Literatura que vale ouro
Por Jorge Sanglard
Antologia editada em Portugal, organizada pela pesquisadora suíça Prisca Agustoni, reúne 10 poetas que se destacam no cenário contemporâneo da literatura de Minas
A antologia “Oiro de Minas – A nova poesia das Gerais”, organizada por Prisca Agustoni e editada em Portugal por Ozias Filho, é mais uma investida da Colecção Pasárgada no universo da poética contemporânea brasileira. Estado natal de João Guimarães Rosa, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Affonso Romano de Sant’Anna e Rubem Fonseca, Minas tem importância ímpar na renovação da poesia brasileira da segunda metade do século 20 e deste início de século 21. Prisca Agustoni mergulhou fundo na criação poética mineira dos últimos 30 anos para extrair um autêntico quem é quem desse caldeirão efervescente, lançando um feixe de luz sobre 10 poetas.
Com o lançamento de “Oiro de Minas...” em janeiro, a Colecção Pasárgada e a Ardósia Associação Cultural dão mais um passo na ampliação do selo, voltado para a edição de livros de poesia numerados e assinados. Anteriormente, foi editada a antologia “Terra além-mar”, dedicada a Iacyr Anderson Freitas. “Oiro...” reúne expoentes de geração importante de autores: Eustáquio Gorgone de Oliveira, Donizete Galvão, Júlio Polidoro, Ricardo Aleixo, Maria Esther Maciel, Fernando Fábio Fiorese Furtado, Edimilson de Almeida Pereira, Iacyr Anderson Freitas, Wilmar Silva e Fabrício Marques.
A suíça Prisca Agustoni, de 32 anos, é apaixonada pela língua portuguesa e vem se dedicando a pesquisar a poesia feita em Minas. Formada em letras hispânicas e filosofia pela Universidade de Genebra, ela é mestre em literatura hispânica e doutora em literaturas de língua portuguesa. Desde 2002 mora em Minas Gerais e trabalha como professora de literatura portuguesa e brasileira na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Também é tradutora e crítica literária.
“Um olhar crítico sobre a realidade brasileira demonstra que o Brasil midiático não é senão uma face entre outras, instigantes e desafiadoras, da sociedade nacional. Esse tema nos leva de volta à década de 1950 e nos permite observar que os dois Brasis, detectados naquela época pelo sociólogo francês Jacques Lambert, já eram – e continuam sendo – vários Brasis”, afirma Prisca. Para ela, o comentário de caráter sociológico é indispensável para justificar uma antologia de poesia brasileira contemporânea. Afinal, no jogo das relações literárias, a controvérsia em torno de antologias é assunto conhecido. Há sempre motivos, com razões maiores ou menores, para que os autores selecionados e os não-selecionados, bem como os críticos e os leitores, ratifiquem ou subestimem o trabalho do responsável pela organização. Uma antologia de poesia brasileira contemporânea não pode esperar outro enredo, adverte Prisca. O livro sintetiza um recorte desse cenário poético, mais especificamente de Minas Gerais, reconhecido celeiro literário do país.
Prisca Agustoni enfatiza que, apesar da divergência de opiniões de poetas e críticos, na poesia brasileira do século 20 é possível considerar três linhas de força, que se mantiveram até ao início da década de 1980: a primeira, derivada da Semana de Arte Moderna de 1922, caracterizada pelo esforço de atualização da poesia brasileira em relação a novos temas, formas e práticas em curso na Europa dos movimentos de vanguarda; a segunda, por um desejo de contenção dos apelos das vanguardas propostos pelos modernistas; e a terceira, pelo experimentalismo técnico-formal do concretismo.
LINHAS DE FORÇA
No contexto de Minas Gerais, poetas de diferentes gerações trafegaram por essas linhas de força, como Drummond, Murilo Mendes e Affonso Ávila, e contribuíram interferindo nelas para tecer sua própria linguagem poética. Assim, destaca Prisca, nomes como Emílio Moura, Abgar Renault, Dantas Mota, Henriqueta Lisboa, Laís Corrêa de Araújo, Adélia Prado e Adão Ventura se inscreveram com vigor na cena literária brasileira.
Ao selecionar o material, Prisca procurou autores que começaram a se destacar a partir da década de 1980, depois da proliferação de vozes relacionadas à estética da poesia marginal e, principalmente, depois do duro momento político vivenciado pelo Brasil, que teve sua cultura submetida ao jugo e à censura do regime militar entre 1964 e 1985. Assim, foram selecionados poetas que refletiram e também transformaram, na sutil tessitura da linguagem, a riqueza das diversas vertentes estéticas que os precederam. A organizadora procurou destacar a pluralidade de caminhos trilhados, considerando não apenas a atuação dos autores como poetas, mas ressaltando também o modo como eles estabeleceram a “consolidação de um consenso crítico” paralelamente a seus processos de criação.
Esse recorte é relevante, “já que a atuação do poeta e do intelectual no seio da sociedade se reveste não só de aspectos relacionados a posicionamentos políticos, mas igualmente à produção de um discurso teórico – muitas vezes estimulado pelas estruturas acadêmicas – ou jornalístico, bem como à organização de eventos, espetáculos e festivais nos quais é reservado à poesia e à performance poética um espaço privilegiado”, pondera Prisca.
Vale destacar a riqueza do microcosmo de palavras e símbolos que compõem a poética de cada escolhido. Apesar de toda essa vertente multifacetada, a organizadora enfatiza que é possível garimpar e encontrar nessa diferença alguns temas que perpassam, como uma coluna vertebral, a poesia mineira contemporânea. “A representação do espaço físico, muitas vezes, um lugar não nomeado, mas identificado como alguma região de Minas Gerais, ou mental, se universaliza graças à palavra poética. A cidade, como lugar de passagem, de encontro e desencontro do indivíduo, é outro tema recorrente. E os elementos da natureza, como pedra, água e pássaro, são mensageiros desse infinito que alumbra e esmaga, com a sua potência e beleza, o ser humano e sugerem o enigma de um mundo indizível através das palavras”, analisa ela.
FAZER POÉTICO
O ensaio de apresentação da obra é uma prova do compromisso da organizadora com a reflexão sobre a nova poética mineira. Prisca disseca minuciosamente o trabalho de cada autor. Os versos de Eustáquio Gorgone de Oliveira são vistos como uma adaptação contemporânea dos traços marcantes do barroco, assim como a manifestação de um sentir expressionista emoldurando sua obra, fazendo com que sua poesia não seja classificável dentro de nenhuma das vertentes tradicionais que caracterizaram a poesia brasileira do século 20. O mesmo pode ser vislumbrado na poesia de Júlio Polidoro, com destaque para o tom coloquial e irônico, disfarçando habilmente o fundo filosófico ou existencialista.
Trajetória instigante é apontada na fusão entre o formalismo pós-concretista e as vertentes estéticas e sociais de Ricardo Aleixo, numa poesia que apresenta sinais da vanguarda e desnuda as ambigüidades e as possibilidades de significação do seu discurso pessoal. Já a dicção contida de Donizete Galvão se mostra como um filtro que depura e transforma o desprezo e a decomposição do corpo e do mundo – com seus valores mais puros – em revelação poética. E a poesia de Maria Esther Maciel flagra a intensidade proporcionada pelo intercâmbio com outras linguagens artísticas, como o cinema e a pintura, na busca de captar o paradoxo da vida.
Fernando Fábio Fiorese Furtado estabelece um flerte com o mundo figurado, exprimindo a densidade da história individual e coletiva, que conflui para desenhar diferentes metáforas do corpo, como se essas fossem uma “segunda pele” que concentra as linhas de uma reflexão existencial e metapoética. Edimilson de Almeida Pereira reelabora aspectos da oralidade e da estética barroca, na qual os objetos, as palavras e os significados estão embutidos uns dentro dos outros, à maneira das bonecas russas que estão encaixadas, cada uma contendo em si a outra. Sua poesia reflete o sentido atribuído a um mundo engendrado por palavras e aberto para a existência de outros mundos possíveis.
Por sua vez, Iacyr Anderson Freitas explicita a busca, por vezes dolorosa, de coisas e sentimentos profundos e cotidianos, que constituem a raiz ontológica do ser humano que, freqüentemente, se encontra exilado num tempo e num espaço em estado de desmoronamento e que se agarra, desesperado, à palavra e à memória para salvar as sobras desse processo de desmantelamento interior. A obra de Wilmar Silva possibilita inquietante leitura das experiências do homem e revela um autor voltado não para a descrição dos objetos ou da natureza, mas com a apreensão do diálogo entre esses elementos e o corpo-linguagem do poeta. Fabrício Marques apreende o cotidiano com ironia, ou seja, a noção do dia-a-dia como o espaço e tempo dos acontecimentos previsíveis é sugerida e esvaziada pela palavra poética.
Oiro de Minas... é mais que um convite explícito para compartilhar uma aventura ao longo dessa viagem poética às Minas Gerais. É um testamento claro de amor à descoberta de novos caminhos literários que uma pesquisadora afiada e afinada com seu tempo revela a Portugal e ao Brasil. Capaz de trocar os montes gelados da Suíça para descobrir as travessias das montanhas de Minas, Prisca Agustoni corajosamente assume a responsabilidade de “dar nomes aos bois” numa época em que muito pouca gente deixa explícito o que sente e o que pensa.
A intenção da organizadora é lançar o livro também em Minas Gerais. Apenas 500 privilegiados poderão conferir o resultado de sua pesquisa poética pelas Minas Gerais dos nossos dias. Afinal, esta primeira e única edição, compromisso firmado pela Colecção Pasárgada, traz apenas cinco centenas de exemplares numerados. E Prisca Agustoni assina embaixo.
(Publicado no caderno Pensar do jornal O Estado de Minas e aqui.)
2 comentários:
Ruy,
Saudades dos poemas eira pedras, líquidos sonoros. Te abraço de Guiné, Abissal. Wilmar Silva
Oh grande Joaquim Palmeira! Abração, amigo!
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