José do Carmo Francisco

Hugo Santos –
Do poema como oração e como voz da Terra

Rezar é sempre a tentativa (nem todas as vezes realizada) de unir dois mundos – o da terra e o do céu, o material e o espiritual, o dos homens e o de Deus. Ao colocar-se de joelhos o crente mais não faz do que recordar nesse gesto a sua origem e o seu fim anunciado. Sabe que veio do pó, é pó e em pó se há-de tornar mas rezando ele (o crente) procura elevar as suas palavras do rés da terra para o reino superior que ele nunca viu mas pressente, que ele nunca tacteou mas reconhece, que ele nunca visitou mas sabe nomear.
Religando o que o tempo separou ele (o crente) procura ascender a uma relação superior. Algo mais do que o emprego, o café, o supermercado, o stand de automóveis, a loja de pronto-a-vestir, o centro comercial.
Rezar é tentar criar outra realidade dentro da quotidiana realidade prática, mercantil, de desperdício. Para quem tem os pés bem assentes na terra (sua condição e seu limite) rezar é uma viagem entre dois mundos, a veloz ligação entre dois tempos, a procura de uma ponte a unir dois espaços.
O poema (tal como a oração) procura ligar, unir, juntar o que a erosão do tempo separou no coração dos homens. O poeta, obscuro sacerdote duma liturgia de silêncio, procura resgatar no poema (que a folha de papel testemunha) uma outra ponte feita de palavras entre a fronteira e o limiar do país sentimental que o ignora.
A infância, a voz da mãe, as colheitas perdidas, a azeitona nos lagares, a lavoura vagarosa dos dias da inocência que nenhum banco financia e sobre a qual nenhuma companhia ou corrector se atreve a emitir uma apólice de seguro, são todos eles, bocados de terra. A mesma terra onde o crente ajoelha para rezar. E mesmo o estádio na cidade, lugar de romaria e de culto, altar urbano de um ritual de ofertório e consagração, cântico e comunhão nas vitórias e nas derrotas, o estádio é também um bocado de terra.
Na grande solidão do Mundo, perdido entre o precário do amor e o inevitável da morte, resta ao crente o lugar da oração. Por isso reza. Perdido entre o peso da morte e a ostensiva falta de atenção, valor e importância que o Mundo dá à vida verdadeira (deixando-se resvalar para uma vida virtual, em diferido e por interposta realidade) resta ao poeta o lugar do poema. Por isso escreve. Afinal escrever é uma forma de rezar na desolada paisagem do seu quotidiano cada vez mais cinzento, vazio e hostil.
Por uma estranha sucessão de coincidências soube há muitos anos que a casa que (sei hoje) habita este livro tem um poço dentro dela. Fui um dia a Campo Maior à Festa das Flores e mostraram-me a casa do poeta. Aquele poço dentro da casa remeteu-me para a minha própria infância. Ao lado da casa do meu avô, casa onde nasci no já distante ano de 1951, havia uma taberna e um poço onde o seu dono mergulhava um cesto de vime cheio de gasosas, laranjadas e cervejas. Essa frescura vinda dessa água nunca mais se repetiria porque foi substituída pelo gelo dos frigoríficos e é outra coisa.
A luz das pequenas coisas é também a memória de uma casa e, por isso, começa com estas palavras: Primeiro falemos da casa, da rua, das vozes.
Mas a casa não é só paisagem: é também povoamento. A casa é povoada pelas pequenas coisas que são: Um livro, uma sépia traída pelo tempo, o vago sopro duma voz que se interpôs entre a mão e o afago que a reclamava.
Antes de Hugo Santos já Raul Brandão tinha proclamado que a ternura é húmida. Na página 10 deste livro se percebe como a água do poço da cozinha da casa, inunda de humidade e de ternura as palavras do poeta. Vejamos:
Creio que amei aqui / o que não poderia ter amado em qualquer outro lugar do mundo. / E, no entanto, é-me grato pensar que uma perene eternidade / avalizou cada uma das minhas emoções. / Ou, melhor sempre houve uma asa a percorrer o sagrado território / situado (sitiado) entre as palavras e os silêncios.
Situado e sitiado entre a palavra e o silêncio, resta ao poeta romper esse impasse pelo poema que é uma ponte a ligar dois Mundos:
Uso-me e gasto-me no coração mais profundo das palavras. / ou, talvez não bem um coração profundo mas uma indefesa concha / que, pelo refluir das marés, recobra o secreto desvelo das águas / e o devolve à fala ou à escrita que o requer.
Na poesia como na outra agricultura há muitas colheitas perdidas. Por isso mesmo o poeta obriga-se a ser também o repórter das chuvas de Setembro:
Olhai; aí está a luz, o vento, a água, o suave perfume / das flores do loendreiro e, perene, o quotidiano aviso da eternidade. / Depois, lento como um afago, o harpejo suave duma gota de orvalho / que em breve retomará o ofício proclamador das primeiras chuvas.
Se a casa é o lugar da água e da vida, o Terreiro é o lugar do encontro com os outros, os que tiveram caminhos e memórias comuns na infância já distante:
Tu lembras-te? perguntam. Talvez minta e lhes diga que sim, que me lembro / de tudo quanto está ali e parece comover-me / como se o tempo não fosse mais que o canhestro prestidigitador / que as ilusões e as nostalgias necessitam para se acercarem / das emoções que as antecederam.
O poeta mente porque é um fingidor mas na verdade não tem ilusões:
Tive uma bicicleta e um sonho, mas nunca a glória / de ter almejado a distância entre a flor e o livro / o voo da ave e o salvo-conduto das águas e do vento. / Não estive só; muitos outros me acompanharam. / Ouviu-se sempre o eco dos passos de quantos, a meu lado / subiram a rua e procuraram a teia e o casulo da casa.
A única certeza feliz é a ligação do poeta à sua terra natal:
A minha terra tem, inegavelmente, a forma do meu coração. / Notai como nela se escuta ainda o balbucio de antigas águas. / Atentai no silêncio. Reparai como nele se cruzam / todas as palavras, mesmo as mais distantes e impronunciáveis. / A eternidade começa aqui.
A lucidez do poeta avisa e proclama que muita coisa poderia ter sido feita
Eu poderia ter amado mais que o lento acordar das vozes submersas. / Poderia ter escrito todos os nomes no poço mais fundo da alma e beber todos os dias a água fresca desses nomes. / Poderia tê-los escrito à lareira e permitir que eles fossem a labareda ágil e eterna que habita o coração dos homens.
Poderia ter feito isso o muito mais mas o poeta escolheu o seu ofício
Contento-me com as palavras deslizando de manso sobre o papel. / Há entre mim e elas, creio que o disse já, um pacto de sangue onde cabe sempre um voo inesperado / dum pássaro insurrecto, planador de confins. / Talvez nem eu nem elas atentemos nas distâncias / que juntos percorremos nem esse seja o mester / para que as palavras foram escritas.
É nesse ofício que ele procura vencer o pó do esquecimento, o mesmo é dizer da morte
Inomináveis filhos do nada para o nada caminhamos. / Fica-nos às vezes a luz e a melodia dum poema. / Dizemo-lo então de nós a nós e é então que a casa, as árvores / e as palavras resplandecem. Quem pode pedir-nos mais?
Só o poema e a palavra do poema ficam quando tudo se perde no silêncio
Como um nómada indeciso, caminha o poema sobre o papel. / água vegetal, angular pedra da casa, trave-mestra da emoção, aqui me tens. / Carne e espírito do tempo, devolvo-te intacto ao secreto lugar onde os rios incendeiam as suas águas na volúpia da nascente.
Todos os poetas aspiram a ser a voz da terra mesmo que essa voz, para ser solene e altiva, surja na humidade e na ternura das pequenas coisas:
Ah, como dizer de outra forma da harmonia das pequenas coisas?
Notai como mesmo as que se ausentaram, persistem.
É escutá-las agora, por dentro das caixas-de-música dos silêncios
Numa mansidão que parece feita para a solícita comoção
dos que chegam e dos que partem.
Inesgotáveis veias da casa, multiplicam-se para lá dela.
Só depois, ao fechar da noite, se tornam violinos de vento.

(Lido na cerimónia de entrega do Prémio Cidade de Almada / Poesia a Hugo Santos)

2 comentários:

Luis Eme disse...

Depois de ler este texto fica a vontade de conhecer melhor as palavras do poeta...

Anónimo disse...

Ou não...