumada nos telheiros / o eco da frase inaugural /[…]”
Escolho, mais ou menos ao acaso, alguns versos de um livro de José Carlos Barros, ainda inédito. Quanto mais o leio, mais se aproxima de mim a sua estrutura, os pilares e lintéis de um edifício a que o autor empírico resolveu chamar Os Sete Epígonos de Tebas. Não estou perante uma colectânea de poemas; tenho nas mãos um livro de poesia. E, como qualquer objecto digno dessa classificação (isto é, que não seja apenas uma reportagem ou muita verborreia, empilhadas em linhas que não chegam ao final da folha impressa), escolhe – seguindo a frase de Herberto Helder colocada na obra como epígrafe – a arte “de ver cometas / despenharem-se / nas grandes massas de água”. Ou seja: arrisca assistir ao movimento descendente, violento, de corpos ígneos, cuja matéria entra em contacto explosivo com terra, purificando-a pelo fogo e, depois, pela expansão rápida de um líquido cuja passagem lava o espaço, os seres nele viventes e a sua memória. Terminado o maremoto, o contacto do fogo com a água – que José Carlos Barros parece desejar ver e registar – produz ainda uma matéria volátil: essa “nuvem” ou “névoa” que (segundo um poema do mexicano Luis Arturo Guichard) transforma os campos mais comuns em bosques plenos de mistério, embora quase sempre se veja apagada pelo fumo. E são os adoradores do fumo que vencem a primeira de duas batalhas pela sobrevivência de Tebas. Tebas – uma cidade contaminada por contínuas lutas pelo poder absoluto, condenada à desagregação por ter destruído dessa forma a herança civilizadora de Cadmo, o seu fundador –, que só pelo fogo poderá talvez ser conservada. É essa tentativa de preservação que, na minha leitura, se vê reflectida no livro de José Carlos Barros.
Nos seus poemas contidos, meditativos, este livro tem contudo raros vestígios da narrativa mitológica dos “sete epígonos de Tebas” – da história dos sete chefes militares que vingaram a derrota dos seus ascendentes conquistando, em vez deles, a urbe fundada pelo introdutor mítico do alfabeto fenício no território grego. É, antes, uma reflexão alargada sobre a memória, sobre a passagem do tempo, sobre o seu registo num texto escrito feito poesia e sobre as circunstâncias adversas que este tem de vencer para atingir a sua melhor realização estética e ética. Quem lê “Tebas” nesta obra deve pensar na “escrita” ou na “poesia” (aí renascida pela mão dos gregos ou de fenícios chegados à Grécia), sendo a luta dos “epígonos” (ou seja, dos descendentes) um processo de revitalização – dura e violenta – do texto artístico. É preciso destruir toda a escrita mergulhada no caos dos interesses e do poder temporal para que algo nasça de novo a partir dos alicerces – ainda que os vencedores finais (após a destruição da cidade) sejam sempre acompanhados pelo “opróbio da emulação”, porque “Os heróis” derrotados na primeira refrega “[pereceram] nos campos / de batalha / com a lança dos desastres”.
A vitória contra a erosão dos poderes literários consegue-se através da interioridade (virando “os estrados / para o lado de dentro / dos teatros”) e do espírito (procurando com ironia e desprendimento a “energia eólica” nascida nas “vagarosas pás / dos aerogeradores”), porque – segundo afirma o livro – “há um momento / em que a heresia e a coragem se confundem / e a baixa densidade dos núcleos / remove / por intuição / a desmesura / das memórias / descritivas / dos interesses”. Não esquecendo que é a memória da derrota dos antepassados (esse desenho nos “subterrâneos labirintos” da “cartografia pretérita dos desastres”) que conduz à vitória na guerra pela vertical dignidade da escrita e do texto, contra os seus hábeis manipuladores e niveladores que se servem deles para conseguirem honrarias jornalísticas, académicas e sociais. Porque só essa vitória permite que nunca se quebre, mesmo na humilhação, “esse / fio de novelo / que levava ao ouro e à água subtraída das nascentes: / ao rumor da pedra volátil / do volfrâmio”.
A mensagem de José Carlos Barros neste livro (cujo mérito, muito saliente, João Candeias, Joaquim Cardoso Dias e o autor destas linhas – como membros do júri do Prémio Nacional de Poesia “Sebastião da Gama” – resolveram premiar) é clara e muito importante nestes tempos de alheamento e de confusão: “[…] / ninguém diz uma palavra. / E ninguém se move em redor do lume / com medo / da repercussão / dos desastres”, mas quando alguém procura água que purifique esse silêncio cúmplice e criminoso, “O vedor / [sente] que a vara / [aponta] ao céu: / a nuvem / em vez / das nascentes”. É então que o cometa de Herberto Helder produz o seu incêndio e a sua redenção: “[…] a nuvem das palavras [desce] sobre as tendas / e as dunas da península: / duas mãos” – o passado e o presente?, pergunto – “[tocam-se] / por um instante breve / e [ergue-se] no ar irrespirável / o rumor incandescente / dos incêndios / das florestas”.
Azeitão, 16 de Maio de 2009
Lido por RV na sessão de entrega do Prémio “Sebastião da Gama”
de José Carlos Barros
“[…] as mulheres dos montes / viravam os estrados / para o lado de dentro / dos teatros / […]”
“Em vez dos panos nos bastidores: a narrativa – / […] / a libertar-se da âncora genealógica / pela destruição do livro / dos exemplos. […]”
“[…] mudava / os parágrafos / e depois procurava no forno do povo / ou no tanque do largo / ou na lenha de bétula arrumada nos telheiros / o eco da frase inaugural /[…]”
Escolho, mais ou menos ao acaso, alguns versos de um livro de José Carlos Barros, ainda inédito. Quanto mais o leio, mais se aproxima de mim a sua estrutura, os pilares e lintéis de um edifício a que o autor empírico resolveu chamar Os Sete Epígonos de Tebas. Não estou perante uma colectânea de poemas; tenho nas mãos um livro de poesia. E, como qualquer objecto digno dessa classificação (isto é, que não seja apenas uma reportagem ou muita verborreia, empilhadas em linhas que não chegam ao final da folha impressa), escolhe – seguindo a frase de Herberto Helder colocada na obra como epígrafe – a arte “de ver cometas / despenharem-se / nas grandes massas de água”. Ou seja: arrisca assistir ao movimento descendente, violento, de corpos ígneos, cuja matéria entra em contacto explosivo com terra, purificando-a pelo fogo e, depois, pela expansão rápida de um líquido cuja passagem lava o espaço, os seres nele viventes e a sua memória. Terminado o maremoto, o contacto do fogo com a água – que José Carlos Barros parece desejar ver e registar – produz ainda uma matéria volátil: essa “nuvem” ou “névoa” que (segundo um poema do mexicano Luis Arturo Guichard) transforma os campos mais comuns em bosques plenos de mistério, embora quase sempre se veja apagada pelo fumo. E são os adoradores do fumo que vencem a primeira de duas batalhas pela sobrevivência de Tebas. Tebas – uma cidade contaminada por contínuas lutas pelo poder absoluto, condenada à desagregação por ter destruído dessa forma a herança civilizadora de Cadmo, o seu fundador –, que só pelo fogo poderá talvez ser conservada. É essa tentativa de preservação que, na minha leitura, se vê reflectida no livro de José Carlos Barros.
Nos seus poemas contidos, meditativos, este livro tem contudo raros vestígios da narrativa mitológica dos “sete epígonos de Tebas” – da história dos sete chefes militares que vingaram a derrota dos seus ascendentes conquistando, em vez deles, a urbe fundada pelo introdutor mítico do alfabeto fenício no território grego. É, antes, uma reflexão alargada sobre a memória, sobre a passagem do tempo, sobre o seu registo num texto escrito feito poesia e sobre as circunstâncias adversas que este tem de vencer para atingir a sua melhor realização estética e ética. Quem lê “Tebas” nesta obra deve pensar na “escrita” ou na “poesia” (aí renascida pela mão dos gregos ou de fenícios chegados à Grécia), sendo a luta dos “epígonos” (ou seja, dos descendentes) um processo de revitalização – dura e violenta – do texto artístico. É preciso destruir toda a escrita mergulhada no caos dos interesses e do poder temporal para que algo nasça de novo a partir dos alicerces – ainda que os vencedores finais (após a destruição da cidade) sejam sempre acompanhados pelo “opróbio da emulação”, porque “Os heróis” derrotados na primeira refrega “[pereceram] nos campos / de batalha / com a lança dos desastres”.
A vitória contra a erosão dos poderes literários consegue-se através da interioridade (virando “os estrados / para o lado de dentro / dos teatros”) e do espírito (procurando com ironia e desprendimento a “energia eólica” nascida nas “vagarosas pás / dos aerogeradores”), porque – segundo afirma o livro – “há um momento / em que a heresia e a coragem se confundem / e a baixa densidade dos núcleos / remove / por intuição / a desmesura / das memórias / descritivas / dos interesses”. Não esquecendo que é a memória da derrota dos antepassados (esse desenho nos “subterrâneos labirintos” da “cartografia pretérita dos desastres”) que conduz à vitória na guerra pela vertical dignidade da escrita e do texto, contra os seus hábeis manipuladores e niveladores que se servem deles para conseguirem honrarias jornalísticas, académicas e sociais. Porque só essa vitória permite que nunca se quebre, mesmo na humilhação, “esse / fio de novelo / que levava ao ouro e à água subtraída das nascentes: / ao rumor da pedra volátil / do volfrâmio”.
A mensagem de José Carlos Barros neste livro (cujo mérito, muito saliente, João Candeias, Joaquim Cardoso Dias e o autor destas linhas – como membros do júri do Prémio Nacional de Poesia “Sebastião da Gama” – resolveram premiar) é clara e muito importante nestes tempos de alheamento e de confusão: “[…] / ninguém diz uma palavra. / E ninguém se move em redor do lume / com medo / da repercussão / dos desastres”, mas quando alguém procura água que purifique esse silêncio cúmplice e criminoso, “O vedor / [sente] que a vara / [aponta] ao céu: / a nuvem / em vez / das nascentes”. É então que o cometa de Herberto Helder produz o seu incêndio e a sua redenção: “[…] a nuvem das palavras [desce] sobre as tendas / e as dunas da península: / duas mãos” – o passado e o presente?, pergunto – “[tocam-se] / por um instante breve / e [ergue-se] no ar irrespirável / o rumor incandescente / dos incêndios / das florestas”.
Azeitão, 16 de Maio de 2009
Lido por RV na sessão de entrega do Prémio “Sebastião da Gama”
Maria do Sameiro Barroso
vence Prémio de Poesia António Patrício 2008
Maria do Sameiro Barroso é a vencedora do Prémio de Poesia António Patrício 2008, atribuído pela SOPEAM (Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos) com o livro As Vindimas da Noite. O prémio será entregue no próximo dia 16, às 10h da manhã, na Ordem dos Médicos.
Este livro foi destacado como um dos quatro melhores livros de 2008 pelo Diário de Notícias. Maria do Sameiro Barroso, nascida em Braga, é licenciada em Filologia Germânica, em Medicina e Cirurgia, pela Universidade de Lisboa. Inicialmente vocacionada para a poesia, tem vindo a alargar a sua actividade à tradução de autores de língua alemã, ao ensaio e à investigação no âmbito da História da Medicina.
Obra Poética:
O Rubro das Papoilas, 1.ª ed. 1987; 2.ª ed.1998.
Rósea Litania, 1997 (prefácio de João Rui de Sousa).
Mnemósine, 1997 (prefácio de António Ramos Rosa)
Jardins Imperfeitos, 1999.
Meandros Translúcidos, Labirinto, 2006 (prefácio de António Ramos Rosa).
Amantes da Neblina, Labirinto, 2007 (prefácio de Maria Teresa Dias Furtado).
As Vindimas da Noite, Labirinto, 2008.
Para além do Prémio de Poesia António Patrício 2008, Maria do Sameiro Barroso já tinha ganho o mesmo prémio em 1999 com o livro Jardins Imperfeitos. Recentemente, ganhou o Prémio Poesia Palavra Ibérica 2009 com o original Uma ânfora no Horizonte, instituído pela Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, numa parceria com o Ayuntamiento de Punta Umbria e com a colaboração de Sulscrito – Círculo Literário do Algarve. Este último, será entregue no próximo dia 13, em Vila Real de Stº António, durante as comemorações da fundação daquela cidade.
vence Prémio de Poesia António Patrício 2008
Maria do Sameiro Barroso é a vencedora do Prémio de Poesia António Patrício 2008, atribuído pela SOPEAM (Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos) com o livro As Vindimas da Noite. O prémio será entregue no próximo dia 16, às 10h da manhã, na Ordem dos Médicos.
Este livro foi destacado como um dos quatro melhores livros de 2008 pelo Diário de Notícias. Maria do Sameiro Barroso, nascida em Braga, é licenciada em Filologia Germânica, em Medicina e Cirurgia, pela Universidade de Lisboa. Inicialmente vocacionada para a poesia, tem vindo a alargar a sua actividade à tradução de autores de língua alemã, ao ensaio e à investigação no âmbito da História da Medicina.
Obra Poética:
O Rubro das Papoilas, 1.ª ed. 1987; 2.ª ed.1998.
Rósea Litania, 1997 (prefácio de João Rui de Sousa).
Mnemósine, 1997 (prefácio de António Ramos Rosa)
Jardins Imperfeitos, 1999.
Meandros Translúcidos, Labirinto, 2006 (prefácio de António Ramos Rosa).
Amantes da Neblina, Labirinto, 2007 (prefácio de Maria Teresa Dias Furtado).
As Vindimas da Noite, Labirinto, 2008.
Para além do Prémio de Poesia António Patrício 2008, Maria do Sameiro Barroso já tinha ganho o mesmo prémio em 1999 com o livro Jardins Imperfeitos. Recentemente, ganhou o Prémio Poesia Palavra Ibérica 2009 com o original Uma ânfora no Horizonte, instituído pela Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, numa parceria com o Ayuntamiento de Punta Umbria e com a colaboração de Sulscrito – Círculo Literário do Algarve. Este último, será entregue no próximo dia 13, em Vila Real de Stº António, durante as comemorações da fundação daquela cidade.
Lucilio Santoni
CORPO DE GUERRA
CORPO DE GUERRA
1 (até ao fundo)
Sobretudo de noite, os reflexos prateados excluíam a necessidade de uma conclusão, a iminência de uma conclusão. Mas os olhos rapidamente se dissolvem, se perdem nas cavidades do firmamento num atormentado abraço com a terra.
A luz deste dia não deixa imaginar um poder ser, nem um ser presente, nem um ter sido. Resta tão só um deslizar para o fundo, para buscar quem ainda não se transformou em sombra, silêncio puro.
2 (em exposição)
Se alguém viu a história dos vivos
separados da carne
transformados em ar
água terra e fogo
transformados no sal do mundo,
se alguém viu a história
pela primeira vez,
então pode encontrar também um corpo
exposto aos confins,
em exposição
para dar testemunho da própria vida infame.
3 (fogem)
É um ódio
que vem de outro tempo;
é um desejo que deriva dos séculos.
E agora mesmo eles se perderam,
Perderam a sua própria cidade sem nunca a possuírem.
Por todo o lado, a chuva, os camiões que viajam lentos,
o cansaço, o casaco pesado como um sudário.
Fogem.
4 (quatro)
E não fala
nada diz do seu tormento,
fechada numa língua cheia, pela metade,
de consoantes, confiando-se
à voz dos vingadores e enquanto sonha
delira no final da tarde
chama os mortos, para que venham
à sua festa. A sua respiração leve
é daquelas que deixam imaginar
a perda de tudo.
5 (o ódio)
Quando o sangue e a memória são uma única coisa
não faz falta cumprir a nudez, não faz falta
evitar a tortura, não faz falta salvar a alma.
Basta gritar “odeio todos esses rostos, odeio-os”.
6 (vós)
Fostes chamados
fostes chamados para produzir escombros
para viver o tempo da mentira e das sentinelas.
Assisti agora à corrida dos uniformes
na direcção do mar
também corrompido pelas cidades de areia.
Oh, as fugas… os regressos
as ruínas da primavera, o vidro
opaco que se quebra na mão do viajante antes de chegar à terra prometida.
Os vossos olhos voltarão ao horizonte, para não o verem,
numa inútil dor submersa pela etnia do pó.
7 (pai)
Não é justo que as coisas durem demasiado,
pensou enquanto olhava o desertor que não queria cair.
A claridade seca debaixo da ponte era quase acolhedora
e aquele corpo agitava-se, talvez pela primavera
ou talvez pelas balas que o preenchiam sob a pele.
Imaginou os milénios e os povos, e notava um doce langor
como se a matéria das estrelas lhe entrasse nas artérias.
Pai, recordo que também a ti te custava estar de pé…
Por que não se cai?
8 (oito)
Queimar-se no corpo de outro,
assim sem dar nas vistas
haverá decerto um motivo, um critério, uma razão
e no entanto sustenho a respiração para não chorar
quando a toda a volta não há mais do que aquele corpo imerso no furor
dos soluços. Os documentos queimados, oriente ocidente imenso
desorientado por um corpo e uma voz
que nunca soube de quem fosse ou que razão a mantinha calada.
9 (a brisa entre as oliveiras)
Recordais certamente quanto era triste a brisa entre as oliveiras
naquela hora precisa daquela tarde.
Afirmo, contudo, que a desejei
como por vezes se deseja um coágulo de sangue e de esperança,
Deus que fizeste deste reino um jardim
faz que chegue quanto antes a ressurreição da carne.
A minha boca empastada de palavras irá em procissão, todos os dias até ela
e fá-lo-ei de tal forma que as tuas obras venham em procissão até mim, ao meu corpo
que quer ressuscitar e nada lhe importa, nada mais.
10 (esgotada)
Não haveis visto nada da minha cidade.
Viestes, trouxestes comida e medicamentos, trouxestes armas,
mas nada haveis visto. Tentastes aliviar a nossa via sacra,
experimentastes o fel e a amargura, viestes dar-nos uma oferta régia,
mas não vistes nada.
Eu, senhores, reclinada sobre o flanco, esgotada
ao ponto de não me reconhecer, rogo-vos que não queirais cobrir
que não queirais esconder o meu corpo, para que todos possam ver, finalmente,
a cidade que me dá a alegria, a agonia e a páscoa dentro deste silêncio.
11 (noutro lugar)
Diz que vê, ali, debaixo daquela ponte, que vê os seus semelhantes
em caravana. Abandonam a cidade, seguindo as grandes estradas para norte
até ao norte do mundo. Diz que também ela queria partir
do que lhe resta, deixar aquele corpo, aquela memória imensa
não mais sentir o bafo dos sobreviventes. Diz que vê…
mas enquanto não observa, tem os olhos fechados sobre o tempo
que se esfarela. As perguntas da existência estão todas ali, com calma
se juntam para além do novelo dos sentimentos. Diz que vê
que intui o milénio que está lá fora, mas fora está a história
jogada nas barricadas, cheia de névoas e lendas;
há outro lugar infinito.
12 (doze)
Aqui se cumpre a minha história, ainda que a vida não queira partir, não possa partir. Começa agora o gotejar das palavras vazias, das horas sem sentido. Sinto-me a cair nas cavidades do ser, onde não há voz, onde a escuridão se abriu à escuridão e a terra à terra.
13 (nada mais)
No fim, nada mais. Continuo, porém, a viver, num tempo imprevisível, tão misterioso quanto o passado, nas carícias, e o futuro em que perco o sangue.
NOTA: Estes treze poemas de Lucilio Santoni, primeira parte de Corpo di guerra, livro publicado em Grottammare (Stamperia Dell’ Arancio), na Itália, em Outubro de 2002, serviram de base a uma obra musical homónima, divulgada pela “I CD del Manifesto”,
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