DESEJO A TODOS OS LEITORES E AMIGOS

DO ESTRADA DO ALICERCE

UM SANTO NATAL CHEIO DE FELICIDADE.

E QUE 2009 NOS TRAGA A TODOS A ESPERANÇA

QUE PARECE ESTAR EM EROSÃO.
José do Carmo Francisco

Saudação de Natal a Marta

Feliz Natal Marta! Lembras-te quando éramos nós os primeiros a chegar? Eu vinha de uma cidade distante mas chegava primeiro, sempre cedo. Tu vinhas de uma vila próxima e banhada pelo mesmo rio que passava frente ao nosso escritório. O teu pai destinava-te tarefas transparentes, repetitivas, obscuras e afastadas do protagonismo. Eu dava os primeiros passos numa segunda vida de trabalho depois de trinta anos noutro espaço e noutro lugar. Às vezes chovia, às vezes o vento assobiava nas janelas daquele escritório e nós dava-mos início ao dia de trabalho com um sorriso que era construído pela paciência dos dois, pela ideia pouco explícita mas concreta de que estávamos a construir um novo dia onde se procurava negar a monotonia. Às vezes eu percebia que nos teus olhos magoados havia uma ideia: o teu pai exigia muito de ti. Outras vezes eram as sequelas de uma doença recente que te empurravam para a tristeza e davam relevo à tua fragilidade. Nessas horas da manhã nós éramos os náufragos do tempo hostil que nos coube viver. Ás vezes falava-te da minha filha com um nome igual ao teu e das suas opiniões sobre tudo e sobre todos. A tua homónima é hoje uma jovem arquitecta à procura de um lugar de afirmação no seu espaço e no seu mundo. Nesse tempo eu já sabia que a vida não é fácil porque os pais e os filhos não nascem para serem amigos mas sim para serem apenas pais e filhos. Neste postal de Boas Festas diferente quero mandar-te, Marta, os meus votos de que continues todas as manhãs a construir esse sorriso teimoso e determinado fazendo de cada dia não uma monótona repetição mas a descoberta e a aventura de quem (como tu) sabe que o seu lugar no Mundo é próprio, exclusivo e irrepetível. Feliz Natal Marta!

Registo de azulejos existente em Setúbal.
Jules Morot

COMOÇÃO DE NATAL

Sou um espião mais do que perfeito
os meus olhos as minhas mãos a minha silhueta
tudo o que aprendi tudo o que esqueci
tudo quanto vi Senhor depois da vossa morte
até as colheres de madeira e o prato rude
ao jantar
no começo da noite
mesmo as peúgas com buracos do meu primo
mesmo a camisa esfarrapada do meu pai
e os alegres tristes olhos da minha mãe
e quanto compramos sem pagarmos
e sem que alguém o pague

Tudo isso guardo no meu coração.

Nas noites nos dias da minha adolescência
quando me sentava a meditar
na pedra pintada de branco
no meio da horta da pequena Armandine
que me oferecia castanhas cozinhas no tempo de Outono
e me limpava a cara com um lenço de linho
olhando o meu suor de sangue.

Tudo isso é o meu tesouro
para si caro Senhor para os vossos anjos
para os vossos assistentes na floresta celestial
para os notários do vosso augusto Pai
sem esquecer o pequeno que vós fostes
e mesmo o mendigo que vos ajudou
a subir para o burrinho
que vos transportou até à porta Susa
naquele dia da Páscoa.

Perdoai-me assim, Senhor,
as minhas faltas
as minhas súbitas alegrias
os meus estranhos silêncios

e todos os poemas que ficaram só no pensamento.

(Tradução de RV)

FERNANDO FÁBIO FIORESE FURTADO

Três poemas

ESCREVER POR AGULHAS

E se o menino, na urgência de longes,
do trem separa, aparta-se da gare
para embarcar num tandem de horizontes,
não descura do carvão, mesmo lápis,
com que escreve dias-mapa, cartas-ponte,
como a palavra fosse o desembarque
no qual reúne porquês, quandos e ondes,
enquanto a infância manobra e parte.

Nesta escrita, difícil operar
senão ao modo de, como por agulhas,
sejam as que, entre a hora e o lugar,
decidem se a linha míngua ou demuda
(ao foguista cumpre apenas queimar),
sejam aquelas que emprega a costura
e de viés ensinam a mão a chulear
onde nos punge o poema, suas rasuras.


LINHAS RIVAIS

Trem é texto quando encontra desvio
ou nos surpreende em meio ao pontilhão,
e da origem as pernas se desdão
para o mundo acomodar neste livro.
Mas texto é menos trem que o enguiço
de saber que no verso desembarca
apenas a prosa dessas coisas arcas
com que o menino se salva do olvido.

Seja a prosa como dormir num trem
e a poesia quando a aduana sobrevém:
naquela, até o sonho encontra sua reta,
enquanto nesta, nos sacode e espera
uma voz de si mesma estrangeira
- e como fosse toda ela suspeita,
a bagagem uma outra mão desfaz,
mão que vacila entre linhas rivais.


A MORTE COMO METÁFORA

Talvez outra metáfora ainda possa
antes deste texto descarrilar-se
- ou enfim estacar no livro-gare,
à espera de uma voz que, sendo oposta,
o conduza por avessas passagens
(passagens sem número, sem sintaxe),
para assim desfazer-se na manobra
que realiza entre o desvio e o desastre.

Análoga àquela que assombra o pai
quando dele o trem a altura subtrai,
uma outra morte o poema epiloga.
E se digo tratar-se de metáfora,
é porque, com seus modos e manobras,
nela a palavra desvia e me ultrapassa,
tal fosse menos termo do que o mote
o que do autor é um corpo discorde.

Um dia, o trem, livro de poemas publicado recentemente pela Nankin Editorial em parceria com a Funalfa, confirma Fernando Fábio Fiorese Furtado com um dos mais interessantes autores que, neste momento, escrevem poesia no espaço de Língua Portuguesa. Depois de Corpo portátil (2002), este comboio transporta-nos até um verbo que convida à meditação e à viagem, em linhas que tanto levam à catábase quanto à ascensão dos seres que povoam este mundo.

Adélia Prado é uma das poetas de língua portuguesa mais consistentes na sua produção. Há poucos dias fez anos e deu uma entrevista ao Cronópios. Pode ser lida aqui. Vale mesmo a pena.

NATAL ZERO OITO

(Textos de Nicolau Saião, desenho de H. Mourato)

Mais uma vez se cumpre a data que, para além de tudo o resto por dentro ou por fora, é uma saborosa pausa num quotidiano quantas vezes bichoso, inquietante ou imediatista.
Este ano o panorama, creio, não é de molde a fazer-nos sonhar amavelmente.
Não se trata só da violencia camuflada ou insolitamente nua que em tanto lugar se exibe contra indivíduos ou comunidades. Essa infelizmente já a conhecemos. O caso é um pouco mais complexo: as gloriosas certezas que percorriam esta parte do planeta, depois do apagamento por implosão da outra, começaram a dar de si, como se dum caixotão excessivamente repleto se tratasse. Mas o realmente grave – daí a inquietação – é que os seus próceres, alheios às terapêuticas eficazes, têm afixado uma estratégia de recurso que mais se parece com uma táctica de adiar para as calendas gregas o estrépito que já perspectivaram. E que é muitíssimo evidente.
Creio que nos cabe a nós todos aconselhar esses cavalheiros sobre a melhor actuação cidadã: abandonarem de uma vez por todas as prestidigitações e as habilidades de circo, tanto mais que não parecem estar a conseguir tirar coelhos de dentro da cartola...

Enfim, mais um período de Natal, essa quadra encantadora para a nossa não perdida inocência, chegou até nós. Como se usa dizer, parece que foi ontem a outra – e já trezentos e tal dias abalaram para o antigamente.
Mas calo-me já. Deixando-vos, com vossa licença e espero que por vossa estima, com o poema natalino que segue, cuja ilustração é de H.Mourato.
Boas Festas!


*

Quem fala de Natal perde palavras
à entrada do Inverno, na secura dos dias
no vasto frio das noites, tão lúcidas e antigas
tão de infância e de Agosto. O fogo
misturado: árvores, luzes, fantasmas
e as doces mãos das Avós. E ainda
um postal velho velho cheio de vento e de memórias.

Quem fala de Natal perde palavras, ganha
e perde as demais coisas que as palavras edificam.

“Quem grita no Natal? E Deus
não os fulmina? “. Quem mergulha os seus pulsos
na fria água do rio? Com seus chapéus à banda
em barcos engalanados
os anjos vão passando, dizendo amores esquecidos
dizendo estranhas frases, assombrando as moradas
onde afinal não nasce o tal de Nazareh. O sal e o
pão terrenal dos que ainda não foram
pelo ar, pela vida, pelos túmulos vazios.

Sim, pelo Natal as pobres casas em ruínas.

Para ser do Natal é preciso possuir
uma lembrança ardente, um brinquedo estripado
e muita tristeza feita nos anos em leilão
dos retratos tombando com um nó na garganta.
Para ser do Natal é preciso morrer
e viver de seguida com o sangue nos braços
esperando a estrela fixa do brusco espanto nocturno
junto à porta perdida dum milagre adiado.

Ah falar de Natal! Quem o consente?

O pão e o sal
talvez
de toda a gente. E um olho de animal
pairando no poente. Decisivo, visceral. E Deus, pobre dele
abrindo a água lustral (no bem, no mal)
frente ao horror da morte
terrena e inocente.

Por isso, no Natal
os segredos demoram
e tudo muda e tudo se envolve num pano branco barato
para que ninguém esqueça um corpo ferido que por debaixo jaz
- uma nova e desconhecida espécie de cadáver achado na ilha
dos animais inominados
e outras diversas coisas que por desespero se não apontam.

No Natal treme a casa, a casa
sempre caiada, como um sepulcro sem número e sem nome.

E o inventário dá, se estiver certo:
um coração ardido todo azul
uma recordação minúscula que se guardou num bolso
um riso salutar ensanguentado
uma pequena ironia desenhada a tinta de colegial
uma apenas esboçada mão posta sobre um antebraço
o lenço de cabeça duma tia que desapareceu na manhã
um gato tranquilamente dormindo ao cimo das escadas
uma rosa e uma palavra que a si mesmas se julgaram
duas mãos de pedra tremendo atravessadas por uma ferida
numa cruz de polo a polo
um hálito que soprado no peito nos enlouquece
um arrepio, uma agonia
uma tarde a fechar-se repleta de amargura e de alegria.

Talvez o Natal seja um rosto
ou uma madrugada de outono
ou um avião nocturno
ou um verão por detrás das coisas aparentes
ou um combatente jazendo de borco numa pia baptismal
ou os bramidos de dois seres abandonados encarando-se de súbito
numa rua da cidade
no escuro muito escuro de uma cidade do universo
quer dizer – luminosa e aterrada. E talvez

que tudo afinal esteja a mais, que tudo afinal
se resuma a filhós e azevias de um outrora
a canecas de café familiar
algures num horizonte, numa idade, num momento
no imenso murmúrio de uma voz sulcando o tempo.

E a chuva que diabo irá cobrindo tudo
no infinito Natal dos mundos desaparecidos.
NÃO HÁ LUGAR NA HOSPEDARIA

"Não havia lugar na hospedaria". De entre todas as frases que constroem a narrativa da Natividade é esta uma das que mais me impressiona. Mais do que uma imagem de pobreza, de ausência de abrigo, esta afirmação ecoa no meu cérebro como desencantada constatação da rejeição da digna humanidade de Jesus.
Hoje vivemos um Natal sem Natividade e sem Menino, envelhecido nas barbas brancas de um velho com barriga de fartura - empanturrado talvez pela "água suja" açucarada do refrigerante que trajou Nicolau de vermelho e lhe retirou o nome e o papel de servo de Cristo. Ausenta-se dele não só a pobreza de Jesus, mas até a sua imagem (envolvida nas notas de banco do comércio ou em papéis de embrulho), numa reverência aos deuses do neo-paganismo dominante (o Dinheiro, o Consumo, a Indiferença, o Relativismo, o Sucesso, etc.). Vivemos, assim, num mundo em que a verdade da frase registada no Evangelho se tornou evidente.
Como há cerca de dois mil anos, não há hospedaria que acolha muitos dos seres humanos que habitam neste planeta Terra. É fácil lembrarmo-nos dos impressionantes números da miséria extrema que revestem alguns países dominados por sanguessugas que, por vezes, até assumem as vestes da "democracia" para melhor se perpetuarem no poder e cometerem os seus crimes. Mais difícil é lembrarmo-nos daqueles que, ao nosso lado, não encontram lugar nas hospedarias da dignidade. E não são apenas quantos povoam as arcadas e os recantos do relento deste país, deitados em caixas de papelão. São também, por exemplo, as crianças que não encontram lugar nos infantários públicos, os jovens altamente qualificados que não têm emprego nem esperança de trabalhar no seu Portugal, os cidadãos dignos que se vêem espezinhados por dirigentes políticos económicos ou sociais levianos e/ou corruptos ou por um sistema de justiça em erosão, aqueles que perdem o seu emprego, os que vêem o seu sustento reduzido pela ganância bancária, os idosos que não têm que olhe por eles, sendo excluídos dos lares por causa das suas doenças ou por não terem dinheiro suficiente que compre a abertura de vagas.

*

Há pouco mais de um ano Rosária foi uma dessas excluídas que, todos os dias em Portugal, não têm lugar na hospedaria. Residente no concelho de Portalegre e doente de Alzheimer, quando a sua família se viu impossibilitada de cuidar dela durante alguns dias, ouviu em quase todos os lares da sua região a mesma resposta. Como se fosse uma pestífera, a sua doença provocou sempre a mesma recusa. Apenas o director do Lar de São Domingos dos Fortios lhe mostrou alguma luz na sua atitude sincera e sensível, apesar das dificuldades de espaço da instituição que dirige.
Felizmente a solidariedade aldeã resolveu as coisas de outro modo.
Ainda não há um mês, Deus, em definitivo, cessou por completo o seu sofrimento, as suas dificuldades e as da sua família.
Há sempre seres humanos que nos fazem acreditar na Humanidade e não descrer completamente deste mundo. No exemplo apontado, vemos o director de um lar, a vizinha solidária (D. Armandina) e até o médico (Dr. Serpa Soares) que, na hora da morte de Rosária, soube vencer os muros da burocracia cega do Estado e da insensibilidade de colegas seus.
Esta história poderá ser de proveito e exemplo, aclarando a consciência. Hoje, como há dois mil anos, há gente que é posta na rua porque não há lugar na hospedaria. Mas há sempre estrelas que guiam, grutas que na pobreza se abrem para acolher os excluídos deste mundo em que vivemos, pastores que oferecem o pouco que têm. Façamos parte deste segundo grupo - e concretizemos, com o nosso contributo, uma verdadeira comemoração da Natividade de Jesus de Nazaré.

As aventuras do nosso amigo Nicolau Saião

na Cronópios podem ser lidas e vistas aqui.

EDSON CRUZ

palimpsesto

toda poesia já
escrita
não se equipara
a toda poesia
inscrita
a poesia jaz


esmero

retocar a canção
chegar até
à imperfeição
de mero José
a impossível João


abulia

quando os homens
se abatem
todo o universo
— misteriosa simbiose —
se esbate
melancolia é soberana
sobre as lápides


samsara

pois tudo se transforma
mesmo o nada que não quer
ser algo vira alguma coisa
que logo vem a ser outra
do feitio que ela vida
quando se desativa
e a chama passa a se
chamar morte naquele des
equilíbrio tênue de quem
precisa e quer renascer



EDSON CRUZ (Brasil, 1959). Editor do sítio web de literatura Cronópios e da revista literária Mnemozine. Entrevistador do programa BITNIKS voltado para literatura na internet. Escritor, editor, revisor e preparador de textos. Revisor pela Ateliê Editorial, Editora Unicamp, Sapienza Editora e Novo Século. Curador do evento Cartografia Web Literária, em parceria com o SESC-Consolação (2008).
José do Carmo Francisco

O MISTÉRIO DE FORTALEZA

Seis flores secas, serenas
Envolvidas em resina
São duas jóias pequenas
No rosto de Carolina

Mistério de Fortaleza
Entre livros e escritores
Leva toda a tua beleza
Vás tu para onde fores

Nesta serena suspensão
Do sorriso frente ao mar
Vejo a porta e a solução
Do mistério a desvendar

Somos o mundo suspenso
Nos sonhos não editados
O que sinto e o que penso
Não cabe nestes quadrados

Nestas quadras de balada
Neste ritmo de romance
Uma vida mais revelada
Não está ao meu alcance

A jóia que está à vista
Nas orelhas em dois lados
É motivo a que insista
Por elementos e dados

Mistério de Fortaleza
Que fica por decifrar
Guarda uma incerteza
No tempo do teu olhar

Que o poema não encerra
Nem há canção que defina
Fica cheiro de mar e terra
Luz do rosto de Carolina

A HERANÇA DE DOM CARLOS

de António Cândido Franco


Será apresentado no próximo dia 4 de Dezembro, pelas 19 horas, o novo livro de António Cândido Franco, intitulado A Herança de D. Carlos, editado pela Ésquilo. O lançamento decorrerá no Espaço D. Dinis, sito na Avenida António Augusto de Aguiar, nº 17, 4º Esqº, em Lisboa. Sobre a obra falará o historiador Miguel Sanches de Baêna.

António Cândido Franco afirma sobre este seu romance histórico:


«Carlos I é a tragédia de toda uma família, uma tragédia que vem do fim doséculo XVIII e se prolonga até aos nossos arrabaldes. A história do nosso último rei a sério ­- já que Manuel II não passou duma criança que fez deconta que reinou durante dois anos ­ - foi afinal um caso que demorou bem maisde cem anos a germinar e a desenvolver. Que desmedido ventre o trouxe aomundo! Em vez de nove meses, noventa anos de gestação. É caso muito sério. E é por ser tão horrível e tão imensa, que uma tal tragédia nos parece tão estupenda. Sem conhecermos os avós, nunca perceberemos o neto. Carlos em si é um enigma, uma bola opaca e pesada de carne ou de sebo, avessa ao mais penetrante olhar, mas visto à luz dos hábitos e das histórias dos seus antepassados faz-se claro, fácil, transparente. Este ser que viveu quarenta e quatro anos pode ter sido reservado como um tímido, fechado como um oráculo e desconhecido como um estrangeiro mas o seu passado faz dele um sertão previsível e tão esperado como um hábito repetido; na sua figura e na sua história vieram afinal cruzar-se com a máxima força e crueza todas as virtudes e todas as taras que encontramos dispersas e desencontradas nos seus antepassados mais próximos
Victor Oliveira Mateus


a Cristovam Pavia



Pela janela do meu quarto ouço um ruído que se mantém:
longínquo, indistinto na sua distância, nessa permanência
de rumor que me sufoca. Que me sufoca e atordoa os pássaros
na ramaria em frente. Pela janela as vozes de um lugar!
Vozes que curiosamente vejo e que magoam este desacerto

que sempre volta entre o diferente que vislumbro e esta cidade
empedernida: fanqueiros com os seus manequins de papelão
carcomidos pelo tempo e pelo desuso; miúdos com seus carros
de esferas a ziguezaguearem na humidade do asfalto; um cão
vadio ( ou de liberdade cioso?) vasculhando os restos com que

os imprestáveis excessos mascaram sua vaidade. Pela janela
do meu quarto bebo a luz que a cidade não tem, mas que para ela
sonho em momentos de insurrecto furor ou de esparsa melancolia;
momentos onde ainda teço os poucos poemas que de mim – talvez –
se firmem, para júbilo dos que suportam, mas não desistem.