De um lado terra, do outro lado terra



Desde que o Homem é Homem (ser pensante com capacidades de conceptualização abstracta) que a água foi erigida enquanto mediador simbólico entre os habitantes animados da Terra. E entre todos os meios aquáticos que rodeiam e cruzam essa “mão do mundo” que é a Península Ibérica (como referiu, se não estou em erro, Miguel de Unamuno), logo muito cedo o rio Guadiana – em conjunto com outras artérias que irrigam com o seu sangue a por vezes seca carne hispânica – se constituiu enquanto ponte maternal entre os povos das suas margens ou entre os habitantes do “mare clausum” mediterrânico, os das margens da imensidão atlântica e os do interior da plataforma continental. Só muito mais tarde o grande rio do Sul – “Anas”, “Odiana” ou “Guadiana”, conforme as épocas – foi obrigado a assumir o papel de fronteira entre países que as guerras e as políticas reais e/ou senhoriais dividiram. Não era esse o seu papel. Logo que pôde, inundou as suas margens, submergiu as linhas que só os mapas recordam, diluiu as divisões que separavam os dedos de uma mão que, afinal, com os seus diferentes estatutos e funções, têm como finalidade a reunião (porque só apertada a mão revela toda a sua força).
Tudo isto conheceram sempre os seres humanos que povoaram, ao longo de milénios, as duas margens do Guadiana. No fundo, bem no fundo, os habitantes de Monsaraz, Mourão, Juromenha, Olivença, São Bento da Contenda, Villanueva del Fresno, Cheles, Alconchel ou Villareal (herdeiros de muitos lugares da Lusitânia romana e visigótica e do reino rebelde de Badajoz) souberam sempre que viviam num território unido pela Cultura e pela Geografia. Os contrabandistas dos dois lados tinham consciência, com Miguel Torga, de que de um e de outro lado havia somente terra, de que numa margem e na outra margem existia apenas gente...
Olivença, por exemplo, mudou de mãos há perto de duzentos anos, com todo o seu território municipal. Na prática, apesar de pontes derrubadas e de línguas mescladas, a fronteira não se transportou, deixou somente de existir. Há mapas que o assinalam… Mudou a administração política de uma parte da província de Entre Tejo e Odiana, mas teriam mudado as pessoas e a sua genealogia familiar e cultural, os edifícios e a sua arquitectura, o relevo e a sua orografia? Estas questões fazem hoje, talvez, pouco sentido, quando estamos nos braços duma União Europeia que acabou com os postos aduaneiros e unificou a trocas comerciais. A língua portuguesa floresce do lado extremenho – e ainda bem. Como escreveu um dia o filósofo Agostinho da Silva, quanto mundo seremos quando um dia soubermos instituir uma Comunidade dos Povos de Língua Ibéricas…
O território de Olivença – antigo concelho português que não deixou de o ser, pelo menos na alma, apesar de administrado por representantes de Madrid – está do outro lado do Guadiana, do outro lado do lago artificial chamado “Barragem do Alqueva”. Atravessar as diversas pontes que reduzem a distância entre as duas margens será sempre encontrar uma identidade material depurada. Em nenhuma outra parcela do território peninsular fará talvez tanto sentido a palavra “saudade”. A viagem tem um poder analgésico. Encontramo-nos na fortaleza de Alconchel, nas muralhas e nas torres oliventinas do castelo templário do tempo do rei trovador D. Dinis, no manuelino da igreja de Santa Maria Madalena, no interior barroco da Misericórdia, feito de talha e azulejos com paralelos noutras partes lusas. Visitar o Museu Etnográfico é compreender que dois séculos fizeram muito pouco pela divisão de povos duplos um do outro. A separação – metaforizada durante muito tempo na derrubada “Ponte da Ajuda” – acentuou a saudade, mas não destruiu a identidade, que dispensa separações artificiais do território.
Mais do que visitar mentalmente a memória contida no topónimo “Contienda” – palimpsesto de lutas, de escaramuças, de mortes, de vidas destruídas e sempre reconstruídas – é preciso caminhar em peregrinação até Cheles, onde o fim de mais uma guerra ibérica (a guerra da restauração da independência, que se seguiu à revolta de 1 de Dezembro de 1640 contra o domínio filipino) levou à construção de uma ermida consagrada ao Cristo da Paz, como acto de acção de graças. A paz está agora consolidada – e todos a solidificaremos se nos adentrarmos por um território onde nos veremos sempre, como num espelho múltiplo. Não terá sido, talvez, por acaso que até o martírio cívico de um dos heróis da luta anti-salazarista (Humberto Delgado) foi ocorrer precisamente numa dessas terras onde a fronteira nos une, numa pequena parcela do campo que rodeia Villanueva del Fresno.
Nesta parte da bacia hidrográfica do Guadiana, empresada pelos portugueses para sua subsistência, a água veio cumprir a sua função primordial de elemento simbólico e material de ligação. Submersas as fronteiras, a barragem parece traduzir materialmente uma palavra árabe pouco lembrada, “aldjusûr”. Não apenas açude (“as-sudd”) ou ponte (“al-kantarâ”), mas uma síntese das duas, conserva na sua semântica uma metáfora híbrida: se, por um lado, alarga o poder fertilizador das águas, por outro serve de elemento de ligação entre terras e seres. Assim será sempre a viagem entre as duas partes da raia. Fertilizará que tiver abertura para empreendê-la, para além das estritas necessidades materiais do comércio. Ligará um território humano que no fundo, bem no fundo, nunca deveria ter sido divido.

(Publicado recentemente no nº 8 da revista Imagén de Extremadura, editada em Mérida.)

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