AVELINO DE SOUSA




QUATRO QUASE-SONETOS



1.

Noite escura da alma. Altas portas
que se entreabrem, nos gonzos rangendo.
Como em lagos parados, horas mortas,
vai em meus olhos a luz anoitecendo.


A vela sobre a mesa. Linhas tortas
são as que a mão, tremente, vai escrevendo.
A cera derretida. A quanto exortas
exangue coração que estás ardendo!


Noite escura da alma. São João,
o Baptista, o da Cruz – o que é que importa?
Tudo são coplas, glosas de outras vidas.


Noite escura da alma. Até o cão,
adormecendo, a cabeça deixa cair, absorta,
no vale negro das esperanças perdidas.



2.
Altas as portas nos gonzos rangendo.
Ferrolhos que retinem com fragor.
Espiral de escadarias. Ascendendo
vai a alma. Escuro é o corredor.


A mão que inúteis versos vai escrevendo.
Que ritmo é que a guia, que rumor?
Embalada no rito, nada vendo,
vai a alma. Estreito é o corredor.


Súbito, no patamar ao fim da escada,
uma forma de luz, subido raio,
logo surge em todo o esplendor.


A noite dá lugar à alvorada.
A mão, tremendo, já não escreve nada.
A alma é estrela, enfim, de raro fulgor!



3.
Altas portas fechadas, sem entrada.
Altas portas fechadas, sem batentes.
Todo o céu exterior é uma estrada
que as estrelas polvilham de sementes.


Essa estrada conduz a uma entrada
de um palácio trancado a cadeado.
Altas portas que não se abrem para nada.
Altas portas fechadas sem telhado.


Para sempre fechadas para tudo,
só para a Alma-Estrela sempre abertas
no palácio do seu ser mais profundo.


Todo o céu interior se fecha, mudo,
atrás de portas altas mas secretas,
as mais altas portas do Profundo.



4.
A vela sobre a mesa. Linhas vagas
são as que a mão, tremente, foi escrevendo:
versos velhos, puído ouro de sagas.
E logo a fraca chama escurecendo.


Ali ao lado o escudo e as adagas.
Um som, ao longe, de gonzos rangendo.
Um galo está cantando horas pressagas.
E nos meus olhos a luz esmorecendo.


O cão fiel num sono sem rebate
é uma glosa da alma em noite escura.
Silêncio nos jardins da alvorada!


Só num compasso certo bate, bate
o coração – são coplas de resgate
p’la Alma: Estrela transfigurada!


(in Pastor de Estrelas, edição do autor, 2009)

1 comentário:

Anónimo disse...

Descobri, com surpresa e espanto, neste seu blog, estes quatro quase-sonetos ou pseudo-sonetos.
São uns versos como se fossem musgo com terra a desprender-se deles. Hoje não os saberia imaginar desta forma.
Reconhecido,

Avelino