MULTITUBETEXTURA
O espectáculo apresentado no dia 22 de Julho por Márcio-André e por uma bailarina turca na Fábrica do Braço de Prata, em Lisboa, foi sublime e perturbante. A luz escassa apontou, por momentos, vislumbres de Caravaggio ou de Zurbarán no corpo daquela mulher. A oscilação do pêndulo entre a experimentação de sons e os trechos neo-impressionistas, misturados com vozes ancestrais saídas da garganta do autor de Intradoxos, despertou em mim emoções inesperadas.
Ver vídeo aqui: http://www.youtube.com/watch?v=s82u7F_hlwo
Autobiografia
Matilde Rosa Araújo
(JL 928, de 26 de Abril de 2006)
Falar da minha vida, no seu percurso até esta idade octogenária, é difícil. Mais difícil ainda para uma memória sempre abalada, ida, de quem desde criança viveu "fora do contexto". Este "fora do contexto" não por excepcionalidade (afirmo-o sem falsa modéstia), mas porque sempre me encontrei longe e perto. Este longe e perto não nega o tesouro real, para além da família, que constituíram os amigos. Amigos de presença tão viva, embora tantos já ausentados pela lei de um "fim" que muito dói e não sei entender.
Nasci numa quinta em Benfica, no meio de árvores, flores, fontes, animais natureza viva que me seduzia. Perto de Jardim Zoológico. De noite, ouvia o ressonar ou o gemer dorido dos leões, dos tigres, do elefante e de outros animais que não identifico: eram "vozes" de animais presos. Vozes de grades. E gritos de aves estranhas. Ficava acordada para os ouvir, não sei porquê. E doíam-me. Não seria já o "gosto amargo" de sofrer (que não tenho) mas a inconsciente busca de um mundo próximo e livre que não entendia.
Não frequentei nenhuma escola. Quantas vezes subi para o telhado de casas onde vivia, para olhar os meninos que iam para a escola? Talvez, por isso, a infância encontrou-me quando comecei a ensinar. Encontrou-me e continuou comigo no deslumbrado acontecer das aulas, deslumbrado e receoso de não saber comunicar. E fui aprendendo, tentando aprender o segredo da infância, da juventude, descoberta viva todos os dias. O curso de Letras encaminhara-me para esta profissão. Tive sorte. E o que aconteceu? Foi tanto o acontecido.
Em Lisboa, e por outras terras, fui enraizando o poder de um sonho Os Direitos da Criança.
E, comungando na profissão e à margem dela, encontrei amigos que não posso nem sei esquecer.
Amigos simples e grandes cuja ternura ainda me embala. Desde a Faculdade de Letras da velha Academia das Ciências, professores, colegas que me deram a fortuna do seu ser, do seu contar.
Depois, na vertente das Letras, lembro a felicidade que constituiu para mim fazer parte da Sociedade Portuguesa de Escritores. Felicidade que findou (findou?) numa amarga, injusta destruição da sua sede. Falar de lágrimas nesta altura é pouco: a própria revolta seca-as de imediato.
Vivi décadas do século passado, como se calcula. E, nesse século, pude olhar dois momentos da História que me deslumbraram.
Uma alegria que Beethoven na sua ode nos entregara para sempre, maravilha de sons que aconteceu. Pungente. Viva. Um desses momentos foi o fim da Segunda Guerra Mundial. A paz no Mundo na qual acreditei para sempre. Soava a Alegria como água pura da nascente. Branca luminosa.
Outro momento foi o 25 de Abril. Depois de um tempo de silêncio, de silêncios, com vozes heróicas ou caladas, nós íamos acreditar num país de fraternidade, sem arma de agressão. País sonhado há tanto. De justiça e paz. E hoje? "Pelo sonho é que vamos", como disse Sebastião da Gama". Continuamos.
De mim, que mais posso falar? Escrevi. Escrevo ainda. Sei que é bom viver, apesar das dores, das inibições físicas. Mas como é bom amar, ter amado. Em ter a infância no coração. Com a infância no coração e tanta memória com ela encontrada. Às vezes, acontecimentos aparentemente tão simples mas que apontam da infância um historial amargo. Simples como uma boneca de trapos, trapos sujos pelo tempo magoado. Olhos de retrós que olham para mim num doce olhar.
Eu lembro a "história" desta boneca, que não é só minha, como se contasse o segredo escondido de toda a criança mal amada. Fui, um dia, a uma escola. Qual? Já nem me lembro do seu nome, da terra a que pertencia. Mas não esqueci nunca, nunca poderei esquecer, a prenda rara que foi para mim esta boneca. Parece-me, desde que a recebi, que ela tem voz, que me dá um imenso recado. Enfim, como já disse, visitar uma escola. Qual? Onde? Como sempre, rodearam-me os alunos com a sua ternura, as suas interrogações, a graça tão única de quem é jovem em querer descobrir o mundo. Entre esses jovens surpreendeu-me o olhar de uma menina, olhar triste e destroçado de infância perdida. E a menina olhava, eu percebia sem o saber nada do seu mundo para além da mágoa do seu olhar.
No meio daqueles alunos que perguntavam, ficaram muito sérios ou riam, me davam a força da ternura, não me apercebi da ausência daquela menina triste. Estava no momento de me despedir, agradecer a todos, professores e alunos, tanto amor que me fora dado, quando a menina triste que se ausentara chegou junto de mim. Com uma boneca de trapos, envelhecida pelo uso, nos seus braços magrinhos.
Tome. É para si. Eu fui buscá-la.
Não nomeou onde fora. Mas onde chegou até mim.
Não podia aceitar.
A boneca é tua. É a tua boneca! Aceite. Eu quero que fique consigo.
Mas não. Os olhos da menina, determinados, imploravam. Olhos maravilhosos e húmidos de uma fome que não é de pão. Compreendi. Os professores da escola ajudaram-me a compreender aquela dádiva única daquela menina mal amada. Toda a criança também é uma dádiva única. Aquela boneca não lhe pertencia. Não tinha o direito de brincar numa casa sem amor. Menina que não era amada podia guardar a sua boneca de trapos? Boneca tão suja e tão linda! E não me lembro do nome da menina "sua mãe". Por contraste a boneca seria a "cigarreira breve" de Fernando Pessoa. Outra forma de guerra. Não me lembro do nome da menina mas sei o seu recado. Esta boneca "aconteceu" numa visita a uma escola.
Tenho ainda a felicidade de visitar escolas, bibliotecas generosos convites dos seus responsáveis.
Convites que me trazem o grande prazer da convivência, do afecto dos professores, bibliotecários, auxiliares de ensino, da juventude. Sem esquecer a infância que por vezes me cabe como uma graça plena. E, com estas visitas, lembro o passado do livro infanto-juvenil, o respeito renascido por esta literatura até então quase ignorada, adormecida em silenciosos armários escolares. E lembro, com grato respeito, a importância que tiveram para tal literatura as carrinhas, bibliotecas ambulantes, da Fundação Calouste Gulbenkian. Carrinhas que corriam o país e levavam a boa nova do livro que todos podiam ler. As crianças, os jovens. E os adultos rompendo a morna ileteracia também. Hoje, nessa esteira, temos bibliotecas que são o lar vivo de uma literatura tanto tempo ignorada apesar de lhe caberem cultores, raros embora, de grande mérito literário e pedagógico.
Nas décadas que vivi, pude assistir a esta dignificação das letras tão naturalmente ignoradas.
E como a história, a "estória", está tão presente no coração dos homens! O reconto oral é um património riquíssimo de entendimento da vida, das suas realidades, da sua poesia. Esta oralidade está viva, acontece nas próprias bibliotecas sem livros adormecidos. Sei, como não saber?, que os meios audiovisuais são fortes competidores da imprensa escrita. Mas sei, também, que tal imprensa não pode morrer: os livros, os jornais (da escola e não só) têm uma força real, o segredo claro de um diálogo silencioso e livre com o leitor. Diálogo que espera, permanece.
Cheguei até aqui com a voz da memória a dizer-me tanto. Há anos (do tal século passado.) pude editar três volumes que contêm a recolha de textos (poesia e prosa) de escritores portugueses. Nesses textos de autores de diferentes épocas, textos "para adultos", pude encontrar em beleza em verdade a presença da infância. Da própria infância e da infância com eles convivente.
A um desses volumes dei o título de Estrada Fascinante. No seu prefácio acabo por dizer: "Alguma paixão reconheço nestas folhas, reconheço-a mas não a enjeito. Para mim, abriu-se uma "estrada fascinante" e só lamento os pés menos firmes de quem foi, apesar de tudo, deslumbrada caminheira". Estrada nunca demais percorrida.
FALECEU MATILDE ROSA ARAÚJO
A escritora Matilde Rosa Araújo morreu hoje de madrugada, em casa, em Lisboa, aos 89 anos, disse à agência Lusa fonte da família.
Nascida em Lisboa em 1921, Matilde Rosa Araújo licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, e foi professora do ensino técnico profissional em várias cidades do país. Foi também professora do primeiro curso de Literatura para a Infância, na Escola do Magistério Primário de Lisboa. Foi autora de livros de contos e poesia para adultos e de mais de duas dezenas de livros de contos e poesia para crianças - como O Sol e o Menino dos Pés Frios, História de uma Flor e O Reino das Sete Pontas. Dedicou-se intensamente à defesa dos direitos das crianças através da publicação de livros e de intervenções em organismos com actividade nesta área, como a UNICEF em Portugal.
De acordo com fonte da Editorial Caminho, o corpo de Matilde Rosa Araújo será velado hoje na sede da Sociedade Portuguesa de Autores, em Lisboa.
(A seu tempo darei o meu testemunho sobre a escritora com que tive o privilégio de privar. Paz à sua alma!)
POEMAS
DE MÁRCIO-ANDRÉ
OS PLANETAS
3 batimentos
2 céus do lado esquerdo – malcolados
um campo de parabólicas
para azeite de antenas
e o mar com sedimento de planetas
[o mar fez-se a si mesmo de seu celofane verde
tirou das tripas o ocidente
traçou na pele um autómato de estrelas
– iluminuras no dorso de um dromedário]
no princípio foi o giro
e sua sinfonia de esferas
[só é verdade a parte que se desconhece]
a partitura do architeto
sua planta fotogramétrica
A SOMBRA
teu olho é vidro de morder
e o dorso improvável soprado no gás
queimado a sais de prata
nascido do primeiro sonho
não termina e não começa codificado nos objectos
ainda não existia encaixe entre as coisas
nem as formas nem as cores
siemens
designers for life
tirando tua sombra sobra o mundo inteiro
AS LIBAÇÕES
e depois de orar e polvilhar farinha
degolam e destroncam bois
esfolam touros
coxas cortam pernis apartam
envolvendo em gordura de dupla camada
e talhos crus lançados sobre
velhos queimam a carne na brasa
derramam por cima o vinho agridoce
com garfos moços manejando bifes
pernis tostados
saborear filetes degustar entranhas
o resto retalham em tiras e assam no espeto
peritos
ao fim do trabalho o banchete:
cada um a seu gosto: ancas e nacos
homens se nutrem em farta festa
vertem plenas crateras de vinho
delibam lambendo boca
graxa de tripa nos dedos
e assim pelo dia com cantos e danças
dânaos aplacam Apolo – péã para o guardião
que alegra-se no coração ao ouvi-los
Poemas retirados de Intradoxos, livro publicado por Márcio-André (Rio de Janeiro, Brasil, 1978) em 2007. A sua poesia foi considerada por Boaventura de Sousa Santos (para além de sociólogo, um poeta que Portugal deveria ler com outros olhos mais esclarecidos) como “uma das mais notáveis da sua geração”: “[…] é uma luta permanente com a língua. O seu experimentalismo não é abstracto (ou seja, concretista), é antes a sua maneira de interpelar uma tradição asfixiante e ao mesmo tempo vazia.”
DE MÁRCIO-ANDRÉ
OS PLANETAS
3 batimentos
2 céus do lado esquerdo – malcolados
um campo de parabólicas
para azeite de antenas
e o mar com sedimento de planetas
[o mar fez-se a si mesmo de seu celofane verde
tirou das tripas o ocidente
traçou na pele um autómato de estrelas
– iluminuras no dorso de um dromedário]
no princípio foi o giro
e sua sinfonia de esferas
[só é verdade a parte que se desconhece]
a partitura do architeto
sua planta fotogramétrica
A SOMBRA
teu olho é vidro de morder
e o dorso improvável soprado no gás
queimado a sais de prata
nascido do primeiro sonho
não termina e não começa codificado nos objectos
ainda não existia encaixe entre as coisas
nem as formas nem as cores
siemens
designers for life
tirando tua sombra sobra o mundo inteiro
AS LIBAÇÕES
e depois de orar e polvilhar farinha
degolam e destroncam bois
esfolam touros
coxas cortam pernis apartam
envolvendo em gordura de dupla camada
e talhos crus lançados sobre
velhos queimam a carne na brasa
derramam por cima o vinho agridoce
com garfos moços manejando bifes
pernis tostados
saborear filetes degustar entranhas
o resto retalham em tiras e assam no espeto
peritos
ao fim do trabalho o banchete:
cada um a seu gosto: ancas e nacos
homens se nutrem em farta festa
vertem plenas crateras de vinho
delibam lambendo boca
graxa de tripa nos dedos
e assim pelo dia com cantos e danças
dânaos aplacam Apolo – péã para o guardião
que alegra-se no coração ao ouvi-los
Poemas retirados de Intradoxos, livro publicado por Márcio-André (Rio de Janeiro, Brasil, 1978) em 2007. A sua poesia foi considerada por Boaventura de Sousa Santos (para além de sociólogo, um poeta que Portugal deveria ler com outros olhos mais esclarecidos) como “uma das mais notáveis da sua geração”: “[…] é uma luta permanente com a língua. O seu experimentalismo não é abstracto (ou seja, concretista), é antes a sua maneira de interpelar uma tradição asfixiante e ao mesmo tempo vazia.”
AMADEU BAPTISTA
DOZE CANTOS DO MUNDO
(alguns excertos)
WILLIAM BLAKE: NIGHT THOUGHTS (1797)
Não há síntese,
mas só mundos paralelos
onde a graça e a desgraça
se encontram
para delimitar o inferno
e o acrescentarem
com a essência e o erro,
a tontura e o desequilíbrio.
[…]
GOYA: A FAMÍLIA DE D. CARLOS IV (1801)
[…]
Preciso de água forte para dessedentar
o rumo a que o desespero obriga,
pincéis de cerdas duras,
espátulas cortantes,
paletas invisíveis
onde as cores, fortíssimas, latejem.
Preciso de fulgores
e circunstâncias
onde uma ardência nos olhos possa ser
um sinal de redenção,
[…]
GUSTAVE COURBET: A ORIGEM DO MUNDO (1866)
[…]
Eu crio:
estrume,
ou esterco,
crio,
para que o meu testemunho,
sob o efémero,
possa aguilhoar as almas
e consumar
a união entre o diverso e o transitório,
e não haja mais escândalo
que o escândalo
de ser a soberba a nossa ignorância
e a nossa ignorância a desventura.
[…]
FRANCIS BACON: STUDY FOR CROUCHING NUDE (1952)
[…]
No osso inciso,
na grande obra incompleta,
sou uma válvula de vácuo
e um transístor,
a desfragmentação
e o cromatismo
que resiste à vileza
e vê no crime
o imparável modo de estar vivo,
a aprofundar a refrega dos subúrbios,
como arte,
dissipação,
incandescência.
[…]
[…]
[…] os cães estão em todo o lado,
e devoram as casas,
e sobem aos telhados para devorar
os livros,
e, nas jaulas,
amontoam cadáveres,
instantes peregrinos
com cabeça de rádio
e desorbitados olhos
pelo terror do urânio,
as múltiplas engrenagens.
[…]
MARK ROTHKO: NUMBER 207 – RED OVER DARK BLUE ON DARK GRAY (1961)
[…]
Coube-nos viver num tempo de assassinos,
mas é a claridade que almejamos,
não a que veio ao quadro convocar-nos,
mas a que, pelo poder da pintura,
se instala em nós,
a modular a noite
e a apaziguar-nos.
É essa claridade que procuro,
– e o silêncio.
O silêncio das cores e o seu apelo
irrevogável,
de que nada há a temer,
mesmo que atemorize.
A vida é isso mesmo:
o medo à nossa frente,
imóvel como a esfinge,
e nós sempre a enfrentá-lo,
transparentes,
aflitos,
condenados,
mas prontos para ver
as cores do infinito.
Doze Cantos do Mundo está entre os melhores livros de Amadeu Baptista. Foi galardoado com o Prémio Oliva Guerra, na edição de 2008. A colectânea foi publicada em Setembro de 2009 pela Câmara Municipal de Sintra (organizadora do concurso), numa tiragem infelizmente restrita.
DOZE CANTOS DO MUNDO
(alguns excertos)
WILLIAM BLAKE: NIGHT THOUGHTS (1797)
Não há síntese,
mas só mundos paralelos
onde a graça e a desgraça
se encontram
para delimitar o inferno
e o acrescentarem
com a essência e o erro,
a tontura e o desequilíbrio.
[…]
GOYA: A FAMÍLIA DE D. CARLOS IV (1801)
[…]
Preciso de água forte para dessedentar
o rumo a que o desespero obriga,
pincéis de cerdas duras,
espátulas cortantes,
paletas invisíveis
onde as cores, fortíssimas, latejem.
Preciso de fulgores
e circunstâncias
onde uma ardência nos olhos possa ser
um sinal de redenção,
[…]
GUSTAVE COURBET: A ORIGEM DO MUNDO (1866)
[…]
Eu crio:
estrume,
ou esterco,
crio,
para que o meu testemunho,
sob o efémero,
possa aguilhoar as almas
e consumar
a união entre o diverso e o transitório,
e não haja mais escândalo
que o escândalo
de ser a soberba a nossa ignorância
e a nossa ignorância a desventura.
[…]
FRANCIS BACON: STUDY FOR CROUCHING NUDE (1952)
[…]
No osso inciso,
na grande obra incompleta,
sou uma válvula de vácuo
e um transístor,
a desfragmentação
e o cromatismo
que resiste à vileza
e vê no crime
o imparável modo de estar vivo,
a aprofundar a refrega dos subúrbios,
como arte,
dissipação,
incandescência.
[…]
[…]
[…] os cães estão em todo o lado,
e devoram as casas,
e sobem aos telhados para devorar
os livros,
e, nas jaulas,
amontoam cadáveres,
instantes peregrinos
com cabeça de rádio
e desorbitados olhos
pelo terror do urânio,
as múltiplas engrenagens.
[…]
MARK ROTHKO: NUMBER 207 – RED OVER DARK BLUE ON DARK GRAY (1961)
[…]
Coube-nos viver num tempo de assassinos,
mas é a claridade que almejamos,
não a que veio ao quadro convocar-nos,
mas a que, pelo poder da pintura,
se instala em nós,
a modular a noite
e a apaziguar-nos.
É essa claridade que procuro,
– e o silêncio.
O silêncio das cores e o seu apelo
irrevogável,
de que nada há a temer,
mesmo que atemorize.
A vida é isso mesmo:
o medo à nossa frente,
imóvel como a esfinge,
e nós sempre a enfrentá-lo,
transparentes,
aflitos,
condenados,
mas prontos para ver
as cores do infinito.
Doze Cantos do Mundo está entre os melhores livros de Amadeu Baptista. Foi galardoado com o Prémio Oliva Guerra, na edição de 2008. A colectânea foi publicada em Setembro de 2009 pela Câmara Municipal de Sintra (organizadora do concurso), numa tiragem infelizmente restrita.
EDMAR GUIMARÃES
Massa Corrida
Ele, encostado agora na parede, perde a janela, mira outras imagens da sala. As mãos espalmadas parecem buscar fendas. O corpo se cola ao concreto, sente a respiração úmida dos tijolos, gosto de tinta. Líquidos se vertem em cimento. Ele sua.
A boca engole o reboco pela nuca; um pouco mais de esforço e postura de homo-sapiens, os calcanhares; as nádegas encostam-se noutro corpo duro; as mãos totalmente enterradas na parede, e, aos poucos, também o abdómen; com um leve tremor de músculos, os úmeros e as omoplatas.
Linhas do rosto fundem-se à superfície, mínimas trincaduras, caminhos de formigas deformam a espessura da massa corrida. Ele tenta dizer… Há uma pastilha de pedra sobre a língua. Os olhos imprensados nas pálpebras só veem arestas do recinto.
Tudo o que via, respirava, o espaço buscado além dos terraços do mundo… uma mácula na parede, uma marca de mofo mais encorpada. – A sombra mais escura lembra restos do esôfago, os dois furos amarrotados, talvez as pálpebras –.
A presença toda de um homem se traduz numa marca de gordura na parede, alguém jogará cal em cima, repintará como se cobre uma nódoa renitente do tempo.
As Coisas
Exaustas de ser, todas as coisas. Não pela natureza intrínseca, sentido o sopro das estações, mas por olhá-las da carne, o homem lhes deu superfície, quis a brisa no laboratório; o aroma dos primeiros instantes do mundo, num punhado de pedras.
O que se passou entre pirâmides, juntas e operários repetem. Do carpete de ouro e ácaros do corpo do faraó, o fugo acende o incenso, espectros do que um dia sonharam acordar de novo na carne que nunca cicatriza, vestida à gala, digo, gaza.
O que se revela é ponta de osso, iceberg que, escavado, expõe o riso de nós mesmos.
Nas escavações de antigos passos, nas grutas do âmago, nuns palimpsestos de desejos, desenhos rupestres, ou no chão mesmo rude do tempo aberto em sítio, o fóssil, punhado de peças, isso só, e fácil.
Tudo está exausto de ser pedra e lâmina cega de laboratório, de ser escavado até sua porção mais severa e insuficiente.
O que se busca traz no bojo algo mais denso que osso.
Textos retirados do mais recente livro do escritor goiano/brasileiro Edmar Guimarães, Cápsulas dos Dias (Editora KELPS / Editora da UCG, 2009). O volume tem um prefácio da ensaísta Wania Majadas e um posfácio do poeta e ficcionista Miguel Jorge, reproduzindo na capa um óleo de José Amaury de Menezes. Micro-contos ou contopoesia? “Em cada nova cápsula deste livro existe um tempo de um dia que enseja códigos de disfarçada loucura e que corre em idas e vindas pelo universo que vai além do real ao imaginário, como se o autor quisesse captar os olhos de seus inúmeros personagens” (Miguel Jorge).
Massa Corrida
Ele, encostado agora na parede, perde a janela, mira outras imagens da sala. As mãos espalmadas parecem buscar fendas. O corpo se cola ao concreto, sente a respiração úmida dos tijolos, gosto de tinta. Líquidos se vertem em cimento. Ele sua.
A boca engole o reboco pela nuca; um pouco mais de esforço e postura de homo-sapiens, os calcanhares; as nádegas encostam-se noutro corpo duro; as mãos totalmente enterradas na parede, e, aos poucos, também o abdómen; com um leve tremor de músculos, os úmeros e as omoplatas.
Linhas do rosto fundem-se à superfície, mínimas trincaduras, caminhos de formigas deformam a espessura da massa corrida. Ele tenta dizer… Há uma pastilha de pedra sobre a língua. Os olhos imprensados nas pálpebras só veem arestas do recinto.
Tudo o que via, respirava, o espaço buscado além dos terraços do mundo… uma mácula na parede, uma marca de mofo mais encorpada. – A sombra mais escura lembra restos do esôfago, os dois furos amarrotados, talvez as pálpebras –.
A presença toda de um homem se traduz numa marca de gordura na parede, alguém jogará cal em cima, repintará como se cobre uma nódoa renitente do tempo.
As Coisas
Exaustas de ser, todas as coisas. Não pela natureza intrínseca, sentido o sopro das estações, mas por olhá-las da carne, o homem lhes deu superfície, quis a brisa no laboratório; o aroma dos primeiros instantes do mundo, num punhado de pedras.
O que se passou entre pirâmides, juntas e operários repetem. Do carpete de ouro e ácaros do corpo do faraó, o fugo acende o incenso, espectros do que um dia sonharam acordar de novo na carne que nunca cicatriza, vestida à gala, digo, gaza.
O que se revela é ponta de osso, iceberg que, escavado, expõe o riso de nós mesmos.
Nas escavações de antigos passos, nas grutas do âmago, nuns palimpsestos de desejos, desenhos rupestres, ou no chão mesmo rude do tempo aberto em sítio, o fóssil, punhado de peças, isso só, e fácil.
Tudo está exausto de ser pedra e lâmina cega de laboratório, de ser escavado até sua porção mais severa e insuficiente.
O que se busca traz no bojo algo mais denso que osso.
Textos retirados do mais recente livro do escritor goiano/brasileiro Edmar Guimarães, Cápsulas dos Dias (Editora KELPS / Editora da UCG, 2009). O volume tem um prefácio da ensaísta Wania Majadas e um posfácio do poeta e ficcionista Miguel Jorge, reproduzindo na capa um óleo de José Amaury de Menezes. Micro-contos ou contopoesia? “Em cada nova cápsula deste livro existe um tempo de um dia que enseja códigos de disfarçada loucura e que corre em idas e vindas pelo universo que vai além do real ao imaginário, como se o autor quisesse captar os olhos de seus inúmeros personagens” (Miguel Jorge).
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