Autobiografia
Matilde Rosa Araújo


(JL 928, de 26 de Abril de 2006)



Falar da minha vida, no seu percurso até esta idade octogenária, é difícil. Mais difícil ainda para uma memória sempre abalada, ida, de quem desde criança viveu "fora do contexto". Este "fora do contexto" não por excepcionalidade (afirmo-o sem falsa modéstia), mas porque sempre me encontrei longe e perto. Este longe e perto não nega o tesouro real, para além da família, que constituíram os amigos. Amigos de presença tão viva, embora tantos já ausentados pela lei de um "fim" que muito dói e não sei entender.

Nasci numa quinta em Benfica, no meio de árvores, flores, fontes, animais natureza viva que me seduzia. Perto de Jardim Zoológico. De noite, ouvia o ressonar ou o gemer dorido dos leões, dos tigres, do elefante e de outros animais que não identifico: eram "vozes" de animais presos. Vozes de grades. E gritos de aves estranhas. Ficava acordada para os ouvir, não sei porquê. E doíam-me. Não seria já o "gosto amargo" de sofrer (que não tenho) mas a inconsciente busca de um mundo próximo e livre que não entendia.

Não frequentei nenhuma escola. Quantas vezes subi para o telhado de casas onde vivia, para olhar os meninos que iam para a escola? Talvez, por isso, a infância encontrou-me quando comecei a ensinar. Encontrou-me e continuou comigo no deslumbrado acontecer das aulas, deslumbrado e receoso de não saber comunicar. E fui aprendendo, tentando aprender o segredo da infância, da juventude, descoberta viva todos os dias. O curso de Letras encaminhara-me para esta profissão. Tive sorte. E o que aconteceu? Foi tanto o acontecido.

Em Lisboa, e por outras terras, fui enraizando o poder de um sonho Os Direitos da Criança.

E, comungando na profissão e à margem dela, encontrei amigos que não posso nem sei esquecer.

Amigos simples e grandes cuja ternura ainda me embala. Desde a Faculdade de Letras da velha Academia das Ciências, professores, colegas que me deram a fortuna do seu ser, do seu contar.

Depois, na vertente das Letras, lembro a felicidade que constituiu para mim fazer parte da Sociedade Portuguesa de Escritores. Felicidade que findou (findou?) numa amarga, injusta destruição da sua sede. Falar de lágrimas nesta altura é pouco: a própria revolta seca-as de imediato.

Vivi décadas do século passado, como se calcula. E, nesse século, pude olhar dois momentos da História que me deslumbraram.

Uma alegria que Beethoven na sua ode nos entregara para sempre, maravilha de sons que aconteceu. Pungente. Viva. Um desses momentos foi o fim da Segunda Guerra Mundial. A paz no Mundo na qual acreditei para sempre. Soava a Alegria como água pura da nascente. Branca luminosa.

Outro momento foi o 25 de Abril. Depois de um tempo de silêncio, de silêncios, com vozes heróicas ou caladas, nós íamos acreditar num país de fraternidade, sem arma de agressão. País sonhado há tanto. De justiça e paz. E hoje? "Pelo sonho é que vamos", como disse Sebastião da Gama". Continuamos.

De mim, que mais posso falar? Escrevi. Escrevo ainda. Sei que é bom viver, apesar das dores, das inibições físicas. Mas como é bom amar, ter amado. Em ter a infância no coração. Com a infância no coração e tanta memória com ela encontrada. Às vezes, acontecimentos aparentemente tão simples mas que apontam da infância um historial amargo. Simples como uma boneca de trapos, trapos sujos pelo tempo magoado. Olhos de retrós que olham para mim num doce olhar.

Eu lembro a "história" desta boneca, que não é só minha, como se contasse o segredo escondido de toda a criança mal amada. Fui, um dia, a uma escola. Qual? Já nem me lembro do seu nome, da terra a que pertencia. Mas não esqueci nunca, nunca poderei esquecer, a prenda rara que foi para mim esta boneca. Parece-me, desde que a recebi, que ela tem voz, que me dá um imenso recado. Enfim, como já disse, visitar uma escola. Qual? Onde? Como sempre, rodearam-me os alunos com a sua ternura, as suas interrogações, a graça tão única de quem é jovem em querer descobrir o mundo. Entre esses jovens surpreendeu-me o olhar de uma menina, olhar triste e destroçado de infância perdida. E a menina olhava, eu percebia sem o saber nada do seu mundo para além da mágoa do seu olhar.

No meio daqueles alunos que perguntavam, ficaram muito sérios ou riam, me davam a força da ternura, não me apercebi da ausência daquela menina triste. Estava no momento de me despedir, agradecer a todos, professores e alunos, tanto amor que me fora dado, quando a menina triste que se ausentara chegou junto de mim. Com uma boneca de trapos, envelhecida pelo uso, nos seus braços magrinhos.

Tome. É para si. Eu fui buscá-la.

Não nomeou onde fora. Mas onde chegou até mim.

Não podia aceitar.

A boneca é tua. É a tua boneca! Aceite. Eu quero que fique consigo.

Mas não. Os olhos da menina, determinados, imploravam. Olhos maravilhosos e húmidos de uma fome que não é de pão. Compreendi. Os professores da escola ajudaram-me a compreender aquela dádiva única daquela menina mal amada. Toda a criança também é uma dádiva única. Aquela boneca não lhe pertencia. Não tinha o direito de brincar numa casa sem amor. Menina que não era amada podia guardar a sua boneca de trapos? Boneca tão suja e tão linda! E não me lembro do nome da menina "sua mãe". Por contraste a boneca seria a "cigarreira breve" de Fernando Pessoa. Outra forma de guerra. Não me lembro do nome da menina mas sei o seu recado. Esta boneca "aconteceu" numa visita a uma escola.

Tenho ainda a felicidade de visitar escolas, bibliotecas generosos convites dos seus responsáveis.

Convites que me trazem o grande prazer da convivência, do afecto dos professores, bibliotecários, auxiliares de ensino, da juventude. Sem esquecer a infância que por vezes me cabe como uma graça plena. E, com estas visitas, lembro o passado do livro infanto-juvenil, o respeito renascido por esta literatura até então quase ignorada, adormecida em silenciosos armários escolares. E lembro, com grato respeito, a importância que tiveram para tal literatura as carrinhas, bibliotecas ambulantes, da Fundação Calouste Gulbenkian. Carrinhas que corriam o país e levavam a boa nova do livro que todos podiam ler. As crianças, os jovens. E os adultos rompendo a morna ileteracia também. Hoje, nessa esteira, temos bibliotecas que são o lar vivo de uma literatura tanto tempo ignorada apesar de lhe caberem cultores, raros embora, de grande mérito literário e pedagógico.

Nas décadas que vivi, pude assistir a esta dignificação das letras tão naturalmente ignoradas.

E como a história, a "estória", está tão presente no coração dos homens! O reconto oral é um património riquíssimo de entendimento da vida, das suas realidades, da sua poesia. Esta oralidade está viva, acontece nas próprias bibliotecas sem livros adormecidos. Sei, como não saber?, que os meios audiovisuais são fortes competidores da imprensa escrita. Mas sei, também, que tal imprensa não pode morrer: os livros, os jornais (da escola e não só) têm uma força real, o segredo claro de um diálogo silencioso e livre com o leitor. Diálogo que espera, permanece.

Cheguei até aqui com a voz da memória a dizer-me tanto. Há anos (do tal século passado.) pude editar três volumes que contêm a recolha de textos (poesia e prosa) de escritores portugueses. Nesses textos de autores de diferentes épocas, textos "para adultos", pude encontrar em beleza em verdade a presença da infância. Da própria infância e da infância com eles convivente.

A um desses volumes dei o título de Estrada Fascinante. No seu prefácio acabo por dizer: "Alguma paixão reconheço nestas folhas, reconheço-a mas não a enjeito. Para mim, abriu-se uma "estrada fascinante" e só lamento os pés menos firmes de quem foi, apesar de tudo, deslumbrada caminheira". Estrada nunca demais percorrida.

3 comentários:

Anónimo disse...

Ruy,
Excelente trabalho na divulgação do pensamento e da vida fascinante de Matilde Rosa Araújo. Ela bem o merece.
NOTA - Estamos a perder os nossos intelectuais. Quem fica depois para pensar o mundo português? Assusta o vazio que se adivinha...

Um abraço,

Samuel Galazak

Teresa Lobato disse...

Não poderia estar mais de acordo com este teu amigo que se assina de Samuel. Mais preocupada fiquei com a nota. Na verdade, assusta o mundo que se adivinha, o que está à frente dos nossos olhos e o outro, aquele que se esconde sob as capas da economia e da comunicação (tu entenderás, Ruy). Serão os teus filhos, os meus netos, convertidos em bonecos? Ah, quem me dera agora pegar numa enxada e lavrar, lavrar, lavrar...

Ruy Ventura disse...

A tarefa mais difícil é ensinarmos os nossos filhos/netos, os nossos alunos, a pensarem contra a corrente, pois mais sedutora que ela seja. Não nos esqueçamos que o Demónio não é repelente como o apresentam as gravuras e os filmes comerciais, mas muito atraente e sedutor. Mesmo que isso nos custe muito, é esse o trabalho futuro.