fundição
corta. atravessa. une e divide
os ossos de uma mão cujo metal
sustenta a carne na lâmina
e no ventre – para que as vísceras
não espalhem sobre a laje
o ouro e o odor dos excrementos.
recolhe-se o fogo na fusão
do esqueleto. a faca corta
os músculos e os tendões, sem deixar
nos poros uma gota (apenas
uma gota) de água negra
ou verde, povoada.
a faca corta o fogo
e a distância. o fogo e a cinza
dessa madeira de deus
que a circulação divide
para melhor retalhar e poluir
o grito lançado no abate.
fogo e ignição dividem entre si
a contramina esfaqueada pela fome.
nesta viagem, a faca corta o fogo
e o espaço. lança na boca
o metal e o cimento, os resíduos
(que somos) desse forno
cuja abóbada caiu sobre as cabeças.
*
o fogo corta o fogo. a faca
corta a faca. fogo e faca
existem, coincidem, sobre o
corte que é faca, fogo – gente.
nada existe. tudo coexiste –
como a carne, os ossos e as vísceras
que o tempo liquefaz
ou a mão desmancha, separando
(e reunindo) os elementos.
congela-se o metal para que a chama
nascida na hora do incêndio
possa fundir (e difundir) o aço
sobre o molde de que renascemos.
e, na mesma hora, em retrocesso
escrevemos do fogo o que os olhos
não vêem nem poderão tocar.
porque o fogo só cortado adquire
a têmpera do vento e do minério.
só cortado (e cortado sobre a forja)
é expressão da estrutura que entreabre
o sopro sobre a voz, pelo abismo.
*
há símbolos sem têmpera. não cortam.
são escórias espalhadas sobre a terra.
não adubam – nem podem derreter-se
para talhar enxadas e forquilhas.
só no corte o fogo será fogo. só
no corte a faca será faca. faca e fogo
cortam este mundo. dividem. reunindo
multiplicam o globo que rolamos
sobre a terra. sem faca e sem fogo
comeríamos outro fogo sem luz, outra
presença que uma faca meteria entre as costelas.
assim, cortando o fogo com a faca
(ou a faca fundindo nesse fogo
que o fole alimenta na garganta)
fundimos entre os ossos o metal
que nos faz criaturas de madeira.
4 comentários:
Belíssimos poemas.
Creio que tens a consciencia, Rui, de que é isto junto com a tua maneira digna de ser português que não vai em baixezas, que te coloca em alvo.
Mesmo alguns dos que se faziam teus amigos para melhor aproveitarem a tua energia procurarão abater-te. A história é velha e o mundo de cristo (não de Cristo) não muda. Bem como a falta de caracter.
Felizmente que tens muita gente do teu lado. E principalmente tens-te a ti, o que é mais de metade da batalha ganha contra os fariseus.
Alexandre Farinha Lencastre
Obrigado pelas suas palavras!
Um poema novo e um registo novo, também. Mais duro, cortante. Não menos poético.
Abraço
Teresa
Parabéns, Ruy,
são poemas tão vivos que se podem habitar. As imagens do fogo, do que consume e renasce, da viagem que busca...
Gosto dos teus versos, agora estou num caminho próximo, também numa viagem.
Um abraço
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