JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
Pelos olhos de Célia
Pelos olhos de Célia passa toda a profundidade e todo o silêncio dos caminhos do Sul, toda a solidão dos montes perdidos entre o vento e a luz, todo o longe das planícies secas neste Verão que parece não ter fim.
Emília, a dona da casa onde escuto e contemplo Célia, serve-nos um aromático café que se perfila na mesa ao lado de uma taça de arroz-doce e um prato com algumas batatas doces acabadas de assar no forno.
Pelos olhos de Célia passa uma paisagem povoada pela saudade: o arroz-doce lembra as alegres mondadeiras com lenço e chapéu que regressam a cantar do campo ao fim do dia e a batata doce lembra as jovens campaniças que passam a caminho de casa com o cesto dos mimos da horta fechando assim as portas da tarde.
O lugar onde Célia sorri e fala de mansinho tem o estuário do Tejo à esquerda e a Estrada de Pegões à direita. Entre a água e a terra, entre os pescadores e os camponeses, há neste lugar um intervalo onde apetece ficar. Como se o sal destas velhas salinas sugerisse o prolongamento deste encontro entre água e terra. Assim o encontro ficaria conservado numa espécie de arca onde o olhar de Célia, suas memórias e suas paisagens povoadas, não se iria perder na monotonia e no desgaste de todos os dias.
Pelos olhos de Célia passa uma música suave cruzando, de maneira harmónica, as cantigas das mondadeiras e as melodias da viola campaniça. É essa música, essa mistura da voz das raparigas e da viola campaniça, é essa música que eu continuo a ouvir em todos os cruzamentos da estrada no caminho de regresso às convenções, às conveniências e às obrigações do quotidiano.
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