RÉGIO, FONSECA E PAVIA
(encontro em Portalegre)

Tempo de guerra, 1939 - 1945. Vindo de Flor da Rosa (Crato), Manuel da Fonseca dirige-se a Portalegre, essa cidade em que "certos largos antigos" lhe trazem "à memória, pela solidão e ar de tristeza dos casarões apalaçados, velhos recantos da parte alta de Santiago [do Cacém]". Acompanha-o o pintor Manuel Ribeiro de Pavia. Haviam "combinado, na véspera, ir à pensão onde José Régio costumava comer". Tanto quanto julgavam, era essa a maneira "mais natural e mais rápida de encontrá-lo".
Assim se inicia a crónica de um encontro entre dois escritores e um artista na cidade de Cristóvão Falcão e José Duro. O texto foi publicado nos anos '60 num periódico da capital e encontra-se agora dado à estampa no volume de narrativas intitulado Pessoas na Paisagem, vindo a lume em 2002 na Editorial Caminho.
O almoço na pensão "terminou sem que Régio aparecesse". Encaminharam-se então para um café: "Descendo uma rua íngreme, entrámos num largo triangular e inclinado, com uma palmeira ao meio. Em baixo, havia um café. Portas estreitas, de vidrinhos encaixados, soalho a subir até ao balcão, mesas redondas e de equilíbrio precário, cadeiras de ferro, esquinadas. Sentámos. / Tudo ali era instável, fugidio. De pés bem assentes no soalho, de modo a não sairmos das cadeiras, bebemos os cafés, olhando para aquele largo, semelhante a um muro, por onde a palmeira se alongava, espalmada, e as pessoas surgiam, caminhando como que deitadas".
De súbito, alguém entra. "Era José Régio. Que eu via pela primeira vez, e agora identificava, sem possível engano (...). Apresentei-me." José Maria dos Reis Pereira não o encontrara por acaso: "Em terra pequena, tudo se sabe." O autor de Fado acrescenta: "Tudo, claro, não se sabe, nunca se saberá... Mas os actos exteriores, o que as pessoas praticam, o que elas fazem, isso vê-se." O retrato de Portalegre traçado por Régio é implacável: "É horroroso." (Ainda hoje assim é, meu caro Régio...)
Pavia, que saira do café, encontra-os. Segundo conta o autor de Cerromaior, "Não houve apresentação. (...) os dois homens apertaram as mãos e, sem mais, naturalmente, começaram a falar como se de há muito se conhecessem." Régio levou-os a sua casa, onde se sentia um "sentido misticismo".
Nos dois dias em que se demoraram na cidade, nunca falaram de literatura.
Na tarde em que se despediram, acharam-se no pavimento lajeado de uma igreja. Régio convida Fonseca a entrar e pede-lhe que repare numa pequena imagem abandonada "quase oculta na sombra da parede": "os olhos abriam-se, rasgados, límpidos, de uma ingénua beleza, reflectindo, erradios e desfocados, a dolorida mágoa de um abandono indizível". Régio, o coleccionador e o amante da verdadeira Arte, confessa murmurando: "Venho vê-la todos os dias. (...) E sabe? Já me tem dado vontade de a levar. Que falta faz aqui, se a puseram como que, à margem, sem que que ninguém lhe possa valer?"
Que será feito da imagem que testemunhou o encontro entre os dois escritores, José Régio e Manuel da Fonseca? Terá sido vendida a algum comerciante? Terá apodrecido no seu abandono? Nada sabemos - nem saberemos nunca. Testemunhamos hoje a mesma comoção que levou o poeta tantas vezes àquela igreja...
J. O. TRAVANCA-RÊGO

Recentemente, a Junta de Freguesia de Vila Boim (Elvas), terra natal de J. O. Travanca-Rêgo, resolveu atribuir à biblioteca local o nome do poeta, falecido há cerca de dois anos. Foi uma homenagem significativa que ficará para o futuro. Em finais deste ano, a revista Callipole, de Vila Viçosa, vai editar um bloco de textos em sua memória, com textos de João Rui de Sousa, Nicolau Saião, Levi Condinho, Amadeu Baptista, Fernando Guerreiro, Nuno Rebocho, José do Carmo Francisco, Orlando Neves (a título póstumo), João Candeias, etc.. Aí sairá também este poema, que escrevi como evocação/invocação do companheiro de Letras:

o rosto dissolve a porta,
o tronco da oliveira.
palavras sem sombra
iluminam o calor da morte,
lançando cinza
sobre as águas do baptismo.

o verbo rega
a secura da planície.
filamentos de luz
acompanham ruínas
de uma cidade sem erva.

o sangue arrefece.
um fio de sangue
conduz as palavras,
enterrando a raiz
até ao centro da mina.

o magma acolhe
essa mão que escreve.
(o mármore fragmenta, nestes olhos,
o vento e a fortaleza.)

o sal conserva -
essa carne sem sombra.
a oliveira rebenta.
a raiz descobre-nos

no calor da morte.
DEUS A MENOS

Num seu artigo publicado na Visão de 18 de Agosto, tenta José Saramago provar que os fundamentos do terrorismo residem na existência de Deus, enquanto criação mental do Homem. Afirma, assim, que Deus é um factor de desunião - referindo-se, sobretudo, ao Yawé judaico-cristão e ao Allah muçulmano (que, como se sabe, são um único e mesmo Deus) - , quando esclarece que, para "os que matam em nome de Deus, Deus é não só o juiz que os absolve, é o Pai poderoso que dentro das suas cabeças juntou antes a lenha para o auto-de-fé e agora prepara e coloca a bomba". Apela então: "Discutamos essa invenção, resolvamos esse problema, reconheçamos ao menos que ele existe. Antes que nos tornemos todos loucos. E daí, quem sabe? Talvez essa fosse a maneira de não continuarmos a matar-nos uns aos outros".

Discutamos então. Numa argumentação pouco alicerçada, contraditória e manipuladora, para Saramago o problema da violência está nessa "invenção" chamada "Deus". Afirma mesmo que "não há motivos para temer que chineses, japoneses e indianos, por exemplo, estejam a preparar planos de conquista do mundo, difundindo as suas diversas crenças"... Se assim fosse, teríamos que considerar todos os habitantes desses países como "Homens sem Deus", o que não corresponde à verdade - tal como não corresponde à verdade o seu pressuposto pacifismo que, mesmo "sem Deus" ou com um "Deus pacífico", tem feito os estragos que a História bem conhece...
Se todo o problema da violência estivesse no factor divino, então o mundo estaria hoje muito mais limpo e com muito menores cicatrizes. José Saramago esquece deliberadamente que os maiores morticínios da História recente se devem a projectos de civilização sem Deus, como o Nacional-Socialismo de Hitler ou o Comunismo chino-soviético de Lenine, Estaline, Mao e Fidel Castro. Mas esta realidade não deseja ele recordar aos leitores - não vão estes lançar-lhe à cara a sua nunca desmentida condição de militante vermelho, ele que - como revelou há pouco o poeta José do Carmo Francisco - até usa estratégias estalinistas nos seus livros, quando apaga dedicatórias antigas agora incómodas.
Não nego que os assassinos que promoveram e executaram os crimes da Inquisição e do Fundamentalismo tiveram em mente um "Deus" que lhes emoldurou todos os pretextos que invocaram para executarem os seus crimes. Mas terá Deus culpa se um bando de criminosos (tenham a posição institucional que tiverem) mata outros seres humanos em Seu nome? Se assim fosse, qualquer um de nós (inclusivé Saramago) poderia ser condenado pelos crimes cometidos abusivamente em seu nome - atitude disparatada e violadora do mais elementar sentido de Justiça.
O problema da violência pseudo-religiosa não está num excesso de Deus (ou na existência de Deus, segundo Saramago). O problema da violência está num déficit de Deus na mente de homens que se aproveitam (com consciência ou sem ela) do nome de uma divindade para operarem os seus fins humanos, apenas humanos. Quando Deus é submetido à política, à finança, à ostentação, à inveja, ao "mundo" - começa desde logo a desaparecer na mente dos Homens, para ficar apenas como pretexto para fins quantas vezes inconfessáveis.
Mas, pergunto, quem invoca Deus como pretexto acreditará n' Ele? Duvido, duvido muito...
Se um cristão, um muçulmano, um hindu ou um judeu praticam acções indignas, a culpa não está na entidade divina que invocam (em vão, abusando do Seu nome), mas na indignidade humana que concretizam, na sua imperfeição enquanto seres racionais, na sua animalidade/bestialidade. Um fiel que invoca Deus para justificar um mal que pratica torna-se, imediatamente, num infiel. Desde sempre grandes filósofos e grandes pensadores o afirmaram, porque escreveram sem o preconceito de base que move Saramago - aquele que afirma a inexistência de Deus, mas, depois, invoca essa existência para justificar aquilo que não sabe ou não quer explicar doutro modo.

PS - Nestes tempos em que é mais fácil insultar um cidadão pelas suas ideias do que discuti-las com argumentação sólida, deixo bem clara a minha filiação religiosa, para que não restem dúvidas em relação a ela: cristão católico baptizado e crismado, não tenho quaisquer simpatias pela Inquisição (tive antepassados queimados nos autos-de-fé ateados no Rossio de São Brás, em Évora) nem por outros movimentos ou práticas que abusem do nome de Deus, de Cristo ou de Allah para porem em prática os seus objectivos políticos, territoriais, económicos, financeiros ou pessoais.
Deixo também claro que defendi Saramago contra Sousa Lara, porque não é uma ficção que atacará a verdade sobre Cristo e porque "condenar" um autor com estrondo é lançar-lhe uma passadeira vermelha que talvez não mereça. Conheço porém a estratégia política e comercial de Saramago, que passa quase sempre pela encenação de um papel de vítima... bastante visível no artigo em questão - gato escondido com o rabo de fora.
TERRORISMO

Alguns leitores do Estrada do Alicerce manifestaram-me, através de email, a sua discordância em relação a um post publicado em Julho sobre os fundamentos do terrorismo. Gostaria que abertamente colocassem a sua opinião no espaço destinado aos comentários, pois este blogue é, também, um espaço livre de discussão de ideias. Só discutindo com profundidade e com elevação as nossas ideias poderemos dialogar... sobretudo quanto temos opiniões divergentes.
Quanto ao texto propriamente dito, reafirmo-o, como é óbvio...
ATLÂNTICA

Comprei ontem, na feira do livro de Aljezur, o segundo número da revista Atlântica, editada no Algarve com o intuito de apresentar aos leitores toda a cultura do espaço ibérico e latino-americano.
Entre os motivos de interesse (que são muitos), destaco uma crónica intensa de João de Melo (intitulada "Açores"), as belas fotografias de João Mariano dos apanhadores de percebes da Costa Vicentina, a justíssima evocação de Juan Rulfo, um bom poema de Nuno Júdice...
É comprar e saborear do princípio ao fim.
Já agora, vale a pena procurar também o primeiro número.
LITERATURA, HOJE

Estive a ler no JL mais recente (3/8/2005) uma entrevista de Abel Barros Baptista. Embora aprecie muitos dos seus ensaios, tenho uma opinião reservada sobre o professor da Universidade Nova, sobretudo desde que fui seu aluno. Não obstante ter sido avaliado com uma boa nota nas disciplinas que leccionou, não podia concordar com o programa demasiado abrangente de algumas cadeiras (fiquemos por aqui...). Apesar destas "areias no sapato", li com gosto a entrevista que deu ao JL. Sobretudo a parte em que expõe as suas opiniões sobre o estatuto a Literatura nos dias que vivemos. Aqui ficam algumas passagens:

"(...) é uma pena [que] a maior parte das pessoas não [sejam] capazes de ler um livro de um autor que tenha um vocabulário um pouco mais rico. Até dizem que não vão ler livros que as obrigam a ir ao dicionário, como se tal fosse um defeito do autor e não do leitor. Mas esse é um problema mais complicado que tem a ver com a própria literatura ou com as consequências do facto da literatura ser uma indústria. Os livros tornam-se produtos e os produtos são coisas que as pessoas têm que reconhecer."

"É preciso vender os livros e as pessoas, em geral, não compram as coisas que lhes causem estranheza. Ninguém pensa inventar um frigorífico em que o utente tenha que ler as instruções para saber como se abre a porta. Só que um livro não é um frigorífico ou uma máquina de lavar. Muitas vezes, chegamos ao fim e não percebemos como está organizado. A maior parte das vezes é preciso lê-lo outra vez. As hipóteses de sucesso desses livros são cada vez menores."

"O problema é a concepção actual do que deve ser um livro. Acha-se que se um escritor pode escrever uma frase na ordem directa, com sujeito, predicado e complemento directo, não a deve inverter. Essa recusa de aceitar formas literárias mais elaboradas começa a estruturar aquilo a que hoje se chama público, que por efeito da indústria e do comércio livreiro, reclama o seu produto. Isso não acontecia até meados do século XX, porque havia uma noção de Literatura como Arte."

"[Há] um lugar cada vez mais difícil para a literatura experimental e dá origem ao aparecimento de autores que noutras condições nunca o seriam... Nem precisam de ter a arte de escrever. Escrevem para dizer o que lhes vai na alma, o que pensam."

"Hoje, os escritores medem-se pelo sucesso de vendas. A noção que havia de literatura no século XIX era, de facto, diferente. Dirão muitos que era mais elitista, mas a literatura não é uma coisa democrática. Toda a gente tem o direito de ler e de escrever, mas nem toda a gente sabe ler e escrever livros."
ANTOLOGIA DE POESIA JUDAICA (5)

TEXTO

Nós todos -
pedra, gente, lascas de vidro ao sol,
latas de conserva, gatos e árvores -
somos ilustrações de um texto.

Nalgum lugar não precisam de nós.
Lá é lido o texto somente -
os quadros caem como partes mortas.

Quando a morte venta na profunda relva
e remove do ocidente todos os quadros
que as nuvens construíram - então
vem a noite e lêem as estrelas.

AHRON ZEITLIN (Rússia, séc. XX)
(Trad. J. Guinsburg)
ANTOLOGIA DE POESIA JUDAICA (4)

LUA

Mesmo as imagens familiares têm um instante de nascimento.
Céus sem pássaros
são estranhos e fechados.
A noite fica à janela, ao luar,
e a cidade está mergulhada nas lágrimas dos grilos.

E ao ver que um caminho espera ainda um passante
e a lua
em cima da baioneta do cipreste,
dizes: meu Deus, tudo isso ainda existe?
Pode-se ainda, em voz baixa, perguntar como estão passando?

A água das poças olha-nos e reflecte-nos.
A árvore descansa
com seus brincos vermelhos.
Nunca, meu Deus, arrancarão de mim
o sofrimento dos teus grandes brinquedos.

NATAN ALTERMAN (Polónia, séc. XX)
(Trad. Cecília Meireles)
ANTOLOGIA DE POESIA JUDAICA (3)

HAMLET

O murmúrio cessou. Subo ao tablado.
Apoiado ao umbral da porta,
Procuro distinguir no eco apagado
Os desígnios da minha sorte.

A penumbra da noite me devassa
Por trás de mil binóculos iguais.
Se for possível, Aba, meu pai,
Afasta de mim essa taça.

Amo a Tua obstinada trama
e aceito o papel que me foi dado.
Mas agora representam outro drama.
Ao menos dessa vez, deixa-me de lado.

Mas a ordem das cenas foi prevista
E a estrada chega fatalmente ao fim.
Estou só. Tudo afunda em farisaísmo.
Viver não é passear por um jardim.

BORIS PASTERNAK (Rússia, séc.XX)
(Tradução de Augusto de Campos)

ANTOLOGIA DE POESIA JUDAICA (2)

KOHELET

Esperei e trabalhei
Para ganhar o meu ócio,
Até que a solidão me enfadou
E me entreguei ao gozo árido.

Bebi e joguei,
Festejei e dissipei,
Até que, enfermo e envergonhado,
A comida ficou insonsa.

Procurei no Livro
Por radicais convicções,
Até que o cansado cérebro oscilou
Com as próprias contradições.

Então, farto dos ditos,
Da tolice posta em rótulos,
Principiei a ensinar
Que na vida não se melhora:

Que o combatente falha
Qualquer que seja a arma,
E nada se aproveita
Enquanto tempo e acaso passam.

Que os tolos que afirmam os homens
Com mentiras são respeitados,
Enquanto a imaginação dos puros
É escarnecida e rejeitada.

Que um sábio continua afligindo-se
Mesmo em Sião,
Enquanto qualquer cão vivo
Ruge mais do que um leão morto.

LOUIS UNTERMEYER (E.U.A., séc. XX)
(Trad. de Zulmira Ribeiro Tavares, revista por RV)