José do Carmo Francisco
«Não ponha o insecticida na salada!»
Foi no tempo da «Estrada de macadame» que eu vivi os quatro anos da então chamada Escola Primária, além do exame de admissão à Escola Técnica e ao Liceu. Entrei em Outubro de 1958 para a Escola Primária do Montijo e lá fiz a primeira classe. No ano seguinte, fiz a segunda classe. Entretanto fui fazer a terceira classe a Santa Catarina com o respectivo exame a ser realizado nas Caldas da Rainha em Abril de 1961 na escola que era também delegação escolar, entre o cemitério e o parque de campismo. Voltei em Julho desse ano para fazer o exame da quarta classe e um mês depois lá estava em Leiria a vencer os exames de admissão à Escola Técnica e ao Liceu Nacional. Em Vila Franca de Xira vivi a partir de Outubro de 1961, onde fiz o Ciclo Preparatório e o Curso Geral do Comércio e tive a grande sorte de ficar livre das actividades da Mocidade Portuguesa graças ao simpático contínuo senhor Moreira. Com a desculpa de não ter dinheiro para a farda, acabei por não ter que cantar a célebre marcha com poema de Mário Beirão, do seu livro Novas estrelas – «Lá vamos cantando e rindo / levados, levados sim».
Este incidente numa escola secundária do Porto, mostrado em todas as televisões, com uma aluna de quinze anos a empurrar com violência uma professora por causa de um telemóvel, lembrou-me a célebre frase do programa de Jô Soares «Viva o Gordo! Abaixo o regime!» quando um grupo de meninas com as suas saias muito curtas e os seus decotes muito compridos gritava para o artista, desmoralizado porque tinha acreditado em tudo o que diziam na televisão, enchendo com o seu corpo um caixote de lixo: «Não ponha o insecticida na salada! Veja o que está fazendo!»
Estes alunos de 2008 que empurram professores porque não dispensam o telemóvel mesmo durante as aulas, são aquilo a que eu chamo a geração «Morangos com veneno». Toda a gente lhe chama «Morangos com açúcar» mas eu chamo e sempre chamei «Morangos com veneno». Outra coisa não posso chamar a uma gentinha que vê na televisão um miúdo com uma prancha de surf na mão esquerda e um copo de água tónica na mão direita e pensa que a vida real é isso. Um gentinha que dá um beijo ao fim de dois minutos de ter sido apresentada a outra gentinha num bar de uma praia. E pensa que a realidade é isso, esse beijo dado dois minutos depois da apresentação, sem esquecer a prancha de surf e o copo de água tónica. E pensa que a realidade real é isso, essa mistura de aventura e de imponderabilidade num lugar onde ninguém é responsável por nada mas onde tudo pode acontecer. A felicidade pode acontecer sem motivos, sem encontro, sem esforço, sem generosidade, apenas por acaso, apenas porque o filme é assim.
Uma geração que empurra a professora porque não percebe que o telemóvel tem que estar desligado durante uma aula, é uma geração que nunca ouvirá o grito das meninas do Jô Soares «Não ponha o insecticida na salada!» porque simplesmente eles não ouvem nada. A não ser os seus telemóveis. Além de tudo o mais, eles continuam a pensar que os morangos que a televisão lhes serve todos os dias são acompanhados com açúcar mas na verdade são morangos com veneno. Tudo aquilo é venenoso.
Jô Soares no programa «Viva o Gordo! Abaixo o regime!» quer colocar insecticida na salada porque descobre que o que dizem na TV é uma mentira. Os meninos que empurram as professoras por causa dos telemóveis não percebem que a TV é uma mentira e o mal é que já não vão a tempo de perceber.
(Publicado in Gazeta das Caldas)
A MANDRÁGORA EM BICICLETA
Vai, em breve, sair mais um número de Bicicleta, organizada por Manuel Almeida e Sousa e dirigida por Bruno Vilão. A revista, em fase de impressão, trabalha sem rede; por outras palavras, tal como os anteriores números, não tem subsídio e acontece por ternura teatral da Mandrágora.
Será lançada no decorrer da Edita de Punta Umbria (princípio de Abril).
Há nela colaborações de Antonio Gomez, Renato Suttana, A.Sousa, B. Vilão, Fernando Aguiar, Vergílio Alberto Vieira, Clemente Padin, Uberto Stabile, Pedro Serra, João Bentes, Gonçalo Mattos, traduções de Georges Ribemont- Dessaignes e Tristan Tzara e dois poemas referentes a Luiz Pacheco, Lud e Pedro Oom, além de uma carta inédita de Mário Cesariny dirigida a NS. A encerrar condignamente, o geral da peça em representação, sobre texto de Maquiavel transtornado por Almeida e Sousa. E um pequeno manifesto para condimentar.
A Bicicleta será uma das revistas que estarão presentes na Bienal do Livro e das Artes do Ceará (Fortaleza) deste ano.
Vai, em breve, sair mais um número de Bicicleta, organizada por Manuel Almeida e Sousa e dirigida por Bruno Vilão. A revista, em fase de impressão, trabalha sem rede; por outras palavras, tal como os anteriores números, não tem subsídio e acontece por ternura teatral da Mandrágora.
Será lançada no decorrer da Edita de Punta Umbria (princípio de Abril).
Há nela colaborações de Antonio Gomez, Renato Suttana, A.Sousa, B. Vilão, Fernando Aguiar, Vergílio Alberto Vieira, Clemente Padin, Uberto Stabile, Pedro Serra, João Bentes, Gonçalo Mattos, traduções de Georges Ribemont- Dessaignes e Tristan Tzara e dois poemas referentes a Luiz Pacheco, Lud e Pedro Oom, além de uma carta inédita de Mário Cesariny dirigida a NS. A encerrar condignamente, o geral da peça em representação, sobre texto de Maquiavel transtornado por Almeida e Sousa. E um pequeno manifesto para condimentar.
A Bicicleta será uma das revistas que estarão presentes na Bienal do Livro e das Artes do Ceará (Fortaleza) deste ano.
Nicolau Saião
(c/ ilustração de João Garção)
A nostalgia de viver...
De há uns tempos a esta parte tenho a doce sensação de ter voltado atrás no tempo, tornando-me agradavelmente mais novo. Pois está de novo em curso, abençoadamente, um tique que não é bem tique, um estilo que não é bem estilo - será antes uma amorável característica de agora - propiciado pelos "orgãos de informação" do reino.
"Fontes policiais afirmam...Fontes policiais sustentam...De acordo com fontes policiais...".Ou seja: de acordo com fontes policiais a realidade é esta, a que elas referem. E não outra.Por outras palavras: a Polícia como fulcro e penhor da verdade. Nomeadamente do número e mansuetude de manifestantes...
De há uns tempos a esta parte tenho a doce sensação de ter voltado atrás no tempo, tornando-me agradavelmente mais novo. Pois está de novo em curso, abençoadamente, um tique que não é bem tique, um estilo que não é bem estilo - será antes uma amorável característica de agora - propiciado pelos "orgãos de informação" do reino.
"Fontes policiais afirmam...Fontes policiais sustentam...De acordo com fontes policiais...".Ou seja: de acordo com fontes policiais a realidade é esta, a que elas referem. E não outra.Por outras palavras: a Polícia como fulcro e penhor da verdade. Nomeadamente do número e mansuetude de manifestantes...
Falemos sem justos sarcasmos: esta é a melhor bitola, para quem não abdica de ter um pensamento autónomo, para aferir da acentuada policiarização do regime, estimulada pelo mesmo.Se juntarmos a isto os discretos actos de intimidação e os menos discretos de censura levados a efeito em diversas instancias, mesmo informativas e alegadamente de referência, teremos a radiografia perfeita da "democracia" em que vamos existindo.
A saudade que eu já tinha destes carinhos!
"Plaudite, cives!", como dizia Marco Aurélio.
José do Carmo Francisco
«Gente feliz com lágrimas» vinte anos depois
Parece que foi ontem mas já lá vão vinte anos que saiu a público o livro de João de Melo Gente Feliz com lágrimas. Uma edição especial em formato de bolso foi apresentada pela Editora D. Quixote no passado dia 7 de Março na Casa dos Açores – como não podia deixar de ser. Estou a ler o livro com a surpresa da primeira vez, com o fascínio da primeira vez, com a emoção da primeira vez. E, se tivesse que fazer de novo uma nota para um jornal, citando a página significativa que mostra a respiração da personagem chave deste livro (Nuno Miguel) escolhia a página 93: «A primeira vez que fui levado a conhecer o mar de perto tinha nove anos. Ainda hoje não sei, não consigo acertar com o vocabulário que melhor se ajuste a descrever o mercúrio das trevas do alto-mar, nessa tenebrosa viagem entre Ponta Delgada e a luminosa cidade de Lisboa. Tudo se confunde de resto com as águas turvas e o tempo sombrio da infância. Felizes dos que hoje cruzam o espaço para aqui chegarem, viajando de avião. Que sejam felizes mesmo sem saberem porquê. Felizes as crianças, os jovens e os cidadãos adultos deste país de hoje: conhecem o mar quando nascem, vêm-no de cima dos aviões e não precisam de viver vigiados e policiados. A minha geração acabou com a guerra de África, perdoou os esbirros e devolveu ao povo português o céu diáfano do seu país escuro. Pode morrer de consciência tranquila: deu o seu salto mortal no trapézio, caiu de pé, não venha ninguém dizer-lhe que o circo vai nu ou que são falsos o Sol, o mar, os dias de agora e os que a estes hão-de seguir-se.» Fim de citação; parabéns ao autor e à editora. Parabéns aos leitores que vão sair deste livro mais lúcidos, mais emocionados e mais felizes.
«Gente feliz com lágrimas» vinte anos depois
Parece que foi ontem mas já lá vão vinte anos que saiu a público o livro de João de Melo Gente Feliz com lágrimas. Uma edição especial em formato de bolso foi apresentada pela Editora D. Quixote no passado dia 7 de Março na Casa dos Açores – como não podia deixar de ser. Estou a ler o livro com a surpresa da primeira vez, com o fascínio da primeira vez, com a emoção da primeira vez. E, se tivesse que fazer de novo uma nota para um jornal, citando a página significativa que mostra a respiração da personagem chave deste livro (Nuno Miguel) escolhia a página 93: «A primeira vez que fui levado a conhecer o mar de perto tinha nove anos. Ainda hoje não sei, não consigo acertar com o vocabulário que melhor se ajuste a descrever o mercúrio das trevas do alto-mar, nessa tenebrosa viagem entre Ponta Delgada e a luminosa cidade de Lisboa. Tudo se confunde de resto com as águas turvas e o tempo sombrio da infância. Felizes dos que hoje cruzam o espaço para aqui chegarem, viajando de avião. Que sejam felizes mesmo sem saberem porquê. Felizes as crianças, os jovens e os cidadãos adultos deste país de hoje: conhecem o mar quando nascem, vêm-no de cima dos aviões e não precisam de viver vigiados e policiados. A minha geração acabou com a guerra de África, perdoou os esbirros e devolveu ao povo português o céu diáfano do seu país escuro. Pode morrer de consciência tranquila: deu o seu salto mortal no trapézio, caiu de pé, não venha ninguém dizer-lhe que o circo vai nu ou que são falsos o Sol, o mar, os dias de agora e os que a estes hão-de seguir-se.» Fim de citação; parabéns ao autor e à editora. Parabéns aos leitores que vão sair deste livro mais lúcidos, mais emocionados e mais felizes.
OBRIGADO!
O Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom José Policarpo, compreende a posição dos docentes face às políticas educativas do Governo. O cardeal afirma estar a acompanhar a situação dos professores com algum interesse e preocupação. Dom José Policarpo referiu à Rádio Renascença que «os professores e educadores deste país são um grupo decisivo para o futuro do país», em detrimento dos «políticos».
Recorde-se que a manifestação de professores juntou cem mil docentes nas ruas da capital e foi a maior de sempre em Portugal.
A notícia, que aqui reproduzo, veio hoje em todos os jornais. Como professor - consciente das fortalezas e das fraquezas deste grupo profissional e dos muitos ataques sujos e venenosos de que é alvo (não só da parte da Tutela, mas de muitos outros lugares e figurinhas cujo ódio aos docentes é melhor nem tentarmos compreender) - só posso agradecer a este homem-bom da nossa sociedade e a muitos outros que têm seguido o seu caminho de justiça. São pessoas destas - e os alunos, mesmo os mais difíceis, que nos fazem ter vontade de continuar a nossa acção instrutora e libertadora. Obrigado!
José do Carmo Francisco
«A Clarinha vinha de Santa Sofia a sorrir»
No passado dia 16-12-2007 o jornalista Adelino Gomes assinou na revista Pública uma curiosa reportagem que descreve o encontro de cinco «jovens» alunos, quarenta e cinco anos depois de terem sido colegas de turma na Escola Comercial e Industrial de Vila Franca de Xira. São eles Vidaúl Froes Ferreira, José Carlos Pereira Lilaia, Álvaro Monteiro Rodrigues Pato, Arnaldo da Silva Ribeiro e este vosso humilde cronista. O primeiro fundou o MRPP, o segundo fundou o PRD, o terceiro só conheceu o pai (Octávio Pato) aos nove anos de idade, o quarto era o prometido poeta da turma e, por último, este vosso cronista, que tinha algum jeito para estas coisas e deu o seu melhor: chegou a director de um jornal de (parede…) que se chamava Velas do Tejo.
Tudo isto, embora não pareça, tem a ver com a Estrada de Macadame. Desde logo quando fui para o Montijo em 1957, a minha rua (Sacadura Cabral) também era de macadame. Depois, quando fui para Vila Franca de Xira em 1961, o Bairro do Bom Retiro não tinha asfalto nos pavimentos mas sim macadame. Era por essa estrada de macadame que passava a Clara Pato. Ela vinha de Santa Sofia para o Largo do Serrado onde vivia o seu avô João Floriano Baptista Pato e a sua avó Maria da Conceição Rodrigues. E o seu primo Álvaro Monteiro Rodrigues Pato, meu colega de turma. Por artes mágicas dos meus amigos Ana e Joaquim (o Mundo é mesmo pequeno…) acabei por reencontrar em Janeiro de 2008 a Clara Pato que obviamente se lembrava de passar pelo Bairro do Bom Retiro, vinda de Santa Sofia, a caminho da casa do seu avô em Vila Franca de Xira. Ao mesmo tempo surgiu nas livrarias o volume «A história da PIDE» de Irene Pimentel, uma edição conjunta das editoras «Círculo de Leitores» e «Temas e Debates». Na página 392 lá está a referência à morte do pai da Clara, Carlos Pato. Vejamos: «Em 4 de Junho de 1950 morreu o jovem assalariado agrícola Alfredo Lima, assassinado por guardas da GNR em Alpiarça, no decorrer de uma greve por aumento das jornas. No mesmo mês morreu às mãos da PIDE Carlos Pato, do PCP, irmão de Octávio Pato. Segundo uma carta aberta publicada no Diário de Lisboa de 24 de Agosto de 1974, dizia-se que, detido em 28 de Maio de 1949, Carlos tinha morrido, aos 29 anos, na cadeia de Caxias, em 26 de Junho de 1950, de «um ataque cardíaco segundo o médico da cadeia.» Por seu turno, a mãe de Carlos Pato contou que, na primeira vez que visitara o filho, este dissera-lhe que o tinham torturado muito. Soubera-se depois que tinha estado 130 horas de «estátua» com os sapatos «todos rebentados devido a ter ficado muito inchado por causa das torturas». Carlos Pato morreu «em Caxias, na sala 7 do rés-do-chão onde estavam mais 14 presos» um dos quais contou posteriormente à família que, apesar de muitos detidos terem pedido assistência médica, esta não havia sido fornecida a tempo.»
A Clarinha tinha 8 meses quando prenderam o pai, o irmão João Carlos nasceu 5 meses depois de o pai ter sido preso ou seja depois de 28-5-1949. Carlos Pato veio a morrer em 26-6-1950. Além de todos os sonhos pessoais e colectivos em suspenso ele deixou um pequeno livro de contos nas mãos de Alves Redol que o editou em 26-6-1951. É de facto espantosa a ligeireza de muita gente que anda pelos cargos políticos (autárquicos e não só) de hoje que se atreve a comparar a ASAE com a PIDE. É uma gente que não sabe nada de nada mas tem os microfones à frente do nariz. [...]
«Carlos Pato,
um desses homens que traz o futuro no coração»
Preso em 28 de Maio de 1949, Carlos Pato veio a morrer na cadeia de Caxias em 26 de Junho de 1950, deixando órfãos dois filhos pequeninos, Maria Clara e João Carlos. O menino nascido em 4-12-1949 nunca foi sequer visto pelo pai. Este é o fio da meada da crónica anterior, quando recordei a memória da Clarinha a passar na estrada de macadame do Bairro do Bom Retiro, entre Santa Sofia e o Largo do Serrado. Consegui a fotocópia do livro Alguns Contos de Carlos Pato editado em 1974. O prefácio de Alves Redol, escrito para a edição de 1951 e aqui reproduzido, refere-se ao malogrado escritor nestes termos: «Compreensivo e digno, amoroso e forte, aberto às melhores promessas dos nossos dias, sensível à dor alheia, rebelde para as injustiças e bom, sempre bom, com esse sorriso tão suave que era a imagem de ti próprio, que era o reflexo dum coração onde não cabia o ódio nem a cobardia». O livro contém apenas três contos como que a dar a ideia de que o autor, na sua brevíssima vida, ainda teve tempo de escrever uma história para cada uma das divisões do Ribatejo: Charneca, Lezíria e Bairro. O primeiro («Ao receber a jorna») tem como heroína Maria Alexandrina, trabalhadora rural que levas duas filhas para o campo: «A uma afagava-lhe o rosto e amamentava-a para lhe abafar o choro; à outra dava-lhe parte da sua ração.» Depois de uma semana de trabalho chega o dia de receber a jorna: «Uma cantou para que o tempo passasse; as outras ouviram, caladas.» A fala do patrão não engana sobre o sistema cultural falsamente cristão que regia a vida dos portugueses e onde não havia espaço para creches ou infantários: «olhem que lá no campo, ganham três mil e quinhentos e vocês, aqui no norte, quase ao pé de casa, alambazam-se com quatro mérreis.» O segundo conto («Valados») mostra que o campo não é só paisagem («Terra de campo, onde se desvanecem ilusões e se sepultam energias; o Tejo bom quando traz pão, mau quando o leva e não o dá») mas também lugar de luta: «Quando Riacho e os camaradas começaram a compreender a vida, uma união intrínseca os ligou para sempre. Foi assim que edificaram uma base com que lutam contra os homens e contra o Tejo traiçoeiro.» A falta de assistência médica é o drama em gente desta história. O terceiro conto («Graxas») fala de um grupo de miúdos que brinca no Tejo: «As roupas estavam escondidas e à guarda do Chico não viesse o Cabo do Mar e os surprezasse a tomar banho. Os corpos nus a galgarem para dentro da água como uma enfiada de rãs que de repente notasse gente.» Nesse grupo de engraxadores nem todos sonham com o campo; o Chico quer outro destino: «Quando for homem vou para a fábrica trabalhar com o meu pai. Hei-de usar fato de ganga e fumar superior.» Divididos entre o trabalho e o desporto, entre a Estação da CP e a aberta no Tejo onde nadam, eles são um elo na corrida de estafetas por um mundo melhor: «Têm uma mágoa profunda a residir no íntimo, como uma coisa enorme que faz parte dos seus órgãos – são os lamentos e as lutas dos seus parentes. Lamentos e lutas que se vieram depositar, juntos, nos corpos esguios dos graxas que trabalham e brincam no passeio da estação e na aberta do Lamas.» Também sonham e perguntam entre si («Quando virá o dia que a gente muda a vida?») para logo um deles responder: «Não vem longe, Chico!» Entre os apitos das fábricas e as palavras dos capatazes, o seu futuro vai ser rogar trabalho sem condições, até um dia. Estes três contos de 1949 são uma dolorosa descoberta hoje em 2008: Carlos Pato poderia ter sido um grande escritor. Há na tessitura dos seus contos a ampla respiração dum talento criador, um domínio perfeito da língua. A sua morte por enfarte depois de muitos dias de tortura é mais um crime da PIDE que, sem consciência, alguns pobres diabos da política hoje comparam à ASAE.
(Textos publicados no jornal Gazeta das Caldas)
«A Clarinha vinha de Santa Sofia a sorrir»
No passado dia 16-12-2007 o jornalista Adelino Gomes assinou na revista Pública uma curiosa reportagem que descreve o encontro de cinco «jovens» alunos, quarenta e cinco anos depois de terem sido colegas de turma na Escola Comercial e Industrial de Vila Franca de Xira. São eles Vidaúl Froes Ferreira, José Carlos Pereira Lilaia, Álvaro Monteiro Rodrigues Pato, Arnaldo da Silva Ribeiro e este vosso humilde cronista. O primeiro fundou o MRPP, o segundo fundou o PRD, o terceiro só conheceu o pai (Octávio Pato) aos nove anos de idade, o quarto era o prometido poeta da turma e, por último, este vosso cronista, que tinha algum jeito para estas coisas e deu o seu melhor: chegou a director de um jornal de (parede…) que se chamava Velas do Tejo.
Tudo isto, embora não pareça, tem a ver com a Estrada de Macadame. Desde logo quando fui para o Montijo em 1957, a minha rua (Sacadura Cabral) também era de macadame. Depois, quando fui para Vila Franca de Xira em 1961, o Bairro do Bom Retiro não tinha asfalto nos pavimentos mas sim macadame. Era por essa estrada de macadame que passava a Clara Pato. Ela vinha de Santa Sofia para o Largo do Serrado onde vivia o seu avô João Floriano Baptista Pato e a sua avó Maria da Conceição Rodrigues. E o seu primo Álvaro Monteiro Rodrigues Pato, meu colega de turma. Por artes mágicas dos meus amigos Ana e Joaquim (o Mundo é mesmo pequeno…) acabei por reencontrar em Janeiro de 2008 a Clara Pato que obviamente se lembrava de passar pelo Bairro do Bom Retiro, vinda de Santa Sofia, a caminho da casa do seu avô em Vila Franca de Xira. Ao mesmo tempo surgiu nas livrarias o volume «A história da PIDE» de Irene Pimentel, uma edição conjunta das editoras «Círculo de Leitores» e «Temas e Debates». Na página 392 lá está a referência à morte do pai da Clara, Carlos Pato. Vejamos: «Em 4 de Junho de 1950 morreu o jovem assalariado agrícola Alfredo Lima, assassinado por guardas da GNR em Alpiarça, no decorrer de uma greve por aumento das jornas. No mesmo mês morreu às mãos da PIDE Carlos Pato, do PCP, irmão de Octávio Pato. Segundo uma carta aberta publicada no Diário de Lisboa de 24 de Agosto de 1974, dizia-se que, detido em 28 de Maio de 1949, Carlos tinha morrido, aos 29 anos, na cadeia de Caxias, em 26 de Junho de 1950, de «um ataque cardíaco segundo o médico da cadeia.» Por seu turno, a mãe de Carlos Pato contou que, na primeira vez que visitara o filho, este dissera-lhe que o tinham torturado muito. Soubera-se depois que tinha estado 130 horas de «estátua» com os sapatos «todos rebentados devido a ter ficado muito inchado por causa das torturas». Carlos Pato morreu «em Caxias, na sala 7 do rés-do-chão onde estavam mais 14 presos» um dos quais contou posteriormente à família que, apesar de muitos detidos terem pedido assistência médica, esta não havia sido fornecida a tempo.»
A Clarinha tinha 8 meses quando prenderam o pai, o irmão João Carlos nasceu 5 meses depois de o pai ter sido preso ou seja depois de 28-5-1949. Carlos Pato veio a morrer em 26-6-1950. Além de todos os sonhos pessoais e colectivos em suspenso ele deixou um pequeno livro de contos nas mãos de Alves Redol que o editou em 26-6-1951. É de facto espantosa a ligeireza de muita gente que anda pelos cargos políticos (autárquicos e não só) de hoje que se atreve a comparar a ASAE com a PIDE. É uma gente que não sabe nada de nada mas tem os microfones à frente do nariz. [...]
«Carlos Pato,
um desses homens que traz o futuro no coração»
Preso em 28 de Maio de 1949, Carlos Pato veio a morrer na cadeia de Caxias em 26 de Junho de 1950, deixando órfãos dois filhos pequeninos, Maria Clara e João Carlos. O menino nascido em 4-12-1949 nunca foi sequer visto pelo pai. Este é o fio da meada da crónica anterior, quando recordei a memória da Clarinha a passar na estrada de macadame do Bairro do Bom Retiro, entre Santa Sofia e o Largo do Serrado. Consegui a fotocópia do livro Alguns Contos de Carlos Pato editado em 1974. O prefácio de Alves Redol, escrito para a edição de 1951 e aqui reproduzido, refere-se ao malogrado escritor nestes termos: «Compreensivo e digno, amoroso e forte, aberto às melhores promessas dos nossos dias, sensível à dor alheia, rebelde para as injustiças e bom, sempre bom, com esse sorriso tão suave que era a imagem de ti próprio, que era o reflexo dum coração onde não cabia o ódio nem a cobardia». O livro contém apenas três contos como que a dar a ideia de que o autor, na sua brevíssima vida, ainda teve tempo de escrever uma história para cada uma das divisões do Ribatejo: Charneca, Lezíria e Bairro. O primeiro («Ao receber a jorna») tem como heroína Maria Alexandrina, trabalhadora rural que levas duas filhas para o campo: «A uma afagava-lhe o rosto e amamentava-a para lhe abafar o choro; à outra dava-lhe parte da sua ração.» Depois de uma semana de trabalho chega o dia de receber a jorna: «Uma cantou para que o tempo passasse; as outras ouviram, caladas.» A fala do patrão não engana sobre o sistema cultural falsamente cristão que regia a vida dos portugueses e onde não havia espaço para creches ou infantários: «olhem que lá no campo, ganham três mil e quinhentos e vocês, aqui no norte, quase ao pé de casa, alambazam-se com quatro mérreis.» O segundo conto («Valados») mostra que o campo não é só paisagem («Terra de campo, onde se desvanecem ilusões e se sepultam energias; o Tejo bom quando traz pão, mau quando o leva e não o dá») mas também lugar de luta: «Quando Riacho e os camaradas começaram a compreender a vida, uma união intrínseca os ligou para sempre. Foi assim que edificaram uma base com que lutam contra os homens e contra o Tejo traiçoeiro.» A falta de assistência médica é o drama em gente desta história. O terceiro conto («Graxas») fala de um grupo de miúdos que brinca no Tejo: «As roupas estavam escondidas e à guarda do Chico não viesse o Cabo do Mar e os surprezasse a tomar banho. Os corpos nus a galgarem para dentro da água como uma enfiada de rãs que de repente notasse gente.» Nesse grupo de engraxadores nem todos sonham com o campo; o Chico quer outro destino: «Quando for homem vou para a fábrica trabalhar com o meu pai. Hei-de usar fato de ganga e fumar superior.» Divididos entre o trabalho e o desporto, entre a Estação da CP e a aberta no Tejo onde nadam, eles são um elo na corrida de estafetas por um mundo melhor: «Têm uma mágoa profunda a residir no íntimo, como uma coisa enorme que faz parte dos seus órgãos – são os lamentos e as lutas dos seus parentes. Lamentos e lutas que se vieram depositar, juntos, nos corpos esguios dos graxas que trabalham e brincam no passeio da estação e na aberta do Lamas.» Também sonham e perguntam entre si («Quando virá o dia que a gente muda a vida?») para logo um deles responder: «Não vem longe, Chico!» Entre os apitos das fábricas e as palavras dos capatazes, o seu futuro vai ser rogar trabalho sem condições, até um dia. Estes três contos de 1949 são uma dolorosa descoberta hoje em 2008: Carlos Pato poderia ter sido um grande escritor. Há na tessitura dos seus contos a ampla respiração dum talento criador, um domínio perfeito da língua. A sua morte por enfarte depois de muitos dias de tortura é mais um crime da PIDE que, sem consciência, alguns pobres diabos da política hoje comparam à ASAE.
(Textos publicados no jornal Gazeta das Caldas)
DOCUMENTO SOBRE EDUCAÇÃO
(Aprovado por um conjunto de professores de Mafra
e enviado para este blogue por Anabela Almeida)
Exmo. Senhor Presidente do grupo parlamentar do Partido …
(para entregar a todos os partidos com assento na Assembleia da República)
Os professores abaixo-assinados vêm denunciar o desmantelamento da Escola Pública Democrática e dos seus ideais fundados nos princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem, objectivo perseguido e estruturado pelo actual Governo através da aprovação de um conjunto de diplomas legislativos sucessivos, aparentemente independentes, mas que encadeados alcançam o resultado premeditadamente previsto. Relembremo-los a Vossas Excelências.
Decreto-lei 15/2007 - Estatuto da Carreira Docente, que a divide de uma forma maquiavélica, fazendo surgir de um lado, o professor titular e, do outro, o professor, tendo como objectivos:
1 – Criar uma estrutura fracturante que, através de uma hierarquização, estabelecida num critério de pura oportunidade, desmantela a curto e médio prazo, o sistema de eleição dos professores pelos seus pares para diversos órgãos, dando lugar à escola do pensamento único, imposta no terreno pelo Poder do momento, através de uma estrutura hierarquizada.
2 - Reduzir custos necessários, sacrificando o papel da escola e do professor na escola e na sociedade, a coberto de uma falácia, a de poder anunciar um padrão remuneratório para o professor, a partir daquele que está estabelecida apenas, para o titular.
3 – Contribuir para o progressivo empobrecimento económico do professor, com reflexo no seu papel social na comunidade, diminuindo-o no desempenho pleno das suas funções.
4 – Alterar o papel da escola na comunidade, subordinando princípios estruturantes de uma sociedade, como o de fazer da Educação a alavanca da preparação dos jovens para o futuro, através do exercício da liberdade e de responsabilidade na descoberta do saber, por dimensões redutoras, de serviço obrigatório a custo mínimo e de forma a permitir o cumprimento de objectivos estatísticos para europeu ver.
5 – Como meio instrumental para obter os desígnios acima enunciados, levar a cabo uma classificação do professor, através do seu nível superior hierárquico meramente conformadora de uma estrutura piramidal e não, como defendemos, numa hetero-avaliação inserida numa perspectiva formativa que se quer permanente e ao longo de toda uma vida, postura que deve servir de padrão para toda a comunidade, e na prossecução de uma necessidade que é colectiva e comum: a elevação educacional, cultural e social de uma comunidade através da preparação das gerações futuras.
Decreto-lei 35/2007 - Regime de contratação de docentes
Este é dos regimes contratuais mais precários que se conhece em Portugal, ousamos dizer, na Europa.
A contratação dos professores está a ser feita pelos Presidentes dos Conselhos Executivos e futuramente, pelo Director. Este facto determina que em cada Escola, o professor contratado encontre uma nova entidade empregadora, uma estratégia que permite que um professor exerça a sua actividade durante 20 e mais anos, servindo o Ensino e a Educação públicas, sempre numa situação de vida precária, com contratos a prazo.
Decreto-lei 3/2008 – Estatuto do aluno
Este diploma não comporta uma única medida capaz de reduzir o abandono escolar, mas, porque elaborado por gente afastada da realidade das escolas, fomenta-o:
Pedir a um aluno de regresso à escola, que realize uma prova, a chamada “prova de recuperação” é uma forma de o afastar dela. Tal medida é anti-pedagógica e mesmo persecutória.
Acresce de forma inconsequente o trabalho administrativo do director de turma, cerceando a sua prática pedagógica.
Decreto-regulamentar - 2/2008 - Este decreto que diz no seu preâmbulo consagrar “um regime de avaliação de desempenho mais exigente e com efeitos no desenvolvimento da carreira que permita identificar, promover e premiar o mérito e valorizar a actividade lectiva” é só por si um bom pedaço de demagogia e hipocrisia ministerial, por razões já apontadas e outras que apresentamos:
1- Pede-se ao professor que defina objectivos individuais. Este pressuposto assenta numa lógica empresarial, incompatível com uma prática pedagógica capaz de operar transformações positivas no seio de uma comunidade educativa.
2 – A avaliação do professor dependerá dos resultados escolares dos seus alunos, aferido por padrões estatísticos genéricos e não de acordo com a realidade individual e do meio social onde se inserem.
3 – Valoriza-se a participação do professor em estruturas de orientação educativa, mas a sua participação nessas estruturas far-se-á por nomeação do Director.
4- Define-se critérios de avaliação subjectivos, tais como empenhamento, disponibilidade, equilíbrio, que permitem a arbitrariedade do avaliador de acordo com interesses do momento.
Pelas razões apontadas, este diploma é, na sua essência, propiciador de eventuais atitudes corruptivas da dignidade docente.
O corolário de todos estes normativos, encontra-se plasmado no Decreto-lei ora aprovado em Conselho de Ministros, que aprova o regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos de educação pré-escolar e dos ensinos básicos e secundários.
Denunciamos ainda, a prática levada a cabo por este Governo, do encerramento de centenas de escolas implantadas nos centros das populações e o enclausuramento das crianças dessas escolas em fábricas periféricas a que chamam "Centros Educativos"
1 - Esta situação trará a médio prazo, custos sociais elevadíssimos, uma vez que a concentração de centenas de crianças no mesmo espaço e, este afastado do centro das populações, mata a sua individualidade e identidade natural, desvaloriza a rede de afectos, impede o seu crescimento harmonioso e fomenta focos de insegurança, subjectiva e objectiva.
2 – Este procedimento libertou espaços nobres dentro das populações que já deram e darão grandes empreendimentos imobiliários, em prejuízo do espaço público, isto é, que nos serve a todos, acobertando-se deste modo, vis comportamentos de entidades públicas com subscrição legal.
Pelo exposto, solicitamos as Vossas Excelências que promovam o agendamento destas matérias, permitindo uma discussão e análise cuidada do papel da Educação e dos seus agentes, os professores, neste país, revogando este conjunto de diplomas que comprometem o nosso presente, dos professores e do país, e o futuro das gerações em formação.
(Aprovado por um conjunto de professores de Mafra
e enviado para este blogue por Anabela Almeida)
Exmo. Senhor Presidente do grupo parlamentar do Partido …
(para entregar a todos os partidos com assento na Assembleia da República)
Os professores abaixo-assinados vêm denunciar o desmantelamento da Escola Pública Democrática e dos seus ideais fundados nos princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem, objectivo perseguido e estruturado pelo actual Governo através da aprovação de um conjunto de diplomas legislativos sucessivos, aparentemente independentes, mas que encadeados alcançam o resultado premeditadamente previsto. Relembremo-los a Vossas Excelências.
Decreto-lei 15/2007 - Estatuto da Carreira Docente, que a divide de uma forma maquiavélica, fazendo surgir de um lado, o professor titular e, do outro, o professor, tendo como objectivos:
1 – Criar uma estrutura fracturante que, através de uma hierarquização, estabelecida num critério de pura oportunidade, desmantela a curto e médio prazo, o sistema de eleição dos professores pelos seus pares para diversos órgãos, dando lugar à escola do pensamento único, imposta no terreno pelo Poder do momento, através de uma estrutura hierarquizada.
2 - Reduzir custos necessários, sacrificando o papel da escola e do professor na escola e na sociedade, a coberto de uma falácia, a de poder anunciar um padrão remuneratório para o professor, a partir daquele que está estabelecida apenas, para o titular.
3 – Contribuir para o progressivo empobrecimento económico do professor, com reflexo no seu papel social na comunidade, diminuindo-o no desempenho pleno das suas funções.
4 – Alterar o papel da escola na comunidade, subordinando princípios estruturantes de uma sociedade, como o de fazer da Educação a alavanca da preparação dos jovens para o futuro, através do exercício da liberdade e de responsabilidade na descoberta do saber, por dimensões redutoras, de serviço obrigatório a custo mínimo e de forma a permitir o cumprimento de objectivos estatísticos para europeu ver.
5 – Como meio instrumental para obter os desígnios acima enunciados, levar a cabo uma classificação do professor, através do seu nível superior hierárquico meramente conformadora de uma estrutura piramidal e não, como defendemos, numa hetero-avaliação inserida numa perspectiva formativa que se quer permanente e ao longo de toda uma vida, postura que deve servir de padrão para toda a comunidade, e na prossecução de uma necessidade que é colectiva e comum: a elevação educacional, cultural e social de uma comunidade através da preparação das gerações futuras.
Decreto-lei 35/2007 - Regime de contratação de docentes
Este é dos regimes contratuais mais precários que se conhece em Portugal, ousamos dizer, na Europa.
A contratação dos professores está a ser feita pelos Presidentes dos Conselhos Executivos e futuramente, pelo Director. Este facto determina que em cada Escola, o professor contratado encontre uma nova entidade empregadora, uma estratégia que permite que um professor exerça a sua actividade durante 20 e mais anos, servindo o Ensino e a Educação públicas, sempre numa situação de vida precária, com contratos a prazo.
Decreto-lei 3/2008 – Estatuto do aluno
Este diploma não comporta uma única medida capaz de reduzir o abandono escolar, mas, porque elaborado por gente afastada da realidade das escolas, fomenta-o:
Pedir a um aluno de regresso à escola, que realize uma prova, a chamada “prova de recuperação” é uma forma de o afastar dela. Tal medida é anti-pedagógica e mesmo persecutória.
Acresce de forma inconsequente o trabalho administrativo do director de turma, cerceando a sua prática pedagógica.
Decreto-regulamentar - 2/2008 - Este decreto que diz no seu preâmbulo consagrar “um regime de avaliação de desempenho mais exigente e com efeitos no desenvolvimento da carreira que permita identificar, promover e premiar o mérito e valorizar a actividade lectiva” é só por si um bom pedaço de demagogia e hipocrisia ministerial, por razões já apontadas e outras que apresentamos:
1- Pede-se ao professor que defina objectivos individuais. Este pressuposto assenta numa lógica empresarial, incompatível com uma prática pedagógica capaz de operar transformações positivas no seio de uma comunidade educativa.
2 – A avaliação do professor dependerá dos resultados escolares dos seus alunos, aferido por padrões estatísticos genéricos e não de acordo com a realidade individual e do meio social onde se inserem.
3 – Valoriza-se a participação do professor em estruturas de orientação educativa, mas a sua participação nessas estruturas far-se-á por nomeação do Director.
4- Define-se critérios de avaliação subjectivos, tais como empenhamento, disponibilidade, equilíbrio, que permitem a arbitrariedade do avaliador de acordo com interesses do momento.
Pelas razões apontadas, este diploma é, na sua essência, propiciador de eventuais atitudes corruptivas da dignidade docente.
O corolário de todos estes normativos, encontra-se plasmado no Decreto-lei ora aprovado em Conselho de Ministros, que aprova o regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos de educação pré-escolar e dos ensinos básicos e secundários.
Denunciamos ainda, a prática levada a cabo por este Governo, do encerramento de centenas de escolas implantadas nos centros das populações e o enclausuramento das crianças dessas escolas em fábricas periféricas a que chamam "Centros Educativos"
1 - Esta situação trará a médio prazo, custos sociais elevadíssimos, uma vez que a concentração de centenas de crianças no mesmo espaço e, este afastado do centro das populações, mata a sua individualidade e identidade natural, desvaloriza a rede de afectos, impede o seu crescimento harmonioso e fomenta focos de insegurança, subjectiva e objectiva.
2 – Este procedimento libertou espaços nobres dentro das populações que já deram e darão grandes empreendimentos imobiliários, em prejuízo do espaço público, isto é, que nos serve a todos, acobertando-se deste modo, vis comportamentos de entidades públicas com subscrição legal.
Pelo exposto, solicitamos as Vossas Excelências que promovam o agendamento destas matérias, permitindo uma discussão e análise cuidada do papel da Educação e dos seus agentes, os professores, neste país, revogando este conjunto de diplomas que comprometem o nosso presente, dos professores e do país, e o futuro das gerações em formação.
IN MEMORIAM
É este o meu poema mais recente. Estava neste momento a preparar-me para o enviar a Maria Gabriela Llansol. A morte surpreendeu-a. Surpreendeu-me. Perdemos uma das vozes mais discretas, mas mais significativas da literatura de língua portuguesa. Aqui fica o texto, em sua memória.
É este o meu poema mais recente. Estava neste momento a preparar-me para o enviar a Maria Gabriela Llansol. A morte surpreendeu-a. Surpreendeu-me. Perdemos uma das vozes mais discretas, mas mais significativas da literatura de língua portuguesa. Aqui fica o texto, em sua memória.
[Maria Gabriela Llansol]
a voz coloca a suspensão da frase
entre os sinais que qualificam um tempo sem memória.
ossos e palavras (a saliva e o alimento da estrutura)
derrubam o edifício. corpo ou figura –
rompe de um telhado repartido por vários cantos
da cidade. há homens sem voz, outros sem sombra
mas com flamas descobrindo o cabelo. a nudez da sala
permite o encontro – uma ponte
interrompida onde crescem figueiras
e outros fluidos corporais – sangue e
seiva, sangue e sémen cobrindo a boca
e algumas palavras sem tradução
na linguagem dos pássaros.
nenhuma palavra altera a consciência da metamorfose.
as rochas protegem-nos
da força das águas, mas não conseguem segurar
um corpo (uma figura?) cujos dentes
atravessam a carne e a madeira.
o anúncio divide a estranheza do horizonte.
o corpo escreve, mas nada regista sobre o corpo
que oferece. homem ou linha ininterrupta?
que cor a da serpente? a forma ilude
a cerração. o desejo destrói
essa figura – onde um corpo sem ossos
restaura os objectos e a memória.
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