NEGRUME
Uma doença, a poesia - assim afirma, sem afirmar, na primeira parte do seu novo Negrume (Edições & Etc., com desenhos de Ana Biscaia) o poeta Amadeu Baptista. Não posso evitar a concordância com a sugestão nascida da sua linguagem arcana e violenta - que, mais uma vez, me fertiliza.
Não parei enquanto não terminei a leitura de Negrume. Em três andamentos ("As Danações", "Negrume" e "As Recriminações"), o edifício da dor ergue-se numa paisagem de assombro, onde a poesia, sendo doença, consegue ainda salvar um corpo-espírito em martírio de ferida e testemunho.
Não andasse Portugal tão encegueirado com fogos de artifício literário de pouca dura e pólvora seca - e já teria valorizado, como merece, a poesia de Amadeu Baptista.
Do livro lido, ficam dois poemas.
uma doença indómita, silenciosa, avulsa,
que pomos em papéis incandescentes
entregues ao contágio de quem lê
como a morte nos confina à transcendência.
sob a alma, produz recalcamentos,
derrames cerebrais,
um rastro de culpa penitente
que não respeita os sinais, as passadeiras,
as vastas galerias onde o sol
não entra para que a sombra se prolongue
até à rude escarpa do farol
em que pensamos poder estar o rumo.
uma doença intratável, como um fumo
a sair-te dos olhos e a sujar as unhas.
(p. 14)
* * * *
11.
tenho a bala na câmara, o sonho recorrente.
deito-me na terra dura.
o teu silêncio conflui para o meu silêncio.
o céu está próximo, ao alcance da mão.
ao vinho junto pão e algum açúcar.
este é o meu corpo e o meu sangue.
com um dedo sigo o rastro da estrela,
o augúrio por que sobrevivo.
em volta tudo está em chamas.
prende-se o desassossego ao meu olhar.
neste ardor de abelhas, por um odor enxuto,
persigo, ainda, a vida, estando morto.
assim me traio. e assim te trais.
assim me perco e salvo.
na sucessão dos dias e das noites
há sempre um desencontro com o teu nome.
tudo é escrita. tudo é aflição.
há em mim esta caução sem preço
a que não escapo. a profecia
vindima-me as costelas.
ao vinho junto pão e algum açúcar.
penso o teu olhar para além das árvores
neste verde resplandecente sobre os brilhos.
a escuridão latente submete-me.
à dor não sei que nome dar.
acedo ao escrito para me queimar.
em volta tudo está em chamas.
tudo esqueceste e tudo hás-de lembrar.
foi exactamente aqui que me deixaste.
escuta bem. vê como a noite alastra.
a sombria claridade que toca a minha face
é a recorrente face da loucura.
este é o meu corpo e o meu sangue.
no vento irreversível
inscrevem-se os sinais que a morte prenuncia
depois da violência brutal da despedida.
(pp. 63-64)
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