Literatura que vale ouro
Por Jorge Sanglard
Antologia editada em Portugal, organizada pela pesquisadora suíça Prisca Agustoni, reúne 10 poetas que se destacam no cenário contemporâneo da literatura de Minas
A antologia “Oiro de Minas – A nova poesia das Gerais”, organizada por Prisca Agustoni e editada em Portugal por Ozias Filho, é mais uma investida da Colecção Pasárgada no universo da poética contemporânea brasileira. Estado natal de João Guimarães Rosa, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Affonso Romano de Sant’Anna e Rubem Fonseca, Minas tem importância ímpar na renovação da poesia brasileira da segunda metade do século 20 e deste início de século 21. Prisca Agustoni mergulhou fundo na criação poética mineira dos últimos 30 anos para extrair um autêntico quem é quem desse caldeirão efervescente, lançando um feixe de luz sobre 10 poetas.
Com o lançamento de “Oiro de Minas...” em janeiro, a Colecção Pasárgada e a Ardósia Associação Cultural dão mais um passo na ampliação do selo, voltado para a edição de livros de poesia numerados e assinados. Anteriormente, foi editada a antologia “Terra além-mar”, dedicada a Iacyr Anderson Freitas. “Oiro...” reúne expoentes de geração importante de autores: Eustáquio Gorgone de Oliveira, Donizete Galvão, Júlio Polidoro, Ricardo Aleixo, Maria Esther Maciel, Fernando Fábio Fiorese Furtado, Edimilson de Almeida Pereira, Iacyr Anderson Freitas, Wilmar Silva e Fabrício Marques.
A suíça Prisca Agustoni, de 32 anos, é apaixonada pela língua portuguesa e vem se dedicando a pesquisar a poesia feita em Minas. Formada em letras hispânicas e filosofia pela Universidade de Genebra, ela é mestre em literatura hispânica e doutora em literaturas de língua portuguesa. Desde 2002 mora em Minas Gerais e trabalha como professora de literatura portuguesa e brasileira na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Também é tradutora e crítica literária.
“Um olhar crítico sobre a realidade brasileira demonstra que o Brasil midiático não é senão uma face entre outras, instigantes e desafiadoras, da sociedade nacional. Esse tema nos leva de volta à década de 1950 e nos permite observar que os dois Brasis, detectados naquela época pelo sociólogo francês Jacques Lambert, já eram – e continuam sendo – vários Brasis”, afirma Prisca. Para ela, o comentário de caráter sociológico é indispensável para justificar uma antologia de poesia brasileira contemporânea. Afinal, no jogo das relações literárias, a controvérsia em torno de antologias é assunto conhecido. Há sempre motivos, com razões maiores ou menores, para que os autores selecionados e os não-selecionados, bem como os críticos e os leitores, ratifiquem ou subestimem o trabalho do responsável pela organização. Uma antologia de poesia brasileira contemporânea não pode esperar outro enredo, adverte Prisca. O livro sintetiza um recorte desse cenário poético, mais especificamente de Minas Gerais, reconhecido celeiro literário do país.
Prisca Agustoni enfatiza que, apesar da divergência de opiniões de poetas e críticos, na poesia brasileira do século 20 é possível considerar três linhas de força, que se mantiveram até ao início da década de 1980: a primeira, derivada da Semana de Arte Moderna de 1922, caracterizada pelo esforço de atualização da poesia brasileira em relação a novos temas, formas e práticas em curso na Europa dos movimentos de vanguarda; a segunda, por um desejo de contenção dos apelos das vanguardas propostos pelos modernistas; e a terceira, pelo experimentalismo técnico-formal do concretismo.
LINHAS DE FORÇA
No contexto de Minas Gerais, poetas de diferentes gerações trafegaram por essas linhas de força, como Drummond, Murilo Mendes e Affonso Ávila, e contribuíram interferindo nelas para tecer sua própria linguagem poética. Assim, destaca Prisca, nomes como Emílio Moura, Abgar Renault, Dantas Mota, Henriqueta Lisboa, Laís Corrêa de Araújo, Adélia Prado e Adão Ventura se inscreveram com vigor na cena literária brasileira.
Ao selecionar o material, Prisca procurou autores que começaram a se destacar a partir da década de 1980, depois da proliferação de vozes relacionadas à estética da poesia marginal e, principalmente, depois do duro momento político vivenciado pelo Brasil, que teve sua cultura submetida ao jugo e à censura do regime militar entre 1964 e 1985. Assim, foram selecionados poetas que refletiram e também transformaram, na sutil tessitura da linguagem, a riqueza das diversas vertentes estéticas que os precederam. A organizadora procurou destacar a pluralidade de caminhos trilhados, considerando não apenas a atuação dos autores como poetas, mas ressaltando também o modo como eles estabeleceram a “consolidação de um consenso crítico” paralelamente a seus processos de criação.
Esse recorte é relevante, “já que a atuação do poeta e do intelectual no seio da sociedade se reveste não só de aspectos relacionados a posicionamentos políticos, mas igualmente à produção de um discurso teórico – muitas vezes estimulado pelas estruturas acadêmicas – ou jornalístico, bem como à organização de eventos, espetáculos e festivais nos quais é reservado à poesia e à performance poética um espaço privilegiado”, pondera Prisca.
Vale destacar a riqueza do microcosmo de palavras e símbolos que compõem a poética de cada escolhido. Apesar de toda essa vertente multifacetada, a organizadora enfatiza que é possível garimpar e encontrar nessa diferença alguns temas que perpassam, como uma coluna vertebral, a poesia mineira contemporânea. “A representação do espaço físico, muitas vezes, um lugar não nomeado, mas identificado como alguma região de Minas Gerais, ou mental, se universaliza graças à palavra poética. A cidade, como lugar de passagem, de encontro e desencontro do indivíduo, é outro tema recorrente. E os elementos da natureza, como pedra, água e pássaro, são mensageiros desse infinito que alumbra e esmaga, com a sua potência e beleza, o ser humano e sugerem o enigma de um mundo indizível através das palavras”, analisa ela.
FAZER POÉTICO
O ensaio de apresentação da obra é uma prova do compromisso da organizadora com a reflexão sobre a nova poética mineira. Prisca disseca minuciosamente o trabalho de cada autor. Os versos de Eustáquio Gorgone de Oliveira são vistos como uma adaptação contemporânea dos traços marcantes do barroco, assim como a manifestação de um sentir expressionista emoldurando sua obra, fazendo com que sua poesia não seja classificável dentro de nenhuma das vertentes tradicionais que caracterizaram a poesia brasileira do século 20. O mesmo pode ser vislumbrado na poesia de Júlio Polidoro, com destaque para o tom coloquial e irônico, disfarçando habilmente o fundo filosófico ou existencialista.
Trajetória instigante é apontada na fusão entre o formalismo pós-concretista e as vertentes estéticas e sociais de Ricardo Aleixo, numa poesia que apresenta sinais da vanguarda e desnuda as ambigüidades e as possibilidades de significação do seu discurso pessoal. Já a dicção contida de Donizete Galvão se mostra como um filtro que depura e transforma o desprezo e a decomposição do corpo e do mundo – com seus valores mais puros – em revelação poética. E a poesia de Maria Esther Maciel flagra a intensidade proporcionada pelo intercâmbio com outras linguagens artísticas, como o cinema e a pintura, na busca de captar o paradoxo da vida.
Fernando Fábio Fiorese Furtado estabelece um flerte com o mundo figurado, exprimindo a densidade da história individual e coletiva, que conflui para desenhar diferentes metáforas do corpo, como se essas fossem uma “segunda pele” que concentra as linhas de uma reflexão existencial e metapoética. Edimilson de Almeida Pereira reelabora aspectos da oralidade e da estética barroca, na qual os objetos, as palavras e os significados estão embutidos uns dentro dos outros, à maneira das bonecas russas que estão encaixadas, cada uma contendo em si a outra. Sua poesia reflete o sentido atribuído a um mundo engendrado por palavras e aberto para a existência de outros mundos possíveis.
Por sua vez, Iacyr Anderson Freitas explicita a busca, por vezes dolorosa, de coisas e sentimentos profundos e cotidianos, que constituem a raiz ontológica do ser humano que, freqüentemente, se encontra exilado num tempo e num espaço em estado de desmoronamento e que se agarra, desesperado, à palavra e à memória para salvar as sobras desse processo de desmantelamento interior. A obra de Wilmar Silva possibilita inquietante leitura das experiências do homem e revela um autor voltado não para a descrição dos objetos ou da natureza, mas com a apreensão do diálogo entre esses elementos e o corpo-linguagem do poeta. Fabrício Marques apreende o cotidiano com ironia, ou seja, a noção do dia-a-dia como o espaço e tempo dos acontecimentos previsíveis é sugerida e esvaziada pela palavra poética.
Oiro de Minas... é mais que um convite explícito para compartilhar uma aventura ao longo dessa viagem poética às Minas Gerais. É um testamento claro de amor à descoberta de novos caminhos literários que uma pesquisadora afiada e afinada com seu tempo revela a Portugal e ao Brasil. Capaz de trocar os montes gelados da Suíça para descobrir as travessias das montanhas de Minas, Prisca Agustoni corajosamente assume a responsabilidade de “dar nomes aos bois” numa época em que muito pouca gente deixa explícito o que sente e o que pensa.
A intenção da organizadora é lançar o livro também em Minas Gerais. Apenas 500 privilegiados poderão conferir o resultado de sua pesquisa poética pelas Minas Gerais dos nossos dias. Afinal, esta primeira e única edição, compromisso firmado pela Colecção Pasárgada, traz apenas cinco centenas de exemplares numerados. E Prisca Agustoni assina embaixo.
(Publicado no caderno Pensar do jornal O Estado de Minas e aqui.)
As velas da memória
Há nos silvos que as manhãs me trazem
chaminés que se desmoronam:
são a infância e a praia os sonhos de partida
Abrir esse portão junto ao vento que a vida
aquém ou além desta me abre?
Em que outro mundo ouvi o rouxinol
tão leve que o voo lhe aumentava as asas?
Onde adiava ele a morte contra os dias
essa primeira morte?
Vinham núpcias sem conto na inconcebível voz
Que plenitude aquela: cantar
como quem não tivesse nenhum pensamento.
Quem me deixou de novo aqui sentado à sombra
deste mês de junho? Como te chamas tu
que me enfunas as velas da memória ventilando: «aquela vez...»?
Quando aonde foi em que país?
Que vento faz quebrar nas costas destes dias
as ondas de uma antiga música que ouvida
obriga a recuar a noite prometida
em círculos quebrados para além das dunas
fazendo regressar rebanhos de alegrias
abrindo em plena tarde um espaço ao amor?
Que morte vem matar a lábil curva da dor?
Que dor me faz doer de não ter mais que morrer?
E ouve-se o silêncio descer pelas vertentes da tarde
chegar à boca da noite e responder
Ruy Belo
Aquele Grande Rio Eufrates
(no dia do 75º aniversário)
Há nos silvos que as manhãs me trazem
chaminés que se desmoronam:
são a infância e a praia os sonhos de partida
Abrir esse portão junto ao vento que a vida
aquém ou além desta me abre?
Em que outro mundo ouvi o rouxinol
tão leve que o voo lhe aumentava as asas?
Onde adiava ele a morte contra os dias
essa primeira morte?
Vinham núpcias sem conto na inconcebível voz
Que plenitude aquela: cantar
como quem não tivesse nenhum pensamento.
Quem me deixou de novo aqui sentado à sombra
deste mês de junho? Como te chamas tu
que me enfunas as velas da memória ventilando: «aquela vez...»?
Quando aonde foi em que país?
Que vento faz quebrar nas costas destes dias
as ondas de uma antiga música que ouvida
obriga a recuar a noite prometida
em círculos quebrados para além das dunas
fazendo regressar rebanhos de alegrias
abrindo em plena tarde um espaço ao amor?
Que morte vem matar a lábil curva da dor?
Que dor me faz doer de não ter mais que morrer?
E ouve-se o silêncio descer pelas vertentes da tarde
chegar à boca da noite e responder
Ruy Belo
Aquele Grande Rio Eufrates
(no dia do 75º aniversário)
Os sinais e os diagnósticos multiplicam-se, mas a mudança de caminho tarda. Tememos muitos de nós: - quando um dia vier, não será demasiado tarde? Depois de quebrada, a confiança só muito lentamente se recompõe. Entre as pessoas, como entre os cidadãos e o seu sistema político-social. Para ler e reflectir. E agir, se possível.
Um poema de Vítor Matos e Sá
(apresentado por José do Carmo Francisco)
E porque existe uma guerra movida pela ministra da Educação aos professores portugueses o nome do poeta Vítor Matos e Sá veio-me à baila. Nada melhor e mais a-propósito que recordar um dos seus poemas («Para os meus alunos») que integra O Trabalho – antologia poética e que devia estar em todas as salas de aula deste País (atrevo-me eu a pensar).
Após tantos anos a ver-vos chegar
e a deixar-vos partir
alheios ou inquietos quanto
ao parentesco das ideias e dos actos
o direito às perguntas e a fonte
das perguntas,
gostaria de chamar-vos, um a um,
pelo vosso nome,
saber se estive, perto ou longe,
em vossas dúvidas. É sempre
uma questão mútua de ser.
Uma presença e não
um resultado.
Mas nem sempre soubestes que crescíamos
entre ódios, fanatismos, cobardias,
com olhos vendados pelo conforto
e o medo, com ter-se ou não ter-se
vantagens, aplausos, soluções privadas.
E como foi possível ter razão
sem ter as circunstâncias.
Agora os vosso rostos passam, firmes,
entre visão e facto, entre o amor
e a chegada de todos ao amor.
Mas também morro mais depressa agora.
Por isso gostaria de chamar-vos, um a um,
pelo vosso nome. E agradecer-vos a herança
da alegria. E dizer uma vez mais que é sempre
uma questão mútua de ser. Uma presença
e não um resultado.
E os vosso rostos todos
hão-de ajudar-me a envelhecer
sem angústia ou vergonha
e a estar convosco na verdade
e a buscá-la juntos e a cumpri-la.
(apresentado por José do Carmo Francisco)
E porque existe uma guerra movida pela ministra da Educação aos professores portugueses o nome do poeta Vítor Matos e Sá veio-me à baila. Nada melhor e mais a-propósito que recordar um dos seus poemas («Para os meus alunos») que integra O Trabalho – antologia poética e que devia estar em todas as salas de aula deste País (atrevo-me eu a pensar).
Após tantos anos a ver-vos chegar
e a deixar-vos partir
alheios ou inquietos quanto
ao parentesco das ideias e dos actos
o direito às perguntas e a fonte
das perguntas,
gostaria de chamar-vos, um a um,
pelo vosso nome,
saber se estive, perto ou longe,
em vossas dúvidas. É sempre
uma questão mútua de ser.
Uma presença e não
um resultado.
Mas nem sempre soubestes que crescíamos
entre ódios, fanatismos, cobardias,
com olhos vendados pelo conforto
e o medo, com ter-se ou não ter-se
vantagens, aplausos, soluções privadas.
E como foi possível ter razão
sem ter as circunstâncias.
Agora os vosso rostos passam, firmes,
entre visão e facto, entre o amor
e a chegada de todos ao amor.
Mas também morro mais depressa agora.
Por isso gostaria de chamar-vos, um a um,
pelo vosso nome. E agradecer-vos a herança
da alegria. E dizer uma vez mais que é sempre
uma questão mútua de ser. Uma presença
e não um resultado.
E os vosso rostos todos
hão-de ajudar-me a envelhecer
sem angústia ou vergonha
e a estar convosco na verdade
e a buscá-la juntos e a cumpri-la.
IMAGENS DE TIMOR
No momento em que, mais uma vez, se revela quão difícil é este processo de independência de Timor, venho sugerir uma viagem até àquelas paragens, pelo olhar do fotógrafo Humberto Ramos no blogue http://www.vinte9.blogspot.com/. Vale a pena. Deste autor podem ainda ser consultadas outras (belas) imagens em www.flickr.com/photos/humberto-ramos/.
(Na imagem: "Cemitério junto ao mar em Liquiçá", 2000.)
Mansões abandonadas
de José do Carmo Francisco
lançado no Brasil
O livro Mansões abandonadas, uma recolha de poemas do poeta José do Carmo Francisco, foi lançado no Brasil pela editora paulista Escrituras, na sua colecção Ponte Velha, inteiramente dedicada à literatura portuguesa contemporânea.
Nesta mesma colecção a editora brasileira já publicou autores como António Ramos Rosa, Armando Silva Carvalho, Pedro Tamen, Saúl Dias, Fernando Guimarães, Nuno Júdice, Carlos Garcia de Castro, Nicolau Saião e Casimiro de Brito.
Mansões abandonadas reúne poemas de seis livros de Carmo Francisco: Universário, Transporte sentimental, 1983, Um resumo, Mesa dos extravagantes , As emboscadas do esquecimento e De súbito.
No prefácio à obra, Nicolau Saião destaca como marcas dominantes da escrita poética de Carmo Francisco a «nostalgia, amor ao pequeno facto que, todavia, tem a força de um universo próprio, um humor magoado que se transfigura e que nos dá, por extenso ainda que sobriamente, uma grande e bela indignação perante as injustiças da sociedade, fidelidade à infância e aos seres que a preencheram, ligação ao sinal próprio do homem, patente em retratos de figuras tutelares, e finalmente, a discrição e a serena mágoa que são frequentemente o prólogo da mais justa alegria não conspurcada por sistemas de valores discriminatórios".
Uma entrevista concedida pelo autor a Ruy Ventura e por este incluída no livro José do Carmo Francisco, uma aproximação, completa a edição.
O autor nasceu em Caldas da Rainha em 1951, fez jornalismo e crítica literária em jornais erevistas, foi bancário e é actualmente secretário da Associação Portuguesa de Críticos Literários. A sua estreia literária data de 1981, com Iniciais, vencedor, no ano anterior, do Prémio de Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores.
(RMM - © 2008 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A. - adaptado.)
de José do Carmo Francisco
lançado no Brasil
O livro Mansões abandonadas, uma recolha de poemas do poeta José do Carmo Francisco, foi lançado no Brasil pela editora paulista Escrituras, na sua colecção Ponte Velha, inteiramente dedicada à literatura portuguesa contemporânea.
Nesta mesma colecção a editora brasileira já publicou autores como António Ramos Rosa, Armando Silva Carvalho, Pedro Tamen, Saúl Dias, Fernando Guimarães, Nuno Júdice, Carlos Garcia de Castro, Nicolau Saião e Casimiro de Brito.
Mansões abandonadas reúne poemas de seis livros de Carmo Francisco: Universário, Transporte sentimental, 1983, Um resumo, Mesa dos extravagantes , As emboscadas do esquecimento e De súbito.
No prefácio à obra, Nicolau Saião destaca como marcas dominantes da escrita poética de Carmo Francisco a «nostalgia, amor ao pequeno facto que, todavia, tem a força de um universo próprio, um humor magoado que se transfigura e que nos dá, por extenso ainda que sobriamente, uma grande e bela indignação perante as injustiças da sociedade, fidelidade à infância e aos seres que a preencheram, ligação ao sinal próprio do homem, patente em retratos de figuras tutelares, e finalmente, a discrição e a serena mágoa que são frequentemente o prólogo da mais justa alegria não conspurcada por sistemas de valores discriminatórios".
Uma entrevista concedida pelo autor a Ruy Ventura e por este incluída no livro José do Carmo Francisco, uma aproximação, completa a edição.
O autor nasceu em Caldas da Rainha em 1951, fez jornalismo e crítica literária em jornais erevistas, foi bancário e é actualmente secretário da Associação Portuguesa de Críticos Literários. A sua estreia literária data de 1981, com Iniciais, vencedor, no ano anterior, do Prémio de Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores.
(RMM - © 2008 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A. - adaptado.)
José do Carmo Francisco
(in Aspirina B)
O regicídio visto por Pascoaes
Descobri no Alfarrabista Bocage na Calçada do Combro a cópia de uma carta de Pascoaes a Unamuno de 2-10-1908. Depois de saudar o «querido amigo», Pascoaes afirma:
«A tragédia de Lisboa foi o desenlace duma luta travada entre o gato e o rato. E, coisa curiosa, o rato matou o gato! João Franco subiu ao poder para eliminar abusos, roubos, sinecuras. O advento do Franquismo representou um tardio arrependimento do Rei Carlos. Calcule a guerra feroz que lhe moveram os partidos (progressista e regenerador) que se viram despojados do Tesouro Público! Guerra de difamação contra o Rei e de ódio contra o Franco. Este viu-se obrigado a recorrer a meios violentos e pouco simpáticos nos tempos de hoje para resistir à onda que o tentava derrubar. Estas medidas violentas exasperaram dois pobres e ingénuos sonhadores (Costa e Buíça) que, num ímpeto que eles julgaram libertador, deitaram a terra D. Carlos e o Príncipe Luís, um adorável rapaz de 20 anos! Resultado: o Franco foi para o estrangeiro por onde anda errante como um fantasma; o Buíça foi para a sepultura, fulminado como um Titã que quis roubar o fogo do céu! No dia 1 de Fevereiro de 1908 havia dois homens em Portugal, João Franco e Buíça; inimigos irredutíveis que se destruíram um ao outro, em vez de salvarem a sua Pátria! Neste momento Portugal é um mistério. É impossível a gente calcular o que virá a ser dele! É uma Pátria que a noite envolve, entregue aos morcegos e às aves agoireiras. Aqui, não se vê um palmo adiante do nariz; é tudo confusão e sombra. Um abraço do seu grande admirador e amigo certo – Teixeira de Pascoaes.»
Um documento curioso, descoberto e lido cem anos depois, num alfarrabista da Calçada do Combro.
(in Aspirina B)
O regicídio visto por Pascoaes
Descobri no Alfarrabista Bocage na Calçada do Combro a cópia de uma carta de Pascoaes a Unamuno de 2-10-1908. Depois de saudar o «querido amigo», Pascoaes afirma:
«A tragédia de Lisboa foi o desenlace duma luta travada entre o gato e o rato. E, coisa curiosa, o rato matou o gato! João Franco subiu ao poder para eliminar abusos, roubos, sinecuras. O advento do Franquismo representou um tardio arrependimento do Rei Carlos. Calcule a guerra feroz que lhe moveram os partidos (progressista e regenerador) que se viram despojados do Tesouro Público! Guerra de difamação contra o Rei e de ódio contra o Franco. Este viu-se obrigado a recorrer a meios violentos e pouco simpáticos nos tempos de hoje para resistir à onda que o tentava derrubar. Estas medidas violentas exasperaram dois pobres e ingénuos sonhadores (Costa e Buíça) que, num ímpeto que eles julgaram libertador, deitaram a terra D. Carlos e o Príncipe Luís, um adorável rapaz de 20 anos! Resultado: o Franco foi para o estrangeiro por onde anda errante como um fantasma; o Buíça foi para a sepultura, fulminado como um Titã que quis roubar o fogo do céu! No dia 1 de Fevereiro de 1908 havia dois homens em Portugal, João Franco e Buíça; inimigos irredutíveis que se destruíram um ao outro, em vez de salvarem a sua Pátria! Neste momento Portugal é um mistério. É impossível a gente calcular o que virá a ser dele! É uma Pátria que a noite envolve, entregue aos morcegos e às aves agoireiras. Aqui, não se vê um palmo adiante do nariz; é tudo confusão e sombra. Um abraço do seu grande admirador e amigo certo – Teixeira de Pascoaes.»
Um documento curioso, descoberto e lido cem anos depois, num alfarrabista da Calçada do Combro.
BRIAN STRANG
número oito
começar de novo de outro ponto sem qualquer controlo
sobre as forças que te rodeiam
rostos carregados encostam à tua cápsula uma espécie de lágrima
no tecido da tua existência diária encontra um lugar
para ti natural acolhe os factos tal como são vê que por detrás
dos rostos estão pessoas esfoladas até aos ossos como tu
enquanto nos aproximarmos do último palco procura ligar-te
com os outros nos olhos esperando encontrar alguém como
aquele tabuado branco ao sol e uma árvore oscilante
cedros ou ponderosas tornados monumentos ou
tectos ladrilhados o brilho dos carris do eléctrico trabalha
sozinho uma ficção fica mas mente nos tijolos suspira
mencionando apenas as oportunidades arrancadas e não te deixarás
subir numa bolha de ganância ou cair numa exausta queda
de poentes ou afogar no fundo do oceano coberto
por um enleio de obsessão e as censuras ficam tão libertas
e perguntam se a tua sorte será perdoada comendo ou recusando comer
dando crédito às figuras transparentes que atravessam
a luz duma vela no teu espaço vital sentindo o medo
a atravessar pela porta aberta
tatuando vitalidade na tua pele não conseguirás
mover de lado os enleados e trepadores ossos perdidos
(In Incretion, Spuyten Duyvil, New York, 2003; tradução de RV. Brian Strang, autor também da ilustração, coordena o blogue Sorry Nature.)
número oito
começar de novo de outro ponto sem qualquer controlo
sobre as forças que te rodeiam
rostos carregados encostam à tua cápsula uma espécie de lágrima
no tecido da tua existência diária encontra um lugar
para ti natural acolhe os factos tal como são vê que por detrás
dos rostos estão pessoas esfoladas até aos ossos como tu
enquanto nos aproximarmos do último palco procura ligar-te
com os outros nos olhos esperando encontrar alguém como
aquele tabuado branco ao sol e uma árvore oscilante
cedros ou ponderosas tornados monumentos ou
tectos ladrilhados o brilho dos carris do eléctrico trabalha
sozinho uma ficção fica mas mente nos tijolos suspira
mencionando apenas as oportunidades arrancadas e não te deixarás
subir numa bolha de ganância ou cair numa exausta queda
de poentes ou afogar no fundo do oceano coberto
por um enleio de obsessão e as censuras ficam tão libertas
e perguntam se a tua sorte será perdoada comendo ou recusando comer
dando crédito às figuras transparentes que atravessam
a luz duma vela no teu espaço vital sentindo o medo
a atravessar pela porta aberta
tatuando vitalidade na tua pele não conseguirás
mover de lado os enleados e trepadores ossos perdidos
(In Incretion, Spuyten Duyvil, New York, 2003; tradução de RV. Brian Strang, autor também da ilustração, coordena o blogue Sorry Nature.)
AINDA O REGICÍDIO
No dia 1 de Fevereiro, a "esquerda" parlamentar não quis aprovar um voto de repúdio pelo assassinato há cem anos do rei e do príncipe herdeiro. "Seria votar contra a república" - afirmou um deputado.
Sendo algo ingénuo o voto proposto, o seu resultado teve pelo menos uma virtude: obrigou à revelação dos fundamentos subreptícios de boa parte da nossa classe política - que, pelos vistos, não rejeita o terrorismo "revolucionário" como meio para chegar a certos fins (e por isso, quiçá, põem sempre paninhos noutras formas de terrorismo que por aí alastram...) - e à admissão, implícita, de que a Primeira República foi um regime fundado, directamente, sobre crimes de sangue.
No dia 1 de Fevereiro, a "esquerda" parlamentar não quis aprovar um voto de repúdio pelo assassinato há cem anos do rei e do príncipe herdeiro. "Seria votar contra a república" - afirmou um deputado.
Sendo algo ingénuo o voto proposto, o seu resultado teve pelo menos uma virtude: obrigou à revelação dos fundamentos subreptícios de boa parte da nossa classe política - que, pelos vistos, não rejeita o terrorismo "revolucionário" como meio para chegar a certos fins (e por isso, quiçá, põem sempre paninhos noutras formas de terrorismo que por aí alastram...) - e à admissão, implícita, de que a Primeira República foi um regime fundado, directamente, sobre crimes de sangue.
1 de Fevereiro de 1908 e depois
Faz hoje cem anos que D. Carlos de Bragança e o seu filho D. Luís Filipe foram assassinados no Terreiro do Paço lisboeta. Naquele dia não morreram dois deuses nem dois heróis - mas também não caíram dois demónios, como muitos deram a entender.
Começamos agora a vislumbrar - sem as poeiras da propaganda republicana e os fumos dos panegíricos monárquicos - as suas verdadeiras fraquezas e qualidades, ao mesmo tempo que vão surgindo também as faces de muitos dos actores políticos e sociais daquele tempo. (Inquietam-nos, isso sim, as semelhanças entre essa época e aquela em que vivemos...) Acto terrorista ou revolucionário (a semântica política teima em não querer separar as palavras), condenável em qualquer dos sentidos, o regicídio deslegitimou um regime republicano futuro que, nos seus dezasseis anos, retirados alguns pontos positivos do seu ideário e da sua prática, soube ser apenas uma alavanca caceteira, intolerante e caótica para a elevação de um regime ditatorial que duraria, para mal dos portugueses, quarenta e oito anos.
Rei contrariado (sobrevivia como monarca, embora não renegando as suas funções; vivia como pintor, caçador e oceanógrafo...), o assassinato de D. Carlos teve para ele a virtude da libertação, ao afastá-lo definitivamente de políticos incompetentes e corruptos e de uma canga recebida sem vontade.
Por estas e por outras me declaro sempre adepto dos regimes electivos (chamem-se "república" ou outra coisa) contra os que o não são. Não posso conceber, por compaixão, que um ser humano comum seja obrigado por transmissão genética a assumir vitaliciamente um destino que não escolheu, nem que um povo seja obrigado a suportar eternamente gente indigna ou incompetente. Não me deixo no entanto enganar: o futuro das nações não depende de regimes mas de formas de governo, cuja legitimidade deve ser constantemente referendada pelo povo.
Faz hoje cem anos que D. Carlos de Bragança e o seu filho D. Luís Filipe foram assassinados no Terreiro do Paço lisboeta. Naquele dia não morreram dois deuses nem dois heróis - mas também não caíram dois demónios, como muitos deram a entender.
Começamos agora a vislumbrar - sem as poeiras da propaganda republicana e os fumos dos panegíricos monárquicos - as suas verdadeiras fraquezas e qualidades, ao mesmo tempo que vão surgindo também as faces de muitos dos actores políticos e sociais daquele tempo. (Inquietam-nos, isso sim, as semelhanças entre essa época e aquela em que vivemos...) Acto terrorista ou revolucionário (a semântica política teima em não querer separar as palavras), condenável em qualquer dos sentidos, o regicídio deslegitimou um regime republicano futuro que, nos seus dezasseis anos, retirados alguns pontos positivos do seu ideário e da sua prática, soube ser apenas uma alavanca caceteira, intolerante e caótica para a elevação de um regime ditatorial que duraria, para mal dos portugueses, quarenta e oito anos.
Rei contrariado (sobrevivia como monarca, embora não renegando as suas funções; vivia como pintor, caçador e oceanógrafo...), o assassinato de D. Carlos teve para ele a virtude da libertação, ao afastá-lo definitivamente de políticos incompetentes e corruptos e de uma canga recebida sem vontade.
Por estas e por outras me declaro sempre adepto dos regimes electivos (chamem-se "república" ou outra coisa) contra os que o não são. Não posso conceber, por compaixão, que um ser humano comum seja obrigado por transmissão genética a assumir vitaliciamente um destino que não escolheu, nem que um povo seja obrigado a suportar eternamente gente indigna ou incompetente. Não me deixo no entanto enganar: o futuro das nações não depende de regimes mas de formas de governo, cuja legitimidade deve ser constantemente referendada pelo povo.
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