PROSÉLITOS
DO NEONATURALISMO (2)

João Luís Barreto Guimarães não foi o primeiro autor a atacar aquilo a que chamou a "poesia abstracta" - nem será, decerto, o último a fazê-lo. Infelizmente, o desdém nunca tem sido suficientemente claro para que entendamos o que pensam ser a tal abstracção poética. Partindo do princípio de que não confundem conceitos tão diferentes quanto os de "abstracção", "hermetismo", "surrealidade" ou "simbolismo", então os prosélitos desta batalha têm produzido juízos propositadamente ambíguos, ferramentas propícias para lançarem o anátema sobre todas as formas poéticas que não partilhem do neonaturalismo (expressão feliz de Levi Condinho) que vêm adoptando como veículo dos seus poemas. Alguns dos recém-convertidos não hesitam mesmo em repudiar pela calada várias obras suas, como por exemplo o supracitado autor de Rua 31 de Fevereiro, subscritor no início da sua deambulação pela república das letras de três bons livros que, nos seus critérios, podem ser considerados "abstractos"...
Este proselitismo neonaturalista - revestido sempre de boas intenções ("generosas", como diriam os sequazes mais ortodoxos do neo-realismo militante dos anos '40 - '50) - vem sendo agarrado (ou reinventado) pelos chamados "poetas sem qualidades", integrados num apostolado falsamente realista que tem como guru Joaquim Manuel Magalhães, mas, no fundo, bem no fundo, se reveste de um subreptício epigonismo de certas linhas mais facilitistas de alguma poesia anglo-saxónica e da "poesia da experiência" hoje divulgada e fabricada nalguns meios espanhóis.

(continua)

Carreiras (Portalegre), Dezembro / 2006
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


Pelos olhos de Célia


Pelos olhos de Célia passa toda a profundidade e todo o silêncio dos caminhos do Sul, toda a solidão dos montes perdidos entre o vento e a luz, todo o longe das planícies secas neste Verão que parece não ter fim.
Emília, a dona da casa onde escuto e contemplo Célia, serve-nos um aromático café que se perfila na mesa ao lado de uma taça de arroz-doce e um prato com algumas batatas doces acabadas de assar no forno.
Pelos olhos de Célia passa uma paisagem povoada pela saudade: o arroz-doce lembra as alegres mondadeiras com lenço e chapéu que regressam a cantar do campo ao fim do dia e a batata doce lembra as jovens campaniças que passam a caminho de casa com o cesto dos mimos da horta fechando assim as portas da tarde.
O lugar onde Célia sorri e fala de mansinho tem o estuário do Tejo à esquerda e a Estrada de Pegões à direita. Entre a água e a terra, entre os pescadores e os camponeses, há neste lugar um intervalo onde apetece ficar. Como se o sal destas velhas salinas sugerisse o prolongamento deste encontro entre água e terra. Assim o encontro ficaria conservado numa espécie de arca onde o olhar de Célia, suas memórias e suas paisagens povoadas, não se iria perder na monotonia e no desgaste de todos os dias.
Pelos olhos de Célia passa uma música suave cruzando, de maneira harmónica, as cantigas das mondadeiras e as melodias da viola campaniça. É essa música, essa mistura da voz das raparigas e da viola campaniça, é essa música que eu continuo a ouvir em todos os cruzamentos da estrada no caminho de regresso às convenções, às conveniências e às obrigações do quotidiano.
PROSÉLITOS DO NEONATURALISMO (1)

De vez em quando surge nas discussões aparentemente poéticas o tema da abstracção.
O repúdio por esta - ultimamente expresso por João Luís Barreto Guimarães nas "Correntes" poveiras, conforme relatou o Diário de Notícias de 10 de Fevereiro - leva no entanto água no bico.
Ao contrário do que parece, esta posição constitui um ataque contra toda a poesia que não use uma linguagem neonaturalista, pois se virmos bem são muito poucos os verdadeiros exemplos de abstracção poética que, mesmo assim, só existem negativamente quando constituem um estéril jogo verbal.
Fora da abstracção estão as linguagens hermética e simbólicas e a reflexão sobre realidades imateriais, intangíveis ou enigmáticas, reveladoras de uma aproximação ao concreto muito mais intensa do que se pensa.
Mas lembremos Vitorino Nemésio. Nem concreto nem abstracto são propriamente poesia...

Floriano Martins





A TORTURA DA REFLEXÃO





Precipitas teu olhar sobre meu corpo,
entrelaçando vertigens, salpicando hábitos,
adiando aquele último verso que expande
o que jamais em mim conquistarias.
Não é em mim que teu mundo se esgota.
Nem sou o lastro de tua agonia irremediável.
Tuas mãos soluçam ilusões quando me tocam,
lapidam amores perfeitos pela tarde inteira.
Não há linguagem que não se adie ante a flor
que descanso à margem de minha saia.
Não importa que me confundas com outra:
os teus enganos serão sempre os mesmos.





(Pintura de Hélio Rola.)

NICOLAU SAIÃO, colaborador do Estrada do Alicerce desde as primeiras horas, faz hoje anos. Reproduzir aqui uma das suas pinturas, parte da série "Urze do Monte", é uma maneira simples de, à distância, darmos todos um abraço apertado ao pintor, ao poeta, ao cidadão e ao amigo.

Estremoz
UM POSTAL
PARA MÁRIO CESARINY:
"VIAGEM A ARCTURUS"

Pintores na surrealidade assinalam Cesariny (“Um Postal para Mário Cesariny”).

Mostra internacional, com autores de Portugal, Espanha, França, Estados Unidos, Escócia, Canadá, Itália, Brasil, Argentina… - 4 de Março a 1 de Abril

Entretanto, tem estado a decorrer, prolongando-se até 25 de Fevereiro, a mostra "Contemporâneos de Cesariny no acervo da Galeria de Desenho do Museu Joaquim Vermelho".

POESIA
Conversa a propósito da estadia de Mário Cesariny, Mário-Henrique Leiria e António Maria Lisboa em Estremoz (Colégio Moderno do Dr. João Falcato), com a récita de poemas de Cesariny, A. M. Lisboa e M. H. Leiria (Café Águias d’Ouro), com a presença de António Simões, Miguel de Carvalho e Nicolau Saião. - 24 de Fevereiro

Poetas na surrealidade em Estremoz – antologia - organizada por NS - lançada a 31 de Março, com poemas de Allan Graubard, Amanda Berenguer, António Barahona, Carlos Martins, Claudio Willer, C. Ronald, Floriano Martins, Gérard Calandre, Isabel Meyrelles, Jack Dauben, João Garção, João Paulo Silva, Juan Liscano, Maria Estela Guedes, Miguel de Carvalho, NS, Rafael Daud, Renato Suttana, Rosa Alice Branco, Ruy Ventura, Susana Giraudo, Wladimir Saldanha. Será ainda publicado um poema de Mário Cesariny cedido pelo Eng. José Alberto Reis Pereira, dedicado pelo A. a Saul Dias.


Ciclo levado a efeito pelo Museu Joaquim Vermelho (responsável, Dr. Hugo Guerreiro), com organização de Nicolau Saião e Carlos Martins e apoio de José Cartaxo

Agradecimentos: a Maria Estela Guedes, Ana dos Santos, Ruy Ventura, Cruzeiro Seixas e Floriano Martins.

(Imagem: "O papá que veio de leste", 1980, óleo de Mário Cesariny, col. João Garção)
E AGORA? (2)

O resultado do referendo conduziu à descriminalização do aborto em Portugal. Os resultados, tal como aconteceu em 1998, não servem no entanto para qualquer uma das tendências de voto embandeirarem em arco. Apesar de a abstenção ter diminuído, é preciso ter em conta que 56,9 % dos eleitores resolveram não se pronunciar sobre o tema em questão. (Muitos deles entenderam certamente a “jogada” de José Sócrates que, raposão, soube aproveitar este pretexto para lançar poeira sobre os olhos dos portugueses, desviando a sua atenção dos reais problemas do país e das manobras que vai maquinando...)
Por isto, é cómica, não fosse trágica, a euforia de alguns prosélitos do “sim”. Tentam a todo custo encobrir uma realidade: de um universo de 8.098.480 eleitores, só 3.777.131 votaram e, desses, apenas 2.238.053 aprovaram a descriminalização, isto é, 27,6% dos inscritos nos cadernos eleitorais... Esta atitude agora verificada é, infelizmente, uma réplica da assumida por alguns vencedores de ’98, provando que poucos aprendem algo com as lições do passado...
Com a descriminalização de um acto eticamente reprovável (nisso, sincera ou hipocritamente, todos os portugueses parecem estar de acordo... embora muitos esqueçam que, deste modo, se separou a lei da ética...), de ambos os lados há responsabilidades acrescidas.
Do lado do “sim”, espera-se uma postura consequente, na defesa igualmente acérrima dos direitos de todas as mulheres e respectivas famílias que recusam o aborto e desejam ter filhos. Gostaríamos todos que os eufóricos vitoriosos (que afirmam defender a vida... e eu acredito!) pugnassem agora pela concessão de incentivos à natalidade (num país em envelhecimento acelerado) – nomeadamente o alargamento das licenças de maternidade, tal como na Alemanha –, pelo apoio intenso aos casais em dificuldades económicas e com filhos, pela aprovação de mecanismos facilitadores da adopção de crianças, por um regime de efectiva protecção dos menores em risco, pela publicação de legislação que defenda os pais e mães deste país no emprego (a começar pela Função Pública), por uma eficaz fiscalização dos abusos que eventualmente se cometam nas futuras clínicas abortivas, por uma política de planeamento familiar que promova a responsabilidade, por uma lei do aborto que ainda assim promova a vida (fazendo perceber às mulheres eventualmente desesperadas que o aborto não é solução, mas problema), pela perseguição dos operacionais do aborto (não falo das mulheres!) praticado após as dez semanas.
Do lado do “não” espera-se a continuação e o aprofundamento das iniciativas que visam a ajuda às mães e às famílias em dificuldades, a denúncia persistente do mal ético que constitui o aborto (sem hesitações, mesmo perante insultos soezes), a vigilância activa da aplicação da lei do aborto que venha a sair do Parlamento. Mas, também, uma atitude consequente e verdadeira da parte de alguns líderes com voz ouvida na sociedade no campo social e religioso, nomeadamente defendendo uma educação para a sexualidade responsável, um planeamento familiar que evite o recurso ao aborto e uma acção transparente (não corrupta e/ou caciqueira) de algumas das instituições que tutelam. Espera-se ainda que alguns empresários ditos cristãos concretizem, sem hipocrisias, a fé que dizem professar, nomeadamente accionando nas suas empresas práticas laborais que protejam a maternidade e a paternidade (ao contrário do que actualmente se passa em muitos locais de trabalho).

JULIÁN RODRÍGUEZ


O lugar, a imagem
de Ruy Ventura

O livro de poemas de Ruy Ventura, O lugar, a imagem, pertence à colecção “Letras Portuguesas”, na qual a Editora Regional da Extremadura irá apresentando algumas das vozes fundamentais da mais recente literatura portuguesa: poesia, narrativa, ensaio... Esta edição, bilingue, conta com uma tradução para o castelhano de Antonio Sáez Delgado (Cáceres, 1970), poeta, ensaísta e prestigiado tradutor e professor da Universidade de Évora.

Uma citação de Bernardo Soares, heterónimo de Pessoa e “autor” do Livro do Desassossego, abre este livro: “O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos”. Em volta destas palavras se articula o poemário de Ruy Ventura, um dos nomes mais interessantes da nova poesia portuguesa. A imagem, parece dizer-nos, também pode ser “interior”, isto é, não construída com o olhar mas com as vivências, com os lugares visitados, vividos, sempre com uma carga de passado, de atemporalidade e, quase, de sacralidade. Uma fortaleza (a do Portinho da Arrábida, ou a de Aveyron), uma igreja (a de Portalegre), um castelo (o de Sesimbra, o das Carreiras, o de Valencia de Alcántara...), uma torre (a das Jerónimas, em Trujillo)... E não apenas lugares: também objectos, objectos “contemplados” (uma escultura antiga, uma talha de madeira...).
As paisagens – os lugares – são projectados na escrita com um distanciamento e uma dicção (sempre essa combinação: as formas populares e a vanguarda, digamos, tradicional) que as faz mais verdadeiras e duradouras: a emoção sempre contida e as palavras sempre ditas em voz baixa. A marca que deixa esta poesia tem que ver tanto com o dito como com o não dito. Sirvam como exemplo alguns versos do poema “regresso”, que nasceram, como assinala Ventura numa nota de rodapé, ao contemplar uma escultura do lendário rei português Dom Sebastião, um verdadeiro mito, mais sentimental do que heróico, no seu país:

“depositaste na pedra
o teu olhar sem sombra
para melhor suportares
o peso desses ombros,
recuperando a cinza
que ficou sobre o oceano.”
(p. 30)

E uma estela funerária romana encontrada em Mérida provoca estes outros, saídos do poema “memória”:

“mal oiço o som do alaúde em tua casa.
não consigo ver a pomba
voando sobre a cinza,
no sepulcro da ruína e desta alma.
exumei com os olhos
o mosaico que rodeava, talvez, esse coração –
mergulhado na água e na melodia.

séculos depois, encontro esse rosto
tão cedo escondido.
desenhado no mármore.
como numa fotografia.
esse sorriso escavando a penumbra da nave –

a iluminação das lágrimas
no interior do vidro.”
(p. 28)


Tradução de Duarte Correia, a partir da página da Editora Regional da Extremadura. Julián Rodríguez, escritor espanhol (Ceclavín, 1968), é o autor do design gráfico e da capa do novo livro de RV.



JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

Namorar a água e o fogo

A água e o fogo entram nas nossas casas todos os dias pelo ecrã da televisão.
Inundações na Roménia, fogos em Viseu, rios a transbordar na China, incêndios às portas de Coimbra. Todos temos sobre água e fogo as nossas memórias.
Os longos Invernos traziam as cheias. Águas amarelas, lamacentas, velozes.
Chovia durante semanas inteiras, o rio transbordava.
Ele subia para uma escada até à mais alta fresta do barracão do quintal, entre a palha e a lenha, entre a roupa a enxugar da mãe e as poucas alfaias agrícolas do pai.
Namorava assim a água. Nas tardes de Inverno a olhar. Sabendo que de noite os rios não existem – são apenas água a namorar a terra.
Desde sempre namorou o fogo. O do forno do pão.
Primeiro na casa da avó, um quintal grande onde se juntavam pelas tardes as mulheres mais velhas da aldeia. Mais tarde aprendeu a gostar de ver a mãe fazer o pão no forno da casa que o pai construiu num anexo. Ficava longos minutos a ver o fogo lento, as brasas em destruição silenciosa, o cheiro do pão a entrar em casa mesmo com as janelas fechadas. Hoje namora outros fogos. Num fogão de sala. Numa lareira.
Sempre que atravessa o barracão para trazer lenha repete os gestos da avó e da mãe: acender no fogo a memória do pão, repetir no lume a memória da infância, ir buscar ao calor a memória da paz desses dias perdidos.
Nota: Aproveito este post para dar um abraço ao autor, José do Carmo Francisco, por mais um aniversário. - RV
E AGORA? (1)

Nunca tive grandes dúvidas em relação ao resultado do referendo, embora tenha defendido sempre a opção negativa. Esta tendência para a descriminalização de violações de bens jurídicos fundamentais faz parte do "espírito" da sociedade em que vivemos, dita "multicultural", embora no fundo seja apenas relativista, porque dominada pelo individualismo.
Se, por um lado, há uma crescente normalização de atitudes e de padrões de vida - manipulada pelo consumismo mais descarado -, por outro assiste-se a uma desresponsabilização dos cidadãos (quando abortam, quando se prostituem, quando se drogam, quando roubam, etc.), menorizando-os, sem se atribuírem responsabilidades verdadeiras àqueles que contribuem malevolamente para tais atitudes. No fundo, bem no fundo (por mais que nos custe), de há algum tempo a esta parte deixámos de ser verdadeiramente cidadãos, para passarmos a ser apenas utentes ou consumidores, cuja dignidade é apenas um instrumento político ou económico...
Esta tendência social - que deveria preocupar qualquer pessoa consciente - dá jeito às gerências políticas da coisa pública que, assim, se vêem livres de combates sempre muito difíceis (mas necessários), pondo em risco, contudo, o equilíbrio social, devido a uma separação erosiva entre a ética e a legalidade.
O perigoso disto tudo - para além da quebra da dignidade dos cidadãos, contruída sempre em torno da responsabilidade individual - é a emergência de formas assustadoras de populismo e de movimentos políticos fascizantes, que sabem aproveitar bem a angústia existencial que a desculpabilização causa entre as vítimas de actos eticamente reprováveis. Por ser esta uma tendência geral das sociedades pós-modernas em que vivemos, não nos admiremos então que por esse mundo fora (mormente na Europa) surjam cada vez mais movimentos neo-nazis...


Aljezur

igreja da Senhora de Alva

2006
ARQUIVO DO NORTE ALENTEJANO

Desde ontem este blogue tem uma sucursal, dedicada ao Norte Alentejano. Arquivo de memórias, de visões e de olhares, publicará - entre muitos outros textos sobre o património material e imaterial da região - nomeadamente uma antologia de representações de Arronches, Castelo de Vide, Crato, Marvão, Nisa e Portalegre na literatura portuguesa e estrangeira.
Agradeço desde já a vossa visita a esta nova casa.
Levi Condinho

ANTÓNIO CABRITA & ALII
PASSANDO PELO NEONATURALISMO DOMINANTE

"[...] estamos perante uma das mais notáveis obras de poesia portuguesa da década de 90 do século findo [Arte Negra, de António Cabrita], pese embora o completo silêncio em seu torno por parte de certa crítica literária [...] oficial, académica e/ou de jornalismo opinativo, a mesma que tem, até agora, ignorado a importância de poetas do século XX tão altos como, por exemplo, João Pedro Grabato Dias, a mesma que pouca atenção tem dado à ficção quase poética de Rui Nunes ou que desconhece em absoluto esse romancista, decerto 'difícil' (como se foge, hoje, ao 'difícil'...), o perturbante Alberto Velho Nogueira, espécie de visionário transvanguardista de um apocalipse como que 'integrado'. Notoriamente, essa crítica tem privilegiado a tendência da poesia - não só portuguesa - que, desde finais do anos 80, vem cultivando o retorno a um classicismo retórico e descritivista, de pendor neonaturalista [...]."

(in Colóquio Letras, nº 161-162, Junho/Dezembro 2002)

A RODA DA FORTUNA


Brunetto, na Divina Comédia (canto XV do "Inferno"), "profetiza" a Dante o seu destino em Florença: "Velha fama lhes chama gente vesga; / de inveja, altiva e avara, se conserva: / mas não te importe a sua usança sesga. / Pois fortuna tal honra te reserva, / têm fome as duas partes e ciúme / de ti; mas fique longe o bico à erva."
A resposta do poeta é, no entanto, para todos nós, uma máxima contra a cobardia: "A meus ouvidos tal penhor não falha: / porém gire Fortuna a sua roda / como quiser, e o vilão sua malha."
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

As mulheres e os maridos


O presidente do Conselho de Administração da União de Leiria terá provocado um conjunto de sonoras gargalhadas nos jornalistas presentes na apresentação do novo treinador do seu clube ao referir-se à ausência de público nos jogos disputados pela sua equipa em Leiria com a seguinte frase: «Só falam de Leiria. Mas Leiria é como todas as outras cidades. Apenas os três grandes têm sócios fidelizados. Antigamente não havia centros comerciais, cinemas… Além disso as mulheres agora mandam nos maridos
Para além do aspecto anedótico desta conversa é preciso ver algo mais. O que o presidente da União de Leiria lamenta é que o tempo em que os homens iam para o futebol ao domingo à tarde e as mulheres ficavam a passar a ferro, a costurar ou a arrumar roupa nas gavetas tenha acabado. Como sou natural de uma aldeia da Estremadura que pertence ao distrito de Leiria conheço perfeitamente o assunto. As coisas e as relações entre as pessoas levaram uma grande volta nos últimos anos e hoje as mulheres pura e simplesmente deixaram de cozinhar aos domingos. Basta ir ao Vimeiro, ao Acipreste, ao Peso, à Mata de Porto Mouro ou à Portela para ver as enormes filas de espera que se formam às portas dos respectivos restaurantes. E não são só as mulheres mais novas mas também as mais velhas. Claro que as refeições acabam tarde e depois a sugestão é para um passeio à praia da Foz do Arelho ou a São Martinho do Porto. Bebem a bica e passeiam à beira mar. Por isso o futebol fica para trás. E vai ficando cada vez mais porque as mulheres já não aceitam uma situação de subalternas. Mas parece que o presidente da União de Leiria ainda não percebeu que tudo à sua volta mudou nos últimos anos.

AMADEU BAPTISTA


calhou que um amigo foi pai da sofia
e eu andava a fazer incursões nas cores
que dão ao mundo não a medida certa
mas a forte desmedida de haver mundo.

e descobri que há entre o azul-clematite
e o azul da baviera duas espécies de azuis
verdadeiramente alucinantes,
sendo que uma é o azul-coração

e a outra o azul-criança – ou foi isto
o que inferi pela leitura. assim, imaginei
que esse amigo devia estar feliz e, para celebrar,
resolvi criar mais uma cor entre estas duas
para o fazer, quem sabe?, ainda mais feliz.

e inventei o azul-sofia.


PS - Como não sei falar nem escrever, pedi ao meu pai para agradecer ao Amadeu por este belíssimo poema. Bem haja! - Sofia Ventura



NOVO LIVRO DE NICOLAU SAIÃO


editado no Brasil



A Escrituras Editora, sediada em São Paulo (Brasil), dentro da Colecção Ponte Velha (dirigida por Carlos Nejar e António Osório), apoiada pelo Ministério da Cultura de Portugal e pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB), acaba de editar “Olhares perdidos”, de Nicolau Saião, organizado e prefaciado por Floriano Martins.
Nicolau Saião integrou o 2º movimento surrealista português, cuja actuação se situa nos anos 60 e configura um momento dentro de um painel de filiações e assimilações do movimento francês nas décadas anteriores. Trata-se de momento em que, no dizer de António Luís Moita, já se encontrava “digerida e superada […] a bela utopia da escrita automática a que, duas décadas antes, outros poetas haviam metido mãos inovadoras”. Pertence à mesma geração de Luiza Neto Jorge, muito embora comece a publicar somente em meados da década seguinte, e fazia parte de um grupo de vozes de certa forma isoladas, em Portugal, no que diz respeito a uma aproximação declarada do Surrealismo.
Saião esboça sua particularidade a partir do interesse pelo mistério e pelo humor negro, duas fontes de intranquilidade ou de subversão da realidade. Uma poética inquietante, que mais se aproxima do Surrealismo quanto menos afectada se mostra por sua ortodoxia. Sua relação com uma prática colectiva em torno do movimento leva-o a assinar manifestos, montar exposições, criar um Bureau Surrealista Alentejano, na região portuguesa onde habita, porém,aos poucos se vai configurando uma aposta no individual, e é justamente a partir daí que sua poesia melhor se define.
Nicolau Saião nasceu em Monforte do Alentejo, Portugal, em 1946, mas vive desde os três anos em Portalegre. É poeta, actor e artista plástico, tendo participado em mostras em diversos países (Espanha, França, Itália, Polônia, Canadá, Estados Unidos, Austrália e Brasil), além de ter exposto individualmente em diversas localidades (Paris, Lisboa, Porto, Elvas, Tiblissi, Portalegre, Messina, Borba, Campo Maior, Sevilha). Colabora com diversos jornais nacionais e regionais e em revistas literárias e artísticas: “Ler”, “Colóquio Letras”, “Apeadeiro”, “A Cidade”, “Bicicleta”, “Bíblia”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “Callipole”, “A Xanela” (Betanzos), “Abril em Maio”, “DiVersos – revista de poesia e tradução” (Bruxelas), “Albatroz” (Paris), “Mele” (Honolulu), “AveAzul”, “Espacio/Espaço Escrito” (Badajoz) e, agora, “Agulha” (Fortaleza, Brasil). Está representado em diversas antologias de poesia e pintura. Obra poética: “Os objectos inquietantes” (Editorial Caminho, Lisboa, 1992, que recebeu Prémio Revelação/Poesia, concedido pela Associação Portuguesa de Escritores), “Flauta de Pan” (Editora Colibri, Lisboa, 1998), “Assembleia geral” (Ed. Bureau surrealista alentejano, Portalegre, 1998) e “Os olhares perdidos” (Universitária Editora, Lisboa, 2000).

Desde a semana passada que este blogue conta com um índice remissivo. Basta descer a página até ao final... Boas visitas e boas leituras!

Carreiras (Portalegre), sítio do Castelo.

para a Sofia


nada sei dos pássaros ou dos dias
de calor nem mesmo conheço
a transparência da rama dos pinheiros
movendo-se como quem procura num astro
ou em qualquer outro telhado
a altura dos corpos pela manhã

a sua órbita foi
ocupando cada face como um lençol
ou como uma cidade que cresce

nada sei de suas formas
nem tão pouco de sua estranha fotossíntese
desenho que nem a morfologia
das vidraças
tem conseguido traduzir
como estrada

ou linguagem



Nota: Este poema, publicado no meu primeiro livro, Arquitectura do Silêncio (Difel, 2000), e dedicado à neta de Nicolau Saião, Mariana, por ocasião do seu nascimento, é agora transportado em dedicatória para a minha filha, Sofia, nascida no passado dia 19 de Janeiro, pelas 10h20, em Lisboa.