No próximo mês encontrar-me-eis neste e noutros locais. Mas não aqui. Desejo-vos boas férias!



epifania


veios de luz atravessam a nascente.
asas e ventos dividem esse corpo –
o calor da pedra iluminando o coração.

a majestade dispensa esta viagem.
a nave (se existiu) desaparece
para ficar apenas fortaleza
que o fogo foi dobrando
e seccionando.

o carro avança
sobre o espelho de cinza
quando a tarde escurece?

a fonte divide a fortaleza,
dissolve essa sombra no oceano.

a voz da esfera
ouve-se na terra.
este corpo desaparece
no incêndio
das ondas.




O assunto, embora localizado geograficamente, merece uma reflexão universalizante. Não perdereis o vosso tempo. O quotidiano de uma pequena cidade no seu melhor.


(Na imagem: "Retábulo Portalegrense", de João Garção)



NO CAMINHO SOB AS ESTRELAS

"Durante muitos anos esquecido, o Caminho de Santiago é hoje uma realidade que começa a despontar em terras do Baixo Alentejo. A ideia de que este itinerário de peregrinação para Compostela se iniciava apenas no Norte de Portugal é um mito. A Diocese de Beja, o Município de Santiago do Cacém e o Governo Regional da Galiza unem esforços para dar a conhecer o notável património espiritual, artístico e antropológico associado ao Caminho numa exposição que tem como palco um dos mais belos monumentos do Gótico alentejano, a igreja matriz de Santiago do Cacém, alvo de importantes obras de requalificação."

A exposição, assim apresentada pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, foi inaugurada no passado dia 11 de Junho pelo presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. Tendo em conta a qualidade a que já nos habituou o organismo dirigido por José António Falcão, é certamente uma iniciativa imperdível. Até 31 de Outubro.

Defendo que a poesia de C. Ronald é uma das mais fortes da literatura de língua portuguesa do nosso tempo. Este facto não colide com a minha admiração pela sua obra plástica, pintada e esculpida.

(Na imagem: "Ansiedade", escultura de C. Ronald.)


NOVA AGULHA

Já está disponível o número 58 da Agulha, revista cultural brasileira disponível on-line. São vários os motivos de interesse: um texto de Nicolau Saião sobre Agostinho da Silva (já aqui referenciado), um artigo sobre Umberto Saba e muitos outros numa edição cujo tema é a Poesia. Aí poderão encontrar também um artigo meu sobre a poesia de Gérard Calandre (autor cuja obra aprecio bastante), ilustrado por belos quadros de Siegbert Franklin (como aquele que encima este post). Boas leituras!
DOIS LIVROS
DE GONÇALO M. TAVARES


Se um livro de contos de Gonçalo M. Tavares, recentemente premiado, não me impressionou totalmente, concluída a leitura de Um homem: Klaus Klump, sou obrigado a reconhecer a eminência da sua ficção. Cruzam-se na narrativa várias linhas de sentido: desde a mais evidente (o corte na linha temporal da vida de uma cidade, entrelaçado com a focalização de um percurso humano individual - ambos fixados com o cimento da violência) às subterrâneas (a simbólica da sonoridade, o movimento pendular entre a verdade e a mentira, entre a face e a máscara, entre o indivíduo e a colectividade, entre a vida e a sobrevivência). A erupção aforística constitui outro dos pilares do edifício narrativo - e talvez um dos mais atractivos (para este leitor que aqui escreve).




Jerusalém - ou o nome desmaterializado, sem toponímia, tornado lugar verbal de memória, eixo da memória. A dado passo, o retorno selectivo (de Nietzche?), quando a prisão-hospital se torna espelho do hospício, completando o triângulo espacial do romance, com um dos seus vértices no exterior-cidade. A loucura, a violência, o horror - constituem outro triângulo, num livro feito de geometrias sobrepostas, cujo rompimento (pela introdução da irregularidade) faz irromper os factos que promovem o avanço da narrativa. "Unheimlich" - até na antroponímia escolhida.
Mais tarde ou mais cedo, todos escreveremos, afinal (com Mylia), a palavra "fome" na parede de uma igreja fechada ou em qualquer outra casa por abrir...

FLORIANO MARTINS

Regressado a estas lides, apetece-me partilhar convosco esta belíssima colagem e este belíssimo poema de Floriano Martins:




Em versos que sabem repetir-se, desperta lentamente
a tua noite acumulada em meu peito: folhagem abrigada
à beira do abismo, e então me sentes, de bruços,
flagrante de peixes escavando nuvens na acústica do mar
que embala teus sonhos: elegias que a todo instante
acariciam o cenário de mamilos fulminantes, feixe de ritos,
luzes em pranto encontradas sob a pele, suores louvados.
Dorso apegado ao entusiasmo, com suas encostas
folheando estrofes e línguas de fogo no excesso de risos.
Ali onde eu espero que a tua eternidade me acalme,
um bailado de ancas faz da noite um gato na janela
a revelar em seu olhar o último andar onde renasces:
não te escondes atrás de um segredo, roubas o limiar
de rumores, as dissonâncias do amor e saltas em meu colo.