AMADEU BAPTISTA




DOZE CANTOS DO MUNDO

(alguns excertos)







WILLIAM BLAKE: NIGHT THOUGHTS (1797)



Não há síntese,



mas só mundos paralelos
onde a graça e a desgraça
se encontram
para delimitar o inferno
e o acrescentarem



com a essência e o erro,
a tontura e o desequilíbrio.
[…]







GOYA: A FAMÍLIA DE D. CARLOS IV (1801)



[…]
Preciso de água forte para dessedentar
o rumo a que o desespero obriga,
pincéis de cerdas duras,
espátulas cortantes,
paletas invisíveis
onde as cores, fortíssimas, latejem.



Preciso de fulgores
e circunstâncias
onde uma ardência nos olhos possa ser
um sinal de redenção,
[…]







GUSTAVE COURBET: A ORIGEM DO MUNDO (1866)



[…]
Eu crio:



estrume,
ou esterco,



crio,



para que o meu testemunho,
sob o efémero,
possa aguilhoar as almas
e consumar
a união entre o diverso e o transitório,
e não haja mais escândalo
que o escândalo
de ser a soberba a nossa ignorância



e a nossa ignorância a desventura.
[…]







FRANCIS BACON: STUDY FOR CROUCHING NUDE (1952)



[…]
No osso inciso,
na grande obra incompleta,
sou uma válvula de vácuo
e um transístor,
a desfragmentação
e o cromatismo
que resiste à vileza
e vê no crime
o imparável modo de estar vivo,
a aprofundar a refrega dos subúrbios,
como arte,
dissipação,
incandescência.
[…]



[…]
[…] os cães estão em todo o lado,
e devoram as casas,
e sobem aos telhados para devorar
os livros,
e, nas jaulas,
amontoam cadáveres,
instantes peregrinos
com cabeça de rádio
e desorbitados olhos
pelo terror do urânio,
as múltiplas engrenagens.
[…]









MARK ROTHKO: NUMBER 207 – RED OVER DARK BLUE ON DARK GRAY (1961)



[…]



Coube-nos viver num tempo de assassinos,
mas é a claridade que almejamos,



não a que veio ao quadro convocar-nos,
mas a que, pelo poder da pintura,
se instala em nós,
a modular a noite
e a apaziguar-nos.



É essa claridade que procuro,
– e o silêncio.



O silêncio das cores e o seu apelo
irrevogável,
de que nada há a temer,
mesmo que atemorize.



A vida é isso mesmo:



o medo à nossa frente,
imóvel como a esfinge,



e nós sempre a enfrentá-lo,



transparentes,
aflitos,
condenados,



mas prontos para ver



as cores do infinito.





Doze Cantos do Mundo está entre os melhores livros de Amadeu Baptista. Foi galardoado com o Prémio Oliva Guerra, na edição de 2008. A colectânea foi publicada em Setembro de 2009 pela Câmara Municipal de Sintra (organizadora do concurso), numa tiragem infelizmente restrita.

Sem comentários: