Nicolau Saião
QUINTAL DE NATAL
(...) E, instado pelo sr. Chefe de Brigada, o acusado disse: “Sim, era na altura do Natal que lá se viam as laranjeiras, os limoeiros e as tangerineiras, no meio de outras árvores de fruto e de algumas poucas oliveiras. Aquilo esplendia sob a doçura do silente sol de Dezembro. E a mãe recomendava sempre à mana: 'Vê lá não caias da escada...!', referindo-se ao artefacto de madeira mediante o qual se chegava aos mais altos ramos. Levavam-se sempre dois saquitéis - e um deles acolhia os limões para que a sua casca cheirosa, ralada, polvilhasse a fina massa das filhozes e azevias... E o pai levara da cidade - primeiro pela estrada de terra batida e depois, passado o portão, pela vereda entre os pinheiros que ao pé dos cortiços de abelhas, sob a azinheira, atravessava o ribeiro acrescentado pela água das chuvas - em dois sacos de linho granjeal as coisas raras e os modestos presentes que se transformavam em segredos de alto preço na hora aprazada.
E interrompeu o Sr. Procurador e, à sua interpelação, respondeu o acusado:" Era a avó, a comadre Maria Serenina, a prima Rosa, a vizinha Generosa, além dos mais próximos é claro. Reuníamo-nos na sala grande, havia a mesa de castanho, a lareira...O quarto ao cimo da escada misteriosa, com a janela de onde ele perscrutava os medos e as maravilhas".
E a mais uma pergunta, que pareceu atrapalhá-lo, do sr. Chefe de Brigada, o detido declarou: “Cantávamos, sim, confesso que cantávamos: loas ao ‘deus-menino’, rimances ingénuos onde se falava nas consoadas distantes, modas aprendidas através dos tempos. E sentíamo-nos felizes - e lá fora, enquanto nós ceávamos seroando na santa paz das horas perdidas, lá fora as árvores descansavam sob a luz da lua e do firmamento recamado.”Ao arguido foi levantado o competente processo por delito poético-natalício de recordação(…).
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