AINDA OS PROSÉLITOS
DO NEONATURALISMO
A atenção de uma leitora levou-me à descoberta deste texto sobre meu artigo "Prosélitos do Neonaturalismo". Vale a pena ser lido. Para verificardes a reacção de certos prosélitos ou seus simpatizantes, tem interesse também espreitar a caixa de comentários.
João Garção
FOTO DE ABRIL
O pai chegava tarde…A mãe e os avós
(que o mano era pequeno) estavam sempre comigo.
Então o pai chegava, perguntava da escola
perguntava das coisas que a mãe lhe sussurrava.
A escola era a Escola onde eu agora andava.
E a mãe pela manhã falava devagar
arranjava-me o lanche, chamava-lhe merenda
e eu ia no autocarro (sem o mano que tinha)
Eu não sabia de anos só sabia de meses
- o que a mãe me ensinara e que na escola aprendia –
(o mano era pequeno!) eu jogava sozinho.
O pai que vinha tarde não jogava comigo.
E o pai que vinha tarde mesmo se era Domingo
chegou perto da porta na manhã daquele dia.
Havia gente na rua e gente que gritava
E na televisão muitos desconhecidos.
E o pai depois daquilo disse-me: anda jogar
Anda jogar meu filho pois já não há fascismo.
E o pai que vinha tarde jogou comigo à bola
na rua da Amoreira a rua pequenina
E a mãe chorou ao ver-nos e eu não a entendia
a mãe que era só minha (e do mano que havia)
Eu sabia de meses mas não sabia de anos
E jogava com o pai pois já não há fascismo
A avó não gritava Levava-me p’la mão
até ao autocarro E para a Escolas eu ia
Sozinho ia p’rá Escola (o mano era pequeno…)
- E eu e o pai jogávamos quando eu de lá vinha
Jogávamos jogávamos – eu e o pai jogávamos
E o mano (era pequeno!) olhava sentadinho
E a mãe também por vezes nos olhava a jogar
Pois já não há fascismo Pois já não há fascismo!
(Publicado em antologia com o nome de F.Frazão.
O garoto/personagem obviamente cresceu e é hoje o triplóvico João Garção.)
ANTOLOGIA
DA POESIA PORTUGUESA
CONTEMPORÂNEA
EM ALEMÃO
A Universitäts-Verlag Bamberg acaba de publicar na Alemanhã uma antologia de poesia portuguesa contemporânea. A organização e tradução do volume é assinada Eberhard Geisler, professor na Universidade de Mainz. A obra, intitulada Die Landschaft füllt sich mit Zeichen e publicada em edição bilingue, conta com traduções para a língua de Goethe de poemas de Al Berto, Ana Luísa Amaral, Paulo Teixeira, Luís Quintais, valter hugo mãe e de Ruy Ventura, coordenador deste blogue.
SALAZAR NÃO ERA LADRÃO?
"[Há quem diga que] Salazar não era ladrão. É verdade, ou julgo que é verdade - mas no plano individual. Em política, é diferente: Salazar era "ladrão", mas um ladrão ideológico e conceptual, pois roubou (com o apoio duma camarilha fascizante) a Portugal o desenvolvimento, o livre exame e a liberdade. É dessa acção que ainda agora estamos a sofrer os efeitos negativos. Vejamos: um homem público, um dirigente, não é comparável a uma governanta ou um mordomo - honestinhos e de boas maneiras. Um dirigente, um governante, tem de ter outros requisitos: capacidade de gestão, de previsão do futuro, de bom manejo do presente. Não basta que um governante não ande a roubar carteiras publicamente. Não basta que um governante seja casto ou delicadinho com os porteiros dos ministérios. O cargo tem outro nível e outro patamar de exigencia conceptual: Churchill era um gastrónomo, ao contrário do frugal Salazar; um mulherengo, ao contrário do decentíssimo e familiar Cavaco; um amante do copo e do fumo, ao invés do contido e respeitável Marques Mendes - mas era um grande estadista, enquanto estes decentes cidadãos não passam de medíocres enquanto homens públicos. O que se exige de um político bom é que seja positivo para o progresso da nação e do povo. Não se julga um político pelos mesmos critérios com que se julgaria um desejável genro nosso ou um vizinho num condomínio ou num prédio. Disraeli era um beberrão, Pompidou era um gastador na sua vida privada - mas foram grandes homens. Salazar era um padreca de bons modos - mas fez o povo sofrer com a sua mentalidade de capataz de quinta beirão. Foi devido à herança mental de Salazar que Portugal se atrasou. Torga bem o disse: "O pior mal que Salazar fez aos portugueses não foi tanto tirar-lhes o pão mas, sobretudo, tirar-lhes a coragem de viver autonomamente e a imaginação de existir". Podia ser honesto na sua domesticidade, mas pública e politicamente foi, de facto, um salafrário. Que ainda nos está, mediante a sua memória inscrita na mente de ingénuos ou mal-intencionados, a prejudicar e muito."
Armando Manjamanga (in Portugal Diário)
"[Há quem diga que] Salazar não era ladrão. É verdade, ou julgo que é verdade - mas no plano individual. Em política, é diferente: Salazar era "ladrão", mas um ladrão ideológico e conceptual, pois roubou (com o apoio duma camarilha fascizante) a Portugal o desenvolvimento, o livre exame e a liberdade. É dessa acção que ainda agora estamos a sofrer os efeitos negativos. Vejamos: um homem público, um dirigente, não é comparável a uma governanta ou um mordomo - honestinhos e de boas maneiras. Um dirigente, um governante, tem de ter outros requisitos: capacidade de gestão, de previsão do futuro, de bom manejo do presente. Não basta que um governante não ande a roubar carteiras publicamente. Não basta que um governante seja casto ou delicadinho com os porteiros dos ministérios. O cargo tem outro nível e outro patamar de exigencia conceptual: Churchill era um gastrónomo, ao contrário do frugal Salazar; um mulherengo, ao contrário do decentíssimo e familiar Cavaco; um amante do copo e do fumo, ao invés do contido e respeitável Marques Mendes - mas era um grande estadista, enquanto estes decentes cidadãos não passam de medíocres enquanto homens públicos. O que se exige de um político bom é que seja positivo para o progresso da nação e do povo. Não se julga um político pelos mesmos critérios com que se julgaria um desejável genro nosso ou um vizinho num condomínio ou num prédio. Disraeli era um beberrão, Pompidou era um gastador na sua vida privada - mas foram grandes homens. Salazar era um padreca de bons modos - mas fez o povo sofrer com a sua mentalidade de capataz de quinta beirão. Foi devido à herança mental de Salazar que Portugal se atrasou. Torga bem o disse: "O pior mal que Salazar fez aos portugueses não foi tanto tirar-lhes o pão mas, sobretudo, tirar-lhes a coragem de viver autonomamente e a imaginação de existir". Podia ser honesto na sua domesticidade, mas pública e politicamente foi, de facto, um salafrário. Que ainda nos está, mediante a sua memória inscrita na mente de ingénuos ou mal-intencionados, a prejudicar e muito."
Armando Manjamanga (in Portugal Diário)
José do Carmo Francisco
Um scotch para Maria José
O whisky que me ofereceste hoje, como resgate de um Natal sem ponto de encontro possível na rigidez dos horários e na força opressiva das convenções quotidianas, tem doze anos. Ostenta mesmo um insuspeito certificado emitido pela destilaria que o fabricou afirmando que foi mesmo há doze anos que se juntou o malte à mais pura das águas das terras altas da Escócia.
Mas nós não temos doze anos. Temos muitos mais. Eu comecei a querer conhecer-te em 1976, o mesmo é dizer trinta anos, quando chegaste de um banco comercial mais pequeno que o nosso e ficaste admirada com a vivacidade dos nosso plenários. No teu pequeno banco no largo do Rossio toda a gente se conhecia e não havia plenários com votações de braço no ar.
Junto dois cubos de gelo ao whisky no qual fizeste para mim uma festa de Natal em Abril e bebo de puro prazer à tua saúde. E também à nossa.
Ter saúde é tu continuares a ser aquela mulher-menina que corava com as piadas mais desenvoltas e picantes de um grupo numeroso e habituado a trabalhar num grande espaço e em quantidades industriais. Tu vinhas até nós, simples, paciente e discreta, mas na verdade chegavas de uma espécie de oficina de artesanato. Nós éramos muitos e, nessa escala, éramos uma grande fábrica. O teu banco era pequenino; o nosso era um colosso.
Ter saúde é eu poder continuar a ver nos teus olhos a frescura da água que desce da tua terra até ao leito do afluente mais bonito do Rio Mondego. Ter saúde é eu poder continuar a cantar em prosa e em verso o som da tua voz que multiplica os sons da terra. Ou do teu rosto onde há sementeiras de luz e de ternura. Hoje como em 1976 continuas a ser uma mulher-menina a corar perante uma piada de escritório.
Um scotch para Maria José
O whisky que me ofereceste hoje, como resgate de um Natal sem ponto de encontro possível na rigidez dos horários e na força opressiva das convenções quotidianas, tem doze anos. Ostenta mesmo um insuspeito certificado emitido pela destilaria que o fabricou afirmando que foi mesmo há doze anos que se juntou o malte à mais pura das águas das terras altas da Escócia.
Mas nós não temos doze anos. Temos muitos mais. Eu comecei a querer conhecer-te em 1976, o mesmo é dizer trinta anos, quando chegaste de um banco comercial mais pequeno que o nosso e ficaste admirada com a vivacidade dos nosso plenários. No teu pequeno banco no largo do Rossio toda a gente se conhecia e não havia plenários com votações de braço no ar.
Junto dois cubos de gelo ao whisky no qual fizeste para mim uma festa de Natal em Abril e bebo de puro prazer à tua saúde. E também à nossa.
Ter saúde é tu continuares a ser aquela mulher-menina que corava com as piadas mais desenvoltas e picantes de um grupo numeroso e habituado a trabalhar num grande espaço e em quantidades industriais. Tu vinhas até nós, simples, paciente e discreta, mas na verdade chegavas de uma espécie de oficina de artesanato. Nós éramos muitos e, nessa escala, éramos uma grande fábrica. O teu banco era pequenino; o nosso era um colosso.
Ter saúde é eu poder continuar a ver nos teus olhos a frescura da água que desce da tua terra até ao leito do afluente mais bonito do Rio Mondego. Ter saúde é eu poder continuar a cantar em prosa e em verso o som da tua voz que multiplica os sons da terra. Ou do teu rosto onde há sementeiras de luz e de ternura. Hoje como em 1976 continuas a ser uma mulher-menina a corar perante uma piada de escritório.
ENGANOS
Umas das vantagens da internet é conseguirmos aceder a informações e opiniões livres de censura, daquela censura que normalmente corta a dignidade dos seres humanos, impondo-lhes o medo.
Há poucos dias descobri este comentário no Portugal Diário sobre uma realidade que, pela geografia, me é muito próxima. Embora não concorde com tudo quanto afirma (não estou convencido da inocência de Sócrates e sei que o anterior bispo de Portalegre, antes de se aposentar, expulsou dos seus domínios os burlões que por lá havia), aqui o deixo à consideração dos leitores:
Lopo de Carvalho
2007-04-15 01:17
Em sã consciência, não me parece que o chefe do governo se tenha metido em falsificações ou enganos quanto às suas habilitações literárias. Mais tarde ou mais cedo isso será claro. No entanto, é facto que em Portugal há pessoas, gente decerto disfuncional, que se arroga ter curso superior sem de facto o ter. No Alentejo, mais concretamente na cidade de Portalegre, conhecem-se dois casos que são públicos e manifestos, ainda que um tenha tido mais divulgação: o de um indivíduo que durante cerca de um quarto de século desempenhou o cargo de professor e até de director dum estabelecimento de ensino sem ter habilitações próprias, pois forjara os documentos que o davam como licenciado. O caso está sob a alçada da Policia Judiciária. Outro caso é o de um fulano que, sem ter também habilitação apropriada, se apresentou durante cerca de vinte anos como doutor, chegando a desempenhar um cargo de relevo num periódico portalegrense, onde perseguia quem não lhe agradava e agia discricionariamente. Em diversas ocasiões chegou a participar em "sessões culturais" junto do anterior Bispo de Portalegre e Castelo Branco, deixando que o apresentassem como doutor. Hoje sabe-se que não é assim por, de acordo com o que referiu na rádio local um conhecido articulista da mesma, ter sido desmascarado. Mas o mais estranho é que, apesar disto, já tem sido convidado para algumas sessões na Biblioteca daquela cidade, onde continua a ser apresentado como doutor. É um caso insofismável e pergunta-se: o ministério da Educação, através dos funcionários dos ramos intermédios locais, tem conhecimento deste caso? Se não tem, é muito estranho que ainda não tenha. Mas se tem, porque deixa que exista um caso tão esquisito...e disfuncional? Aquela parte do Alentejo não se rege por leis como o resto de Portugal?
Umas das vantagens da internet é conseguirmos aceder a informações e opiniões livres de censura, daquela censura que normalmente corta a dignidade dos seres humanos, impondo-lhes o medo.
Há poucos dias descobri este comentário no Portugal Diário sobre uma realidade que, pela geografia, me é muito próxima. Embora não concorde com tudo quanto afirma (não estou convencido da inocência de Sócrates e sei que o anterior bispo de Portalegre, antes de se aposentar, expulsou dos seus domínios os burlões que por lá havia), aqui o deixo à consideração dos leitores:
Lopo de Carvalho
2007-04-15 01:17
Em sã consciência, não me parece que o chefe do governo se tenha metido em falsificações ou enganos quanto às suas habilitações literárias. Mais tarde ou mais cedo isso será claro. No entanto, é facto que em Portugal há pessoas, gente decerto disfuncional, que se arroga ter curso superior sem de facto o ter. No Alentejo, mais concretamente na cidade de Portalegre, conhecem-se dois casos que são públicos e manifestos, ainda que um tenha tido mais divulgação: o de um indivíduo que durante cerca de um quarto de século desempenhou o cargo de professor e até de director dum estabelecimento de ensino sem ter habilitações próprias, pois forjara os documentos que o davam como licenciado. O caso está sob a alçada da Policia Judiciária. Outro caso é o de um fulano que, sem ter também habilitação apropriada, se apresentou durante cerca de vinte anos como doutor, chegando a desempenhar um cargo de relevo num periódico portalegrense, onde perseguia quem não lhe agradava e agia discricionariamente. Em diversas ocasiões chegou a participar em "sessões culturais" junto do anterior Bispo de Portalegre e Castelo Branco, deixando que o apresentassem como doutor. Hoje sabe-se que não é assim por, de acordo com o que referiu na rádio local um conhecido articulista da mesma, ter sido desmascarado. Mas o mais estranho é que, apesar disto, já tem sido convidado para algumas sessões na Biblioteca daquela cidade, onde continua a ser apresentado como doutor. É um caso insofismável e pergunta-se: o ministério da Educação, através dos funcionários dos ramos intermédios locais, tem conhecimento deste caso? Se não tem, é muito estranho que ainda não tenha. Mas se tem, porque deixa que exista um caso tão esquisito...e disfuncional? Aquela parte do Alentejo não se rege por leis como o resto de Portugal?
De vez em quando apetece-me visitar Brian Strang e contemplar as suas pinturas. Nelas, a imanência do universo, natural ou construída pelos homens, dialoga com as palavras para nos reconciliar com o mundo cão em que vivemos.
translação
mãos (e outros símbolos)
pairam sobre nós criando
formas imperfeitas
que os olhos não conseguem fixar.
círculos de fogo (ou de vento)
sobrepõem-se ao tronco e à cinza
e tentam contrariar o elevador
que desce até ao fundo
atravessando sedimentos, ossos
e outros restos orgânicos.
nenhuma ave
poderia representar a ambivalência
da paisagem. nessa fronteira
entre concreto e abstracto
apenas símbolos e raízes
guardam força suficiente
para resistirem ao terramoto.
é impossível seguir
o movimento das mãos. sopro e metal
transcendem juntos os átomos
e a matéria. no eixo do mundo
preparam sobre os olhos
a outra translação da imagem.
paz e ciência
transmitem à nascente
a direcção do vento.
um nome nos bastaria
para que a pudéssemos alcançar.
("Pás de Vento, Ventos de Paz", esculturas de José Aurélio, 2006)
mãos (e outros símbolos)
pairam sobre nós criando
formas imperfeitas
que os olhos não conseguem fixar.
círculos de fogo (ou de vento)
sobrepõem-se ao tronco e à cinza
e tentam contrariar o elevador
que desce até ao fundo
atravessando sedimentos, ossos
e outros restos orgânicos.
nenhuma ave
poderia representar a ambivalência
da paisagem. nessa fronteira
entre concreto e abstracto
apenas símbolos e raízes
guardam força suficiente
para resistirem ao terramoto.
é impossível seguir
o movimento das mãos. sopro e metal
transcendem juntos os átomos
e a matéria. no eixo do mundo
preparam sobre os olhos
a outra translação da imagem.
paz e ciência
transmitem à nascente
a direcção do vento.
um nome nos bastaria
para que a pudéssemos alcançar.
("Pás de Vento, Ventos de Paz", esculturas de José Aurélio, 2006)
Foi lançada no passado dia 15 de Abril a antologia Poetas na Surrealidade em Estremoz, organizada por Nicolau Saião e editada pela Câmara Municipal dessa cidade alentejana, através do Museu Dr. Joaquim Vermelho. Vale a pena procurá-la e lê-la com a atenção que merece.
José do Carmo Francisco
O Mundo e o Tempo
de Maria José
O modo como desenhas o teu sorriso no passeio desta avenida, entre a pressa sem sentido e o vazio projectado pelo caos do movimento do trânsito, cria, no meu olhar, um outro espaço como se, de súbito, nascesse uma serra por detrás da Fonte Luminosa. A tua serra. O teu espaço. A tua geografia. O teu lugar onde o tempo respira mais de acordo com o sol, com a água e com a terra. Há no teu sorriso uma espécie de antecâmara de um mundo equilibrado entre silêncios e canções, entre frio e calor, entre fogo e água. Depois do sorriso vem a voz, hoje como sempre juvenil. Voz de menina em corpo de mulher. A empurrar as sombras, as tristezas desenhadas, os quartos e os corredores povoados pelo vazio e pela saudade.
Sempre que tu trazes um garrafão com água da tua terra eu sei e sinto que é tudo, todo um mundo, aquilo que trazes na água. A água propriamente dita, o pó suspenso no ar depois da passagem de um automóvel veloz, a terra húmida depois da chuva, as pedras gigantes da serra, as pequenas ermidas onde os devotos vão entregar garrafas de azeite para alumiar a imagem da padroeira, o silêncio da noite, o escuro lençol que tudo tapa quando o sol dá a sua dádiva de luz aos que vivem do outro lado da terra. Todo o teu modo e todo o teu tempo. A tua geografia e o teu pensamento interior. Um dia comerei contigo essa sopa feita com a água da tua terra trazida para Lisboa num garrafão. Para então poder apontar num poema de circunstância essa tua tão própria e pessoal arte do encontro. Ou seja, a tua capacidade para fazeres de uma refeição o lugar do encontro entre dois mundo separados pelas convenções, pelas conveniências e pela pressa sem sentido do nosso quotidiano citadino.
O Mundo e o Tempo
de Maria José
O modo como desenhas o teu sorriso no passeio desta avenida, entre a pressa sem sentido e o vazio projectado pelo caos do movimento do trânsito, cria, no meu olhar, um outro espaço como se, de súbito, nascesse uma serra por detrás da Fonte Luminosa. A tua serra. O teu espaço. A tua geografia. O teu lugar onde o tempo respira mais de acordo com o sol, com a água e com a terra. Há no teu sorriso uma espécie de antecâmara de um mundo equilibrado entre silêncios e canções, entre frio e calor, entre fogo e água. Depois do sorriso vem a voz, hoje como sempre juvenil. Voz de menina em corpo de mulher. A empurrar as sombras, as tristezas desenhadas, os quartos e os corredores povoados pelo vazio e pela saudade.
Sempre que tu trazes um garrafão com água da tua terra eu sei e sinto que é tudo, todo um mundo, aquilo que trazes na água. A água propriamente dita, o pó suspenso no ar depois da passagem de um automóvel veloz, a terra húmida depois da chuva, as pedras gigantes da serra, as pequenas ermidas onde os devotos vão entregar garrafas de azeite para alumiar a imagem da padroeira, o silêncio da noite, o escuro lençol que tudo tapa quando o sol dá a sua dádiva de luz aos que vivem do outro lado da terra. Todo o teu modo e todo o teu tempo. A tua geografia e o teu pensamento interior. Um dia comerei contigo essa sopa feita com a água da tua terra trazida para Lisboa num garrafão. Para então poder apontar num poema de circunstância essa tua tão própria e pessoal arte do encontro. Ou seja, a tua capacidade para fazeres de uma refeição o lugar do encontro entre dois mundo separados pelas convenções, pelas conveniências e pela pressa sem sentido do nosso quotidiano citadino.
NO SIGNO DO 7
Iniciou-se no passado dia 10 de Março, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, o ciclo de colóquios intitulado "No signo do 7". As primeiras conferências tiveram como tema "Sampaio Bruno e a Renascença Portuguesa", com intervenções de Elísio Gala, António Telmo e Pedro Sinde.
No próximo sábado, 14, pelas 16 horas, teremos uma série de palestras sobre "A Razão Animada, o 57 e a Filosofia Portuguesa", com Pinharanda Gomes, Pedro Martins, Carlos Aurélio e António Carlos Carvalho, moderada por Luís Paixão.
O interesse da iniciativa merece a nossa assistência. Entretanto, iremos dando notícia dos colóquios seguintes.
SAÚL DIAS
Eu não quero esquecer os dias que viveram.
Por eles escrevi estes versos mofinos;
escrevi-os à tarde ouvindo rir meninos,
meninos loiro-sóis que bem cedo morreram.
Eu não quero esquecer os dias que enumeram
desejos e prazeres, rezas e desatinos;
e, em loucuras ou entoando hinos,
lá na Curva da Estrada, azuis, desapareceram.
Eu não quero esquecer dos dias mais felizes
a bênção branca-e-astral, lá das Alturas vinda,
nem tampouco o travor das horas infelizes.
Eu não quero esquecer... Quero viver ainda
o tempo que secou, mas que deixou raízes,
Por eles escrevi estes versos mofinos;
escrevi-os à tarde ouvindo rir meninos,
meninos loiro-sóis que bem cedo morreram.
Eu não quero esquecer os dias que enumeram
desejos e prazeres, rezas e desatinos;
e, em loucuras ou entoando hinos,
lá na Curva da Estrada, azuis, desapareceram.
Eu não quero esquecer dos dias mais felizes
a bênção branca-e-astral, lá das Alturas vinda,
nem tampouco o travor das horas infelizes.
Eu não quero esquecer... Quero viver ainda
o tempo que secou, mas que deixou raízes,
e em verde volverá, e florirá ainda...
(in Ainda, 1938)
José do Carmo Francisco
Anabela na Coelho da Rocha
Uma lisboeta exilada
Numa terra de nevoeiro
Chega ao fim da estrada
Fica no mês de Fevereiro
Tem saudades verdadeiras
Dos lugares e capelistas
Onde havia sardinheiras
E se compravam revistas
Plateia, Século Ilustrado
Flama, Crónica Feminina
Os homens iam para o lado
As mulheres junto à esquina
Onde grupos de varinas
Vendiam o peixe na rua
E no pó das oficinas
Dormia a sombra da lua
Onde ainda havia carroças
Petróleo, azeite, verduras
As batas brancas das moças
Eram luz das ruas escuras
Onde o vinho e o carvão
Se vendiam numa taberna
E os copos desse balcão
Brilhavam pela lanterna
Onde havia barbearias
E retratos pendurados
Falavam todos os dias
De jogadores admirados
Onde à noite os ardinas
Trazem notícias na mão
As palavras pequeninas
Não chegam ao coração
Eléctricos de atrelado
Com bilhetes de operário
Na paragem do passado
A vida anda ao contrário
Ninguém toca campainha
A dar o sinal de partida
No assento de palhinha
Está sentada a nossa vida
É uma vida misteriosa
Que fica por desvendar
E a poesia tão teimosa
Não desiste de cantar
Uma lisboeta isolada
Numa terra de nevoeiro
Chega ao fim da estrada
Fica no mês de Fevereiro
Casa Fernando Pessoa, 30-11-2006
Anabela na Coelho da Rocha
Uma lisboeta exilada
Numa terra de nevoeiro
Chega ao fim da estrada
Fica no mês de Fevereiro
Tem saudades verdadeiras
Dos lugares e capelistas
Onde havia sardinheiras
E se compravam revistas
Plateia, Século Ilustrado
Flama, Crónica Feminina
Os homens iam para o lado
As mulheres junto à esquina
Onde grupos de varinas
Vendiam o peixe na rua
E no pó das oficinas
Dormia a sombra da lua
Onde ainda havia carroças
Petróleo, azeite, verduras
As batas brancas das moças
Eram luz das ruas escuras
Onde o vinho e o carvão
Se vendiam numa taberna
E os copos desse balcão
Brilhavam pela lanterna
Onde havia barbearias
E retratos pendurados
Falavam todos os dias
De jogadores admirados
Onde à noite os ardinas
Trazem notícias na mão
As palavras pequeninas
Não chegam ao coração
Eléctricos de atrelado
Com bilhetes de operário
Na paragem do passado
A vida anda ao contrário
Ninguém toca campainha
A dar o sinal de partida
No assento de palhinha
Está sentada a nossa vida
É uma vida misteriosa
Que fica por desvendar
E a poesia tão teimosa
Não desiste de cantar
Uma lisboeta isolada
Numa terra de nevoeiro
Chega ao fim da estrada
Fica no mês de Fevereiro
Casa Fernando Pessoa, 30-11-2006
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